Thierry Amer
I
Fazia um início de dia consideravelmente ensolarado e os pássaros cantavam pelo céu em degradê quando Cárcius Alterwood chegou a Hogwarts. Dwayne Wahlgreen já o esperava com uma expressão simpática no rosto fino. Os dois logo se encaminharam para a sala do diretor onde havia preparada uma farta mesa de café da manhã.
“Perdão, Sr. Wahlgreen, creio que foi um horário... inusitado, digamos, para uma visita, certo?” – comentou o homem ao ver tal recepção.
“De forma alguma, Sr. Alterwood. Esse é, inclusive, um dos horários que tenho mais disponibilidade considerando que os alunos ainda estão ou dormindo ou tomando café.”
O ministro riu. Com um gesto, Wahlgreen indicou a cadeira ao homem e logo pediu que Trícia aguardasse na parte de fora da sala. A loira demonstrou sua insatisfação involuntariamente através dos olhos muito expressivos, mas não contestou.
“Muito interessante seu escritório, Sr. Wahlgreen. Vejo que se destacou entre os outros diretores antigos, não?”
“Bem, não gosto muito de enxergá-lo como um escritório, afinal. É mais como uma segunda casa. Em que, obviamente, tenho gosto por manter a lembrança dos antigos moradores.”
“Interessante” – comentou o homem observando as paredes repletas dos quadros de antigos diretores – “É uma posição bastante admirável considerando que, imagino eu, o senhor provavelmente não concorde com o posicionamento ou crenças de vários deles.”
“Certamente, meu caro.” – respondeu Wahlgreen bebericando sua xícara de chá – “Mas, veja bem, embora eu decore a casa de acordo com meu gosto, não devo negar as decorações anteriores.” – concluiu sorrindo. O ministro acompanhou a simpatia ainda observando os quadros – “Bem, mas creio que o senhor não veio aqui falar das paredes de minha sala, correto?”
“Correto, Sr. Wahlgreen. Não quero tomar muito de seu tempo, são apenas alguns pontos.”
“De forma alguma, fique à vontade.”
“Bem... Logo que assumi o ministério nós tivemos aquela importante conversa, acredito que o senhor se lembre bem. Meu interesse por Hogwarts é imenso e creio que o senhor entenda meu ponto de vista.”
“Mas é claro. Do contrário, não teria feito o que fiz.”
“Exatamente. E eu agradeço pela colaboração, mas receio que abusarei mais uma vez de sua boa vontade.”
“Diga-me, em que posso ser útil?” – perguntou Wahlgreen recostando-se em sua cadeira.
“Bem, algumas mudanças estão sendo preparadas e minhas providências são muitas, embora complexas e nem sempre rápidas. Mas uma coisa primordial e urgente é que nós possamos ter a real noção do que estamos enfrentando, entende?”
“Perfeitamente.” – respondeu Wahlgreen passando os dedos pelo queixo pontudo.
“O ideal seria uma análise completa da situação, Sr. Wahlgreen. Creio que compreenda a necessidade disso, Hogwarts é quase um reflexo dos acontecimentos mais importantes no mundo bruxo. Analisar o que temos aqui é ter uma visão mais completa do problema em sua totalidade.”
Alterwood se calou, então, pegando uma pequena garrafa e entornando em sua xícara. O líquido negro soltava uma forte fumaça denunciando sua alta temperatura mas, ainda assim, o homem imediatamente o levou à boca e o bebeu com naturalidade.
“Pois bem” – começou Wahlgreen levantando-se – “Uma análise como o senhor provavelmente idealiza é algo complexo de se conseguir considerando os tempos em que vivemos atualmente. Mesmo alunos novos e até aparentemente ingênuos tornaram-se desconfiados e cautelosos. Não os culpo, é claro, muito pelo contrário. Mas, ainda assim, acredito que isso realmente vá ajudar bastante as possíveis providências então farei de tudo pra alcançar o que for possível.”
“Eu agradeço, Sr. Wahlgreen.” – o homem se levantou educadamente – “E peço que continue mantendo tudo apenas entre nós. Será melhor assim. Eu lhe manterei informado.”
“Certamente, meu caro, eu agradeço.”
II
Já era o terceiro dia em Hogwarts e as novas configurações pareciam não se encaixar com as expectativas de muitos dos alunos. Na realidade, eles ainda não tinham tido contato com muitas dessas mudanças e permaneciam diante de incógnitas aparentemente persistentes.
