Senatus Populusque



A região russa de Chukotka sofria um de seus invernos mais rigorosos. Os termômetros marcavam as temperaturas mais baixas das últimas décadas. Aquela madrugada uma molesta tempestade o deixava ainda mais insuportável, principalmente nas altas e desérticas pradarias ao norte. Um lugar isolado, lar da usina elétrica que processava quilos de anti-matéria diariamente para fornecer energia suficiente para abastecer as grandes regiões do Leste Russo.

Finalmente era sábado e grande parte dos operários teria uns dias de folga. Mal podiam esperar para abandonar um pouco aquela monstruosa estrutura de metal e concreto reforçado e aconchegar-se em suas confortáveis e devidamente aquecidas casas com suas famílias. Mas, infelizmente, não tiveram nem ao menos a oportunidade de saber que suas vidas chegavam ao fim.

Uma imensa bola de fogo surgira repentinamente, abrangendo toda a área da usina, consumindo cada milímetro cúbico de matéria, cada uma das centenas de vidas que ali trabalhavam, iluminando o céu encoberto de nuvens acinzentadas e derretendo a grossa camada de neve das proximidades. Não havia onda expansiva ou qualquer estrondo, apenas se ouvia o lamber das chamas e a poderosa nevasca a cair, porém sem alterar a perfeita forma circular da explosão.

CAPITULVM I – SENATUS POPULUSQUE



[b]Moscou – 04h25[/b]


-Aaah, que ótimo! – Choramingou Arthur, levando sua mão ao tornozelo – Por que eu fui querer colocar esta mesinha aqui? – Se jogou no sofá e começou a massagear onde acabava de bater.

-Ha ha, você me deve um jantar agora. Fiz bem em apostar que você acabaria batendo em alguma coisa. – Riu alto Virgilio, na cozinha.

-Cale-se. – Tentando reprimir uma lágrima que saia de seu olho esquerdo, embaçando um pouco sua visão. Tateou embaixo do sofá a procura de seu sapato, enquanto ouvia a televisão berrar a um volume elevado uma notícia de última hora.

Na tela, suspensa a poucos centímetros de uma parede daquele espaçoso salão recém-mobiliado de Arthur e Virgilio, se via nitidamente a imagem aérea de uma gigantesca e circular cratera, de onde saia continuamente uma densa nuvem de fumaça, a qual era dirigida pelo forte vento. O grande contraste entre a terra negra, queimada, e a branca neve que cobria o chão em torno da cratera era surpreendente. O repórter berrava sob o ensurdecedor assoviar do vento.

“...A 230 metros e ainda posso sentir o fedor da fumaça que estamos sobrevoando. As dimensões deste desastre são surpreendentes, não há o menor sinal de ter sobrado alguma coisa da antiga central de anti matéria e suas centenas de funcionários. Se especula que a causa da explosão tenha sido uma falha em algum dos reatores de suspensão, tirando uma grande quantidade deste material do vácuo. Este seria o pior acidente deste tipo em trezentos e vinte anos, nos primórdios da eletricidade a partir da anti-matéria. Ainda não há sinal de outras naves ou veículos que não os da imprensa, esperaremos pelos responsáveis da empresa para perguntar-lhes sobre...”

-O negócio está feio, hein? – disse Virgílio, saindo da cozinha com uma xícara de café em cada mão. Era um jovem de vinte e cinco anos de media estatura e algo magro, porém de bela aparência, apesar de seus verdes olhos estarem contrastados por duas grandes olheiras.

-Obrigado. - Arthur se apressou em pegar sua xícara e beber o morno café, sentindo o prazeroso líquido esquentar-lhe por dentro. Precisaria tomar muito mais no carro se quisesse estar bem desperto para enfrentar a imprensa com boa cara. Ele era o vice-diretor geral da empresa energética proprietária da usina que acabava de evaporar. Vinte minutos antes seu chefe ligara, berrando com desespero que ligasse a TV e fosse imediatamente até o outro lado do país para checar as investigações e dar explicações, inexistentes, aos repórteres. Era demasiado stress para seus inexperientes vinte e sete anos.

