O Mal mais Próximo
O sol apino lançava seus raios sem misericórdia. Maldito chapéu, que nunca seria grande o suficiente para cobrir seu rosto inteiro!
- Ginevra!
- Já estou indo!
Ela odiava quando faziam isso. Deixar que terminasse o trabalho em paz, era pedir muito? Continuou colhendo as verduras ralas e secas e pensando se haveria comida para todos. As chuvas faziam falta.
Voltou para dentro da casa carregando o que pôde na pequena cesta de vime, colocou o resto no bolso grande que havia na frente do seu avental. Ao chegar na cozinha quente e iluminada, sua mãe selecionou os vegetais que poderiam virar alguma coisa e a mandou para fora de lá.
Entediada, foi até a varanda de tábuas que havia na frente da casa e se sentou em uma cadeira de balanço, observando a nuvem de pó que tomava o horizonte. Depois que o mundo seguira adiante, tudo mudara. Ela não sabia quanto tempo atrás havia sido, mas soube pelos livros que antes houvera plantas verdes em todos os cantos. Chovia todos os meses, imagine só! E Londres... bem, diziam que Londres havia sido muito grande e bonita. Restaram as ruínas dos alicerces em volta do relativamente recente Número 12 e, possível de se ver bem ao longe, o que parecia uma casa alta de vários andares. Devia ser um dos tais “pérdios” sobre os quais ela havia lido.
Gina Weasley viu poeira se levantando numa cúpula ao longe. Já era hora.
Algum tempo depois, três homens desmontaram e amarraram seus cavalos ao lado da bebedouro seco.
- Dias, moça Weasley.
- Dias, Lupin, Black, senhor meu pai – ela fez uma mesura de cabeça para eles. - Novidades?
- Notícias de Dumbledore – Sírius deu um sorriso bonito enquanto descalçava as botas para tirar a areia delas, sentado em um degrau da varanda.
- Sobre o avanço do Grande Mal, senhor Black? - Ela se animou um pouco, o tanto que o calor infernal permitia.
- Talvez, minha filha. – Respondeu o senhor Weasley, em seguida ele se virou para os outros homens: - Vamos, vamos dar as notícias!
Ele e Lupin entraram, e a garota se viu sozinha com Sírius Black, que massageava um antigo calo no joanete direito.
- Então, não vai me contar?
- Não – ele disse, mas havia um tom irônico em sua voz. - Uma garota na flor da idade não deveria se preocupar em rastrear o Grande Mal, moça Weasley.
O homem tirou um pacote do bolso e começou a enrolar minuciosamente um cigarro de palha, enquanto mascava um poco de fumo.
- O alastrar do Grande Mal afeta minha vida, senhor. O senhor sabe que chegou em minha casa.
Era verdade. Desde que aquele algo havia se formado novamente nas Montanhas do Leste, a seca piorara e os animais enlouqueceram. Bois passavam o arado por cima de seus mestres, raposas do deserto atacavam grupos adormecidos de viajantes, pássaros jogavam seus ovos do ninho. Um cavalo derrubara um irmão da garota em uma tarde ensolarada como aquela. O bicho o pisoteou tantas vezes, que pouca coisa sobrou de Frederico Weasley para ser enterrado.
Esse fenômeno acontecia uma vez por geração, mais ou menos, e durava um bom tempo. Mas, então, sumia tão inesperadamente quando surgira. Era a loucura da natureza, que parecia perseguir qualquer ser vivo, mandar animais selvagens chacinar a todos e depois se suicidarem. Ninguém descobria a causa de tão inusitado evento, e a maioria não se importava: apenas fugia. Aqueles homens e mulheres reunidos na casa tentavam ao menos saber os locais afetados, ajudar quem podiam. Havia muitas famílias destruídas naqueles tempos negros.
Sírius Black sabia muito bem disso tudo.
- Decerto que afeta, mas a moça Weasley não pode fazer nada. Ela devia era olhar em volta e se preocupar com males mais próximos, aqueles que chegam de noite.
Black entrou na casa sem mais palavras, queimando a ponta de seu cigarro com um fósforo acendido no polegar, e deixou Gina pensando sobre isso, olhando aquelas botas largadas na varanda, as espolas reluzindo sob o sol. Ele jamais lhe dissera o que havia notado.
A garota ficou matutando se ele, na verdade, não desejaria que ela e sua enorme gama de parentes saíssem da residência dos Black. Mas não, não era possível. Ele tinha um nobre coração, não exitava em ajudar os que amava. Porque os inimigos... muitos já haviam tombado sob a mira do seu revólver. Era um bom pistoleiro. Mas então o que a que se referia?
Ela adormeceu inquieta naquele noite. Insistia em dizer para si mesma, cada vez que despertava, que era apenas efeito do calor e dos mosquitos, que não a deixavam em paz. No meio da madrugada, não pôde mais, levantou-se e desceu as escadas rezando para haver água. Não se sentia disposta a ir lá fora bombear água do poço, era um trabalho duro e ingrato, quase sempre pouco frutífero. E havia os animais selvagens.