Os quatros professores, e também diretores das casas, não haviam conhecido todas as turmas até então. Yeardley Hawkes apenas passara no salão comunal da Grifinória para fazer um pronunciamento como novo diretor. As palavras haviam sido aparentemente clichês e meio vazias, mas o gesto simpático do homem foi apreciado pelos estudantes. Da mesma forma, Rutger Dillon imitou o comportamento do companheiro de trabalho e reuniu a Lufa-lufa para um lanche de boas vindas. Já Thierry Amer e Maya Estarque pareciam não ter se importado tanto com apresentações.
Embora durante aquela primeira semana os quatro estivessem ocupados ainda com suas estalagens e adaptações, o quinto ano Grifinório já se preparava para a primeira aula de Integração trouxa com Thierry Amer.
O dia, ainda que frio, estava com um clima leve devido aos primeiros dias de aulas. Início de ano em Hogwarts era sempre uma época de mais risadas e animações considerando os muitos reencontros entre amigos que não se viam desde as férias. Por um dos muitos corredores do castelo, trajando um cachecol por cima do usual uniforme, caminhava Joanne apressadamente. Ao seu lado, Ellen, Edward e Oliver riam e comentavam sobre as férias. Embora estivesse ouvindo e até mesmo esboçasse um sorriso vez ou outra, ela continuava com a mente fervilhando sobre os acontecimentos recentes.
Naquela manhã Dwayne Wahlgreen anunciara outra novidade. Com a diminuição do Quadribol e o cancelamento do clube de duelos devido aos acidentes ocorridos nos últimos anos, os alunos haviam perdido suas maiores fontes de distração. Pensando em uma forma de entretenimento não perigosa, então, Wahlgreen e o corpo docente haviam chegado à idéia de implantar atividades trouxas como possibilidades para os horários livres. A idéia fora, de fato, muito bem recebida e novas oficinas de dança e teatro estavam sendo organizados com empolgação.
Quando os quatro amigos entraram na sala, o sol já se deitava no horizonte dando um tom alaranjado não só ao céu mas também à sala através das enormes vidraças. Sentados em umas mesas ao fundo alguns outros Grifinórios conversavam enquanto esperavam o professor. Joanne sentou-se logo ao lado da janela observando com atenção os desenhos que os raios de sol formavam na madeira escura. Seu cabelo ao sol parecia ainda mais claro e incrivelmente radiante. Ellen e Edward seguiram seu caminho e ocuparam as cadeiras ao lado enquanto Oliver seguiu para a fileira logo a frente deles e sentou-se perto de John Potter e Victor Weasley. Os dois Grifinórios, embora não fossem tão próximos dos quatro, eram garotos simpáticos e agradáveis. John tinha cabelos e olhos negros e carregava um rosto magro e ossudo. Fosse pelos traços ou pelo uso de óculos, era constantemente associado ao seu lendário antepassado Harry Potter. Já Victor lembrava seus descendentes pura e simplesmente no tom de seu cabelo. O Weasley tinha em suas madeixas um tom castanho alaranjado que puxava pro ruivo. O rosto, embora bem branco, não tinha sardas e os olhos eram consideravelmente verdes. Ainda que sua altura fosse a mesma que a de John, o menino era bem mais encorpado, contando com costas e ombros largos em sua vantagem de tamanho.
Pouco tempo depois, um barulho foi novamente ouvido e, pela porta antiga e rangente, entrou o homem parrudo e alto de seus 60 anos. Seu terno era cinza e cheio de detalhes, mas parecia ter sido feito perfeitamente combinativo com o tom de seu cabelo rarefeito. As entradas na testa deixavam visíveis as muitas rugas de aparente preocupação e, assim que virou-se pra turma, o homem abriu um meio sorriso quase sem mostrar os dentes.
“Boa tarde.” – falou secamente. Seu sotaque era quase imperceptível, mas os érres carregados deixavam presente a lembrança de sua nacionalidade. – “Como sabem, eu serei seu professor de Integração trouxa. Meu nome, conforme já foi dito, é Thierry Amer.”
Com um gesto de varinha, o nome do homem apareceu no quadro em grandes letras acompanhado de algumas outras informações. Francês, pesquisador, 10 anos morando entre trouxas... Ele, por sua vez, continuava em sua posição rígida encarando a turma com sua seca tentativa de sorriso. A testa encolhendo e formando longas marcas de expressão vez ou outra.
“O livro, meus caros, têm seu título escrito no quadro pra que ninguém o tente esquecer. Peço que tragam na próxima aula assim como sua boa vontade e dedicação.’ – ele fez uma pausa dando alguns passos e logo recomeçou – “Como os senhores sabem, essa é uma matéria de extrema importância nos dias de hoje em que a ligação entre trouxas e bruxos está cada vez mais forte. Durante os 10 anos que passei entre eles pude entender grande parte de sua realidade, suas motivações, loucuras e fraquezas. E hoje entendo o valor de cada diferença entre os dois mundos. Alguém, por exemplo, saberia me dizer o que é uma pistola?”