Irrompeu pelo quarto, citando em voz alta cada uma das peças de roupa que desejava. Correu uma porta de vidro na parede e de lá tirou cada uma das peças que vestiu desajeitado, deixando por último uma grande e confortável capa. A temperatura ambiente lá fora era de sete graus negativos, segundo seu celular. Estava atrasado, seu chefe reservara um assento num vôo que saía em meia hora. Pegou sua mala de dentro do armário, sobre a qual estavam suas roupas, e saiu saltando até a sala, onde Virgilio bebericava seu café deitado no sofá e vendo a televisão. Foi até ele e, curvando-se, beijou brevemente seus lábios.

-Tentarei voltar esta noite, mas não garanto nada. Então te pagarei esse jantar. – Sorriu – E tente dormir um pouquinho, você parece estar exausto.

-Hunf, como se eu conseguisse dormir tranqüilo quando você não esta. – Fechou a cara. Ultimamente uma implacável insônia o atacava, e isso o deixava mal humorado. – E você sabe, não descansarei enquanto não terminar minha obra prima. – Arthur revirou os olhos enquanto pegava seu ID de cima de uma mesa perto da porta. Seu namorado andava bastante entusiasmado com um novo livro que estava escrevendo. – Boa viagem.

Aquela agora já era uma cena bastante comum. A igualdade social era aplicada rigidamente pela sociedade, o que permitira o crescimento massivo dos casais homossexuais nos quatro cantos do globo, assim como a diversidade étnica. O mundo já não era dividido por raças, já que, cada pas era salpicado por habitantes das mais variadas procedências.

“Com tantos lugares e com tantas épocas para acontecer um acidente desses, tinha de ter acontecido justo com a mais longe de casa no meu dia de folga!” Bufou Arthur enquanto saía de casa e entrava no elevador, rumo à garagem. Mal sabia ele que demoraria a ter um bom descanso.


[b]Moscou – 07h48[/b]


Com largar passadas, o ministro de defesa russo atravessava o salão de sua casa exasperadamente, exclamando o nome de sua secretária. Acabara de receber uma ligação, o chamavam para uma reunião urgente sobre a tal explosão do processador de anti-matéria.

- Kharla! Kharla! Mas que droga, Kharla! – Gritava ele, de olho na tela do televisor, que era reproduzida no ar a sua frente, permitindo-lhe assistir a cobertura do local do acidente enquanto se dirigia a seu escritório.

- O que foi?! – Pergunta sua secretária, uma mulher algo rechonchuda e extremamente loira que corria em sua direção a passadas curtas, porém ligeiras e desengonçadas.

- Venha comigo, temos uma conferência URGENTE! – Enfatizou esta última palavra gritando-a – Por fim esses cabeças-duras receberam o que eu mais temia.

- É sobre aquela explosão? Mas senhor, é realmente improvável que...

- É a maior evidência que tivemos desde muito tempo, Kharla, e vou aproveitá-la ao máximo! – Exclamou com uma segurança incrível, calando sua secretária. Irromperam pela porta daquele escuro escritório sem se incomodarem com as luzes, apenas se acomodaram em duas poltronas que rodeavam uma mesa oval no centro do quarto, o ministro exclamou três palavras-chave e fecharam os olhos, sentindo um ligeiro choque em sua espinha dorsal.

Instantaneamente se viram sentados em uma sala gigantesca com uma decoração bem-iluminada e psicodélica, cujas paredes eram de um fluido aparentemente viscoso e ondulante, dando a sensação de surrealismo. Também se encontravam ali outras sete pessoas, sentadas em suas respectivas poltronas, posicionadas em um circulo incompleto. O Ministro ainda não conseguira acostumar-se ao enjoativo e opressivo ambiente daquelas salas de tele-conferencias, sempre utilizadas pelo governo para reuniões urgentes, mesmo elas sendo bastante infreqüentes.