A garota até que deu sorte, havia um resto de líquido barrento e amargo na moringa sobre o balcão. Colocou-o em um copo e ficou parada olhando pela janela. Havia lobos lá fora, rondando famintos, sedentos, esperando um descuido. Contudo, ao mesmo tempo, temiam os pistoleiros e seus revólveres fumegantes com estrondo de trovão. Os olhos brilhavam, assistindo, pontinhos estáticos na escuridão.
Um barulho repentino atrás de si fez Gina sair de seus pensamentos, pular. No susto, o copo com a preciosa e amarronzada água foi ao chão e caiu bem sobre seu pé.
- Oh, moça Weasley, eu...
O homem não terminou sua frase. A garota se virou e deu de cara com Severo Snape em seus indefectíveis jeans desbotados, camisa preta puída, pesada capa de viagem e chapéu escuro. Ele, pelo jeito, havia chegado fazia pouco tempo.
Ela fez uma careta, reparando na dor do membro direito pela primeira vez. Mancou até a cadeira mais próxima e sentou-se, tentando estancar o sangue que vazava de seu pé com as mãos.
- Eu a ajudo, moça Weasley – ele se adiantou, puxou um lenço escuro do bolso da camisa e o pressionou contra o corte relativamente pequeno.
Gina percebeu os olhos dele ao tocá-la, o leve tremor na mão ao sentir a pele macia da garota. Mas ela não disse nada, e o olhou, curiosa. Admirou-o de perto, nos curtos segundos em que se encostaram. Seus olhos eram profundos, muito profundos. E também tristes. Por um momento, perguntou-se como Black e Lupin teriam tido coragem para zombar daquele homem tão sério quando eram aprendizes de pistoleiros.
- Bem, moça Weasley... - ele tentou começar, mas sua voz morreu quando ela inclinou a cabeça para o lado, um olhar de curiosidade. - Creio que deva ir dormir – Snape reassumiu, lançando um olhar para o sangue coagulado e o pó de vidro espalhados em seu lenço.
Não podia fitá-la por muito tempo. Aqueles cabelos de um vermelho flamejante o enlouqueciam fazia algum tempo. A camisola velha deixava ver o contorno dos seios pequenos e delicados, empinados, e, se o homem os olhasse por mais um segundo sequer, ficaria excitado.
Quanto tempo fazia? Meses... mais que ele gostaria.
- Estou sem sono – ele a ouviu dizer. - Quer conversar?
Ela havia percebido o quanto ele era cheio de mistérios. Gina Weasley adorava mistérios.
- Não, vou comer alguma coisa e ir dormir – ele foi um pouco seco. Mera tentativa de disfarçar o incômodo de a ter por perto, pensou. Mas seria um incômodo mesmo?
Pegou um prato e foi até o fogão servir-se da rala sopa de cebolas da senhora Weasley e de um pedaço minúsculo de pão, o único disponível. Sentou-se na mesa e comeu em silêncio enquanto a menina tentava limpar o sangue do chão com um pano seco. Depois ela se sentou à sua frente. Ficaram em silêncio por alguns instantes...
- Então... alguma importante sobre o Grande Mal, senhor Snape? - Olhos na colher que mexia o líquido no prato dele.
- Nada de sua conta, Weasley.
Ele se sentiu triste ao dizer isso, mas teria que afastá-la. Afastá-la porque a presença da garota turvava sua mente, e ele não podia permitir isso. Ele precisava ser sozinho, era o único jeito.
- Não vai funcionar, senhor Snape – um tom casual dela, como se estivesse comentando o tempo.
Funcionar?
- Não sei o que a moça Weasley quer dizer.
- Quero dizer – ela começou, encarando-o com muita paciência – que não vai funcionar ser grosso comigo.
Hmm...
Ela sorriu. Que sorriso lindo!
Por algum instante, ele olhou para o prato vazio e, sem saber o que fazer, meteu o pedaço de pão na boca. Ele não era o tipo de pessoa que se rendesse facilmente, e muito menos que desabafasse. Porém o que agora? Ser gentil só a traria perto por uma fração de segundo, logo ele iria embora em seu cavalo negro, velho e magro. Estava ali numa visita rápida, de passagem, como sempre. Como sempre... procurando um local melhor, menos seco, mais vivo... como sempre e como todos.
- Moça Weasley, nunca fomos amigos, portanto não temos o que conversar.
Tão formal! Gina queria entendê-lo, queria que ele dissesse o que o fazia ser tão rude com todos. Queria saber porque ele era triste.
O forasteiro se levantou para colocar o prato na pia, então olhou novamente para a panela de sopa e ficou em dúvida. Pegou o restinho que havia lá e se sentou novamente.
- Se o senhor não fala, eu tenho que adivinhar – a garota inclinou novamente a cabeça para o lado. - Gosta da sopa, não é?
- Não.
Automático.
- Gosta sim, mentiroso.
Ele levantou o olhar e estreitou as pálpebras.
- Há algo que me deve e se chama respeito.
Ela riu, deliciada.
- Eu contornei suas defesas?
Ele jogou a colher no prato fundo.