Joanne levantou a mão quase instintivamente. Sua curiosidade não só pelos trouxas como pela batalha final e tudo que envolvesse novas informações fazia com que seus estudos se aprofundassem em níveis mais altos do que era esperado para uma aluna de quinto ano.
“Sim, Srta...?”
“Mystler. Joanne Mystler.”
“Sim, Srta. Mystler, responda.”
“Pistola é um tipo de arma usada pela população trouxa com o objetivo de matar a pessoa contra quem o objeto é utilizado, ou seja, o inimigo.”
“Hum. Pois bem... Trouxas só matam inimigos, então?”
“Não, quer dizer... Eles podem ma...”
“Porque um trouxa mataria outro, Srta. Mystler?”
“Muitos motivos, senhor. Diferenças, inveja, traição...”
“Diferenças? Motivo bobo pra se matar, não?”
“Eu...”
“Sim, bobo. Muito bobo.”
O homem voltou a se encaminhar para a mesa enquanto abria um sorriso maior e, aparentemente, mais divertido.
“Quantos de vocês aqui são filhos de trouxas?”
Os estudantes se entreolharam e alguns poucos levantaram o braço lentamente, ainda meio receosos com a pergunta.
“Muito bem. Pois perguntem aos seus familiares o que perguntei a vocês e me tragam suas conclusões. Penso que perceberão o quanto certas diferenças são traiçoeiras. E, ainda melhor, entenderão que as diferenças, sejam quais forem, atingem o instinto humano como um espeto cravado em seu ego.” – Thierry Amer fez mais uma pausa e tornou a falar – “Srta. Mystler, a Srta. entende meu ponto de vista?”
“Ahm... Creio que sim, senhor.”
“Me explique.”
“A motivação humana pra matar não se baseia nas diferenças entre trouxas e bruxos. Se baseia nas diferenças em geral?”
“A motivação humana é complexa e bagunçada, meu bem, mas meu ponto é: entre trouxas e bruxos, são todos humanos. E certos males e fraquezas atingem a todos.” – o homem fez mais um gesto com a varinha fazendo com que o quadro se apagasse e prosseguiu – “Pois bem, estão dispensados. Voltem com seus livros e suas opiniões. Por enquanto, pensem e observem. Não há melhor aula ou exercício.” – e, assim que acabou a frase, ele fez um leve aceno com a cabeça e saiu.
III
O dia já se encerrava estampando o cansaço nos rostos dos estudantes quando Joanne e Ellen alcançaram o salão comunal da Grifinória. Sentados em um sofá, Oliver e Edward divertiam-se trocando feijõezinhos de todos os sabores com John Potter e Victor Weasley.
“Nossa, finalmente!” – exclamou Oliver abrindo espaço pra Joanne se sentar ao seu lado.
“Vocês foram às oficinas trouxas agora à noite?” – perguntou John enquanto espremia os olhos em uma careta de desaprovação ao sabor do feijãozinho que colocara na boca.
“A Ellen sim.”
“Ué, e você?” – questionou Edward.
“Eu fui à de Confecção de artefatos mágicos, oras. Estou freqüentando desde o ano retrasado, não se lembra?”
“E como foi a dos trouxas, Ellen?” – perguntou Victor.
“Boa.” – disse a menina jogada na outra poltrona – “Cansativa.”
“Percebe-se.” – exclamou Edward sarcasticamente.
“Era oficina de quê, afinal?”
“Teatro.” – Joanne pronunciou a resposta antes mesmo que Ellen houvesse assimilado a pergunta – “Quando eu cheguei já estava no final mas parece ser interessante.”
Os outros fizeram outros mil questionamentos típicos de quem não convive muito com a realidade trouxa. Joanne, que era sempre a mais informada sobre tudo, deu aulas sobre o assunto já que Ellen continuava sonolenta nas almofadas amarelas em que encostara sua cabeça. Pouco a pouco, porém, o assunto foi se dissipando e outros aparentemente mais interessantes tomaram seu lugar. Esse havia sido um dia excessivamente cheio, afinal, e oportunidades para se comentar os acontecimentos foram escassas.
“Então, gostaram da aula do francês?” – começou o Weasley sentando-se ao chão de frente para os outros.
“Eu gostei” – começou Edward – “Ele parece meio seco, não sei... Mas eu gostei.”
“Por enquanto, estou indiferente” – comentou John. Oliver logo se apressou a dizer que, assim como o amigo, não tinha ainda uma opinião formada.
“E você, Joanne?” – perguntou Edward ao notar que a menina, estranhamente, havia ficado quieta.