- Obrigado por juntar-se a nos, Frank. – Saudou com voz rouca o primeiro ministro, sentado a umas quatro poltronas – Bem, creio que todos já estão cientes do motivo principal desta reunião. A explosão do processador de anti-matéria nos pegou, realmente, de surpresa.

- Pois o fato é que não poderia ter vindo em pior momento. – Interrompeu-o um homem magricela ao outro lado do círculo, com voz exasperada – A reserva nos geradores regionais andou escassa, graças à quantidade absurda de energia utilizada nos jogos olímpicos até duas semanas atrás. Em dois dias todo o leste russo estará sem eletricidade.

- Mas, se nós nos concentrarmos em uma racionalização, poderíamos fazer essa reserva durar uns quantos dias a mais. – Contrapôs uma mulher ruiva, sua voz inalteravelmente calma e séria – Enquanto tomamos algumas providências.

- Mas, e quanto à empresa responsável pelo processador? É uma das mais importantes do país e a perda de uma estrutura principal tão cara como aquela pode abalar muito sua situação... Ela emprega mais de 300.000 pessoas, devemos estar preparados para um corte massivo de gastos, tendo de enfrentar-nos a uma crise de desemprego a muito não experimentada. – Comentou outra mulher, a qual não tirava os olhos de uns papéis que segurava.

- Você quer dizer empregava. Quantos empregados devem ter morrido na explosão? Dois, três mil? – Perguntou um homem pomposo, sentado ao lado de Kharla.

- O representante da empresa deve estar a caminho do local da explosão para receber um relatório e falar com a imprensa, então poderemos ter essas respostas e planificar melhor as medidas a serem tomadas. – Respondeu a retórica o primeiro ministro.

As discussões continuaram no mesmo ritmo, tomando o mesmo rumo, rodeando as medidas urgentes a serem tomadas para amenizar o desastre nos vários setores da sociedade. Frank permaneceu calado, mordendo-se a língua, ate não agüentar mais e explodir:

- Mas será possível?! – Ele quase levantara de sua poltrona instintivamente, mas lembrou-se que, se o fizera, seria desconectado – Vocês não conseguem se preocupar com o que de verdade importa? – A incredulidade, a curiosidade e a desaprovação estampavam os rostos de seus companheiros políticos enquanto olhavam para ele, exceto de sua secretária, quem olhava para um lado, desconfortável – Não conseguem nem ao menos desconfiar que isto, na verdade, se trata de um ataque terrorista? Pois sim, senhores, estou certo de que disso se trata!

- Não dá para acreditar... Frank, não nos venha com essas paranóias novamente, por favor! – Suplicou impacientemente seu companheiro pomposo – Você sabe muito bem há quanto tempo essa palavra não significa nada para o mundo.

- Por favor, senhores, ouçam-me. Como ministro da defesa, estou cansado de ver a segurança de nosso país tão desleixada e deixada a segundo plano pelos senhores. Qualquer um, qualquer um poderia aproveitar-se de nosso momento de descaso e quebrar este nosso débil sistema de paz. E, como cidadão russo, não quero viver sob a ameaça de uma guerra em nosso território. Precisamos levar esse assunto mais a fundo e garantir a segurança de nossas famílias. – Frank já perdera a calma na metade de seu breve, porém intenso discurso, fazendo com que seu tom impaciente se tornasse agressivo. Isso assustara a alguns de seus companheiros, enquanto que a outros os deixara, realmente, decepcionados com a atitude imatura do ministro.

- O que faríamos se o Império Democrático Americano descobrisse que estamos investigando sobre algum tipo de atentado terrorista? – Esbravejou de volta um homem não tão corpulento como o pomposo, mas sim mais velho e com uma barba espessa cobrindo-lhe o rosto, o qual Frank reconheceu como o ministro de relações internacionais – Você acha prudente causar algum tipo de polêmica por causa de uma ideologia passada e sem sentido? Os enxeridos da inquisição viriam revirar nossos assuntos de cabeça para baixo e forjar algumas provas para acusar-nos de revolucionários. Imagina! Seria pior que qualquer tipo de guerra!

- Senhores, por favor, acalmem-se. – Interrompeu novamente o primeiro ministro, tentando fazer prevalecer a ordem - Sei que todos ficaram alarmados pela atitude inconseqüente de nosso ministro da defesa, mas apenas existem boas intenções em suas palavras, embora nubladas pela insanidade. – Dedicou um olhar severo a Frank ao dizer essas ultimas palavras – Frank, você poderia mobilizar ajuda militar para selar a área da explosão. Assim evitamos que os civis e a imprensa atrapalhem nas investigações da causa do acidente.

- Eu já fiz isso, SENHOR ministro, pouco antes de me conectar. – Dando-se por vencido, cerrando os dentes e desviando o olhar para o lado, respondeu ao primeiro ministro, enfatizando o “senhor” dando um tom de ironia que o ministro preferiu ignorar. – E creio que já não há o menor sentido a minha presença nesta reunião. – Curva ligeiramente a cabeça, voltando a olhar para os companheiros, e logo dedicou um olhar bruto para Kharla, a qual assentiu silenciosamente. Em seguida, ambos já haviam fechado os olhos e se levantado, desconectando-se da conferência.

- Imbecis! Imbecis, imbecis, imbecis!! – Vociferou o ministro, ao ver-se em seu escritório novamente. Apoiava-se na mesa redonda com uma mão, enquanto que com o outro punho socava a superfície de plástico do móvel.

- Por favor, acalme-se, senhor. Não há nada que possamos fazer – Tentou acalmá-lo sua secretária, depositando gentilmente uma mão no ombro de seu chefe.

- Do que você esta falando, Kharla?! – Esbravejou ele, cuspindo encima da mesa e virando-se para ela com um olhar tomado pela obsessão e pela ira. Isso a assustava muito, odiava os ataques do ministro de defesa, sempre significava trabalho problemático e ordens impulsivas por sua parte. Mas apesar de tudo, tentou manter uma expressão fria e indecifrável, sua marca registrada e pela qual havia se tornado o braço direito daquele homem – Há muito a se fazer, não podemos permitir-los ignorar um problema de tal magnitude! – Desviou o olhar de Kharla por um momento, aliviando-a. Agora caminhava pelo escritório aleatoriamente, olhando para o chão e coçando sua barba rala no queixo – Quero que você reúna aqueles cinco homens e os envie para investigar o local do atentado esta madrugada mesmo. – Voltara a olhar sua secretária – E quero um relatório sobre esta mesa amanhã de manhã e vocês seis sentados nestas cadeiras – Apontava cada item que ia citando.

Por fim se calara e se dirigia, a passos rápidos, à porta, deixando Kharla sozinha.

Ai... – Suspirou, antes de dar um peteleco no ar e discar em teclas invisíveis um número de telefone.


[b]Marte – Central Administrativo – 18h22, horário de Moscou[/b]


O peculiar som de uma rolha explodindo da boca de uma garrafa ecoou por aquele salão tão cinza e gélido, dando uma sensação de calor juntamente com o ar festivo no qual estavam todos os funcionários do Projeto Minerva. A rolha da garrafa de Codornil, uma das últimas que tinham saído à venda e armazenada desde 2.359, chocava contra o teto produzindo um som breve e metálico antes de irromper contra a cabeça loira de Sophia, fazendo-a saltar para trás do susto e seus colegas de trabalho começarem a gargalhar.

Mas claro, não gargalhavam apenas pela cena cômica, por isso Sophia sorriu junto, unindo-se ao coro. Gargalhavam por ser uma noite de celebração. Por fim, depois de vinte anos de árduo trabalho por parte de quase duas gerações de funcionários, fora finalizada a construção do projeto Minerva. Podiam, enfim, descansar, celebrar e, o mais importante, voltar para a Terra quando quisessem.

Após servir-se de um pouco de champanhe e bebericar de sua taça, Sophia afastou-se alguns passos do centro da multidão, dedicando-lhes um sorriso nostálgico, sua mente vagando sem direção pelas lembranças que armazenara nestes seis anos que trabalhara ali. Seis anos! Quando chegara ali isso era uma fração considerável de sua vida, mas agora já não significava nada. Aos seus vinte e oito anos de pura vitalidade, a sempre tão enérgica Sophia, Sofi como preferiam chamá-la os mais íntimos, deixava uma solitária lágrima escorrer pela maçã de seu rosto, deixando uma brilhante trilha por onde passava.

- Ora, ora, ora! Isso merece uma foto! – Ouviu uma voz conhecida exclamar alegremente ao seu lado, assustando-a, acompanhada de um “clique” mínimo. Estavam querendo matá-la do coração aquela noite? – A pequena, porém dura como as rochas do solo marciano, Sofi derramando uma lágrima! – Girou-se, levando automaticamente uma mão ao rosto a fim de secar a lágrima, e viu Giovanni. O Giovanni, pra ser mais concreto. Um jovem de 46 anos, velho companheiro de Sophia e um dos mais veteranos do projeto. Segurava seu telefone apontando a minúscula câmera para o rosto da garota. – Esta vai para minha galeria pessoal de paisagens raras de Marte. Afinal, isso só deve acontecer aqui, hm?

- Hunf, onde você acha que vai com essa velharia? – Forçou uma risadinha irônica, olhando para o objeto que empunhava o companheiro – Já te falei pra comprar um chip inter neuronal – Ao dizer isso, dá uma piscadela com o olho esquerdo. Acabara de tirar uma foto sua também – Esta realmente barato agora que...

- Você sabe que sou da Velha Guarda. – “E põe velha nisso” pensou ela, analisando os vários fios de cabelo prateados que dominavam sua cabeça, escondendo cada vez mais a resistência negra – Mas não me venha mudando de assunto. Quero saber o porquê dessa lágrima. Não será porque você está com medo de não me ver mais? – Olhou para ela, brincalhão, abaixando a voz a um sussurro ao dizer essas últimas palavras.

- Bobo. – Respondeu ela, socando de leve o braço do geólogo. – Estava apenas pensando... Nostálgica... Foi tanto tempo, não é?

- Do que está falando? Você está aqui há apenas seis anos, devia passar metade da sua vida cercada por essa terra vermelha pra você ver se não tem pesadelos. – Era impossível ter uma conversa séria com ele. – Mas venha, venha – A pegou pelo braço, com algo de suavidade – Hoje vou mostrar pra você que os italianos bebemos melhor que qualquer mulher russa.

- Hmm... – Deixou-se levar, fungando uma última vez e, por fim, sorrindo abertamente outra vez. – Quero só ver se você vai poder repetir isso quando estiver em coma alcoólico.


[b]Marte – INSTALACOES NORTE – 20h32, Horário de Moscou[/b]


No meio da avenida principal daquela desértica urbanização apelidada de Minerva 1, podia-se distinguir uma pequena legião de vultos que avançava lentamente em direção ao seu extremo-norte. O sol ainda podia ser percebido por cima de uma avermelhada cordilheira, iluminando, sombriamente, aquelas ruas recém-pavimentadas.

A dianteira daquele grupo era formada por quatro “elementos de segurança”, os antigamente chamados soldados. Todos empunhavam uma espécie de fuzil que apontavam desleixadamente para o chão enquanto caminhavam, conversando animadamente, entre eles, sobre a festa que os esperava ao acabar aquele turno, sem preocupar-se nem um pouco com aqueles que os seguiam de perto.

O resto dos integrantes daquela estranha procissão acompanhava o mesmo ritmo lento das passadas dos elementos de segurança, tal e como mandava a rotina. O indivíduo que caminhava mais a frente, tampouco se importava com aqueles que o ignoravam. Na verdade não se preocupava com nada além de não ter de tirar os olhos de sua companheira.

Sua companheira... Seu corpo, complexamente semelhante ao de um humano, era coberto por uma maravilhosa pelagem amarronzada que se mesclava ao negro em alguns pontos de suas costas. Seu rosto, por outro lado, poderia ser considerado perfeitamente como sendo o de uma canídea normal se não fosse a onipresença daqueles azulados e expressivos olhos, os quais inspiravam uma humanidade indiscutível. Sua companheira. A mais bela de todos os furries.

De fato, todo o resto da legião era formado por estas criaturas, há muito desenvolvidas para suportar a radiação atmosférica dos planetas vizinhos a Terra, Marte e Vênus, acelerando consideravelmente a colonização de ambos os astros. Primeiro Vênus, e agora, finalmente, haviam terminado a primeira fase da colonização do planeta vermelho. Por fim poderiam descansar por um tempo considerável e, o lobo alfa, poderia passar mais tempo com sua companheira.

Nenhuma das criaturas conversava. Não que não pudessem, apenas não queriam. Não gostavam de falar na presença de humanos, apenas se lhes perguntassem algo, o que era pouco freqüente fora da área de trabalho. Esperariam até chegar aos alojamentos, onde poderiam conversar sobre o que quisessem sem o medo de suas palavras serem pegas pelos limitados ouvidos humanos.

- Aaah, cara, eu vou ficar louco da vida se o desgraçado do Ricard já tiver “reprocessado” a garrafa de Codornil da minha bisa... – Exclamou forçadamente um dos elementos, fechando a cara para o céu nublado. – É a herança mais importante que consegui dela!

- Você ainda tem esperança de tomar um gole daquela garrafa?! – Perguntou retoricamente um de seus companheiros – Se bem o conheço, a alma da tua bisa já deve estar sendo filtrada pelos seus rins. – Todos os outros gargalham, nem mesmo o bisneto consegue evitar dar uma risadinha discreta.

Por uma vez Enéias tira os olhos da loba ao seu lado, a qual andava distraída, sem tirar os olhos do chão, para observar um pouco aos humanos. Seres tolos, imaturos e dependentes de sua capacidade engenhosa, criaram aos furries para simplesmente ajudá-los em mais uma tarefa que seu orgulho e ambição não lhes permitiam deixar de lado, apesar dos obstáculos. De certa forma admirava a essa raça, os considerava realmente interessantes de se observar... De longe. Não os tratavam mal. Tampouco podiam. Além dos milhares de milhões de leis pro-furries conseguidas durante este século de existência, precisavam de espécimes em ótimas condições para o árduo trabalho.

- Ei, o que foi? – Um elemento se virara para trás e olhava em direção de Enéias que se surpreendeu. Teriam percebido que os encarava e o estavam mal-interpretando? – Ei! – Ao gritar, começa a caminhar em direção ao bloco mais populoso da legião. O lobo pôde ouvir um baque surdo ao seu lado e, saindo do pequeno transe que lhe invadia pela surpresa, gira o pescoço e em seus calcanhares.

Naquele solo cinza que, havia alguns anos eles mesmos haviam pavimentado, jazia o que, a primeira vista, aparentava um saco de trapos que gemia a alto e bom som. - Mas que demônios, era sua companheira! Sua companheira estava a seus pés, ajoelhada e apertando o próprio estomago sob a capa amarronzada que trajava, o uniforme que todos eram obrigados a vestir. Deixando uns agônicos gemidos escaparem por entre seus dentes, Ela se estremecia e tossia, olhando para o chão, sempre olhando para o chão.

O impulso natural de Enéias foi ajoelhar-se ao lado de sua amada, perguntar-lhe o que acontecia, perguntar-lhe o que estava sentindo. Isso lhe preocupava, e muito! Não era normal (para não dizer “simplesmente impossível”) que aquelas tão robustas e geneticamente roçando a perfeição tivessem doenças. Mas esse impulso foi reprimido pela intervenção de um ombro humano que se interpôs entre ele e a loba, evitando-o de se aproximar, enquanto que os outros elementos “socorriam” a furry. Um lamento ecoa pela, praticamente deserta, avenida. Ela acabava de vomitar.

“Ei, mas o que é isto?” Perguntou-se mentalmente Enéias, olhando para o elemento que lhe bloqueava a passagem sem entender o que estava acontecendo. Coloca uma pata sobre o ombro do humano, umas duas cabeças mais baixo que ele, tentando tirá-lo do caminho sem usar muita força. Mas este, sobressaltado, se gira para o lobo alfa e o aponta com seu fuzil. O movimento drástico surpreende ainda mais a Enéias, deixando-o confuso.

- Por favor, não se aproxime. – Quase balbuciou o elemento, mirando fixamente para cima, bem no meio da testa zoomórfica do lobo. – Nós vamos cuidar dela! – Adicionou ao não ver nenhuma mudança em sua expressão.

“Mas...” Pensa ele, os olhos fixos na fêmea caída, rodeada por dois humanos que a amparavam e tentavam fazê-la levantar-se. “Mas ela...” Seu estômago se embrulhava cada vez mais, a cada gemido que ouvia. “Eu preciso ficar com ela...” Esse sentimento enchia seus pulmões como uma rajada de ar quente, queimando sua garganta, fervendo seu sangue, dificultando sua respiração.

- Deixem-me. – Sem nem ao menos olhar para o elemento e sua arma, dá alguns passos em direção de sua amada, mas o “baixinho” reage. Com voz algo trêmula, porém com potência, lhe ordena que pare, empurrando-o para trás antes de voltar a apontar-lhe com o fuzil, desta vez mais de perto.

- NÃO ME OBRIGUE A ATIRAR EM VOCÊ, ENÉIAS! – Berrou ele, a incerteza e o receio eram evidentes em sua voz jovial – PARA TRÁS!

Mas o lobo não podia obedecer. Quis pensar mais claramente, mas apenas conseguia ver como sua fêmea (SUA!) agonizava e se contorcia no chão, os gemidos, pensou ele, sem deixar-lhe gritar por seu nome, para que estivesse ao seu lado. Precisava dele. Com um simples gesto e deixando que uma expressão de selvagem fúria se apoderasse de seu rosto zoomórfico, golpeou a arma que o elemento lhe apontava tremulamente, fazendo-a voar de suas mãos, e o empurrou com uma potência sobre humana, fazendo-o cair no chão a um par de metros de seu caminho.

Dedicando um olhar assassino àqueles que tentavam fazer a loba levantar-se e grunhindo a alto e bom som, deu alguns passos em sua direção, fazendo-os apavoradamente tentar empunhar seus próprios fuzis à criatura, mas sem dar-lhes tempo de nada, já que abruptamente irrompera contra eles, chutando com a sola de sua pata a um enquanto que arrancava o fuzil do outro.

Porém ele mal pode se dirigir finalmente ao socorro de sua amada quando o um som agudo e quase instantâneo cortou o ar, antes de sentir uma aguda dor em suas costas. Um projétil acabava de penetrar seu corpo, fazendo sua densa pelagem ficar manchada de um vermelho vivo. Meio segundo depois, novo som, novo projétil, desta vez em sua perna esquerda, fazendo-o cair pesadamente no chão. Sua visão começava a ficar embaçada e os ferimentos estavam realmente quentes... Queimavam-lhe por dentro. Mas isso não importava, precisava se levantar, precisava... Suas pálpebras se tornavam realmente pesadas e seu corpo mal lhe respondia, aquela cálida sensação se espalhando por seu corpo até inundar sua consciência no mais doce e profundo sono.


[b]Chukotka – 22h15[/b]


Arthur caminhava por uma improvisada plataforma de plástico que facilitava a locomoção naquele território irregular, fitando com um olhar meio penoso, meio preocupado, aquela gigantesca depressão que lembrava muito uma bacia ou qualquer outro tipo de recipiente semicircular. Sob as centenas de fontes de luz artificial distribuídas ao seu redor recebia um efeito de sombreado que chegava a intimidar o rapaz.

Aquela noite, como de costume naquela época do ano, era impossível avistar qualquer pista da existência de um céu sobre