- A sopa não é tão má, se faz mesmo questão de saber, agora com licença.
Novamente se levantando. Sim, agora estava tudo perdido, para os dois: Gina iria perder seu objeto de estudo e Snape sentia-se irritado consigo mesmo por falar demais. Mas queria ficar, porque ela era curiosa e esperta, e ele gostava disso.
Deixou o prato dentro da pia e ela se levantou para colocar o pano ensangüentado para secar na janela. Seus braços se esbarraram quando ficaram lado a lado e, mesmo que não quisessem, seus olhos se encontraram.
Snape perdeu parte da noção de tempo, espaço e perigo. Tirou uma mecha de cabelo vermelho do rosto da garota e levantou um pouco o queixo dela com os dedos. Como ela não fizesse nada para pará-lo, ele a beijou. No primeiro segundo, pôde sentir a surpresa dela, a indecisão. Todavia ela lenta e relutantemente se rendeu. Talvez o beijo dele fosse melhor se não fosse pela sopa de cebolas, ela pensaria mais tarde.
O homem a enlaçou pela cintura, forte e desejoso, inconsciente de qualquer coisa. Estava excitado e isso era perigoso. Gina tentava sugar-lhe os segredos todos, revelá-lo. O toque de um homem era bom, a barba mau-feita roçava-lhe o queixo enquanto as mãos apalpavam suas costas.
Ele a empurrou com força para trás e ela esbarrou na mesa, escorando-se. Assim as coisas foram saindo de controle, as mãos se tornaram abusadas e eles começaram a arfar. Subiram grudados para o quarto dela. O que importava agora?
Na manhã seguinte, Gina abriu os olhos e, em um flash, tomou consciência de tudo o que havia acontecido naquela noite. Procurou pelo homem em sua cama, espiou o quarto, mas ele não estava lá, nem as roupas dele.
Foi à janela e pôde ver um pontinho negro se afastando ao longe, um rastro de poeira se erguendo atrás de si na imensidão de terra seca. Ela observou o cavaleiro de preto até ele sumir no horizonte e sentiu uma tristeza tão funda, um abandono tão desolador...
Snape era mesmo um homem misterioso. Ele nunca era gentil, nunca admitia gostar das coisas e, acima de tudo, nunca se fixava a nada e a ninguém.
Só que a pequena Weasley o levara ao chão, o fizera esquecer sua imagem de homem frio. E, do fundo de um turbilhão de sentimentos, ela sorriu. Tinha decifrado o enigma, tinha descoberto o que queria sobre ele, e muito mais.
Voltou para sua cama e reparou na pequena mancha de sangue no lençol sujo, que em nada tinha relação com o corte do pé. Segurou o lençol nas mãos por um momento, tentando lembrar os detalhes daquela noite inesperada, as sensações, a expressão safada que nunca esperou ver naquele rosto sério e triste. Sempre, mesmo depois de casada com o afilhado do senhor Black, sempre consideraria aquela como sua melhor noite, aquela em que se sentiu mais mulher, apesar dos 15 anos que possuía.
Devia então chorar? Entristecer-se por ser abandonada, deixada para trás, ignorada?
Ela estava confusa, sem saber como se portar. Optou pela neutralidade, tentando não pensar no assunto quando não estivesse fechada em seu quarto, em seu mundo, onde poderia lembrar-se sem culpa ou medo.
Nos dias que se passaram lentos, o tempo umideceu um pouco e parecia que o Grande Mal se fora mais uma vez, afundando novamente em 20 longos anos de dormência. Nuvens brancas e fofas prometiam chuva em breve, as verduras começavam a vingar de novo na terra árida.
Após ajudar sua mãe na cozinha naquele sábado, Gina pegou que bordado inacabado sobre a mesa e rumou para o seu quarto. Ouviu a notícia ao pisar na sala.
- Morto? - Black parecia não saber se ficava alegre ou triste.
- Morto. Por lobos. - Afirmou categoricamente o senhor Lupin, tirando o chapéu cinzento com uma mão e coçando a cabeça com a outra. - Quim o encontrou a cinco léguas daqui, parece que tinha um lenço ensangüentado no bolso. Está horrível, quase irreconhecível. Vamos enterrá-lo o quanto antes.
- Quem? Quem morreu? - Gina sentiu suas mãos tremerem no pano que segurava.
- Não se preocupe. - Falou Lupin. - Ninguém tão próximo a você. Severo Snape.
Ela teve que se controlar para não derrubar o bordado. Fez a melhor expressão que pôde ao pedir licença e subir para o seu quarto. Mas mesmo assim, antes de se virar, ela viu os olhos cinzentos e nebulosos de Sírius Black assumirem um ar perscrutador. Eles pareciam sondá-la, avaliá-la, testá-la.
Ao desabar na cama, ela soube o que Black havia visto tão mais cedo que ela, provavelmente na passagem anterior de Severo Snape pelo Número 12. Mas Sírius nunca soube o quanto o homem de preto fizera bem para a garota.
Comentários (1)
Eu lembro de já ter lido essa fic. Está sendo muito bom reler de novo. Adoro o shipper *-*
2013-03-09