“Bastante estranho ele, não?” – começou ela com o olhar perdido – “Seco, mas aparentemente sensato. Não sei dizer, mas ele me fez pensar.”
“Ele é instigante, eu acho.” – disse Oliver.
“E teve um posicionamento inicial consideravelmente forte, não?” – comentou Edward.
“Definitivamente.” – respondeu Joanne mexendo nos cabelos acastanhados – “Forte e questionável.” – concluiu. Ao dizer isso, encostou novamente no sofá e sentiu o braço que Oliver havia passado ao redor dela. Pensou em fazê-lo tirar, mas o cansaço do dia lhe pesava até na voz. Para sua sorte, Victor deve ter sentido o mesmo pois, em pouco tempo, começou a bocejar e declarou que ia para a cama. Aproveitando a oportunidade, John e os outros dois decidiram ir também, ficando para Joanne a tarefa de conduzir uma Ellen extremamente sonolenta até o dormitório.
Quando todos os garotos já haviam deixado o salão comunal e Joanne já subia as escadas com a amiga derramada sobre seu ombro, um barulho estranho chamou sua atenção. Cuidadosamente, a menina apoiou Ellen em um degrau e voltou lentamente o caminho percorrido. Com seu olhar ágil, verificou tudo que estava ali antes sem reparar em nenhuma falha. O sofá e as duas poltronas avermelhadas, todos cobertos de almofadas amarelas, a lareira intacta, a mesinha de centro, tudo estava exatamente como haviam deixado.
Checou então o outro lado do grande salão. Mais sofás, mesas, poltronas e cadeiras. Nada que causasse espanto ou interrogações. Pousou, então, os olhos sobre a grande mesa de chás. Potes com biscoitos, bebidas e xícaras permaneciam intactas, mas uma garrafa de água praticamente vazia denunciava o motivo do barulho. Logo abaixo dela, algumas gotas escureciam a madeira e, no chão, uma grande poça confirmava o acontecido.
Joanne olhou ao redor rapidamente, mas, de fato, não havia ninguém. Deu mais alguns passos e logo viu pelo chão duas nítidas pegadas feitas com a água derramada. Olhou mais uma vez para os quatro cantos do salão, mas era inútil, não havia ninguém. Pelo caminho, também não encontrou mais marca alguma de pés ou de presenças estranhas.
“Seja quem for, deve ter limpado os pés logo após as duas pegadas que deixou” – pensou a menina se conformando e retornando para o dormitório.
Assim que conseguiu colocar Ellen na cama e trocou as próprias vestes, Joanne deitou ainda pensando no recente acontecimento. Havia sido, realmente, um período de tempo muito curto aquele entre o momento em que ela e Ellen estavam no salão e o momento em que chegaram à escada. Era estranho também que alguém estivesse chegando ou saindo do dormitório em tal horário, mas, de uma forma ou de outra, era alguém decididamente apressado – concluiu ela enquanto suas pálpebras já deitavam insistentemente sobre os olhos.
Antes, porém, que sucumbisse ao sono em definitivo, um outro barulho chamou sua atenção. Este, por sua vez, vinha do teto e se parecia com passos fortes e absurdamente pesados. O barulho tinha um ritmo quase organizado, mas se misturava a outros, vez ou outra. Imediatamente, Joanne tornou a se levantar e começou a balançar Ellen com firmeza.
“Ellen! Ellen, acorda! Você tá ouvindo isso? Ellen, pelo amor de Merlin, acorda! Você tá ouvindo esse barulho estranho?”
“Ahn... O que...” – a menina balbuciava ainda com os olhos cerrados e imersa em sonhos – “Não, não... Poções não...”
“ELLEN!” – falou Joanne em um tom firme que se esforçava pra não sair em alto volume e, consequentemente, acordar as outras meninas com quem dividiam o dormitório – “Ellen, não tem nada de poções, eu quero que você acorde pra me...”
“Não, eu não, no lago não... Diz que eu não vou...” – a menina sussurrou mais algumas palavras incompreensíveis dentre as quais Joanne só entendeu “herbologia” e “sereianos” e, logo depois, voltou a dormir profundamente.
“Argh, ótimo!” – pronunciou irritada.
Parou, então, pra ouvir novamente o som e foi quando percebeu que ele estava cada vez mais leve e parecia ir se afastando. Tentou ainda lembrar o que havia no andar de cima, mas não lhe ocorria nada que pudesse estar em funcionamento em plena madrugada. Já cansada e sem ter com quem comentar suas questões sem resposta, Joanne se deitou novamente tentando convencer a si própria de que o cansaço estava lhe fazendo dar importância a coisas banais. Sim, sim, o cansaço era traiçoeiro – pensou, deixando-se levar, finalmente, pelo sono.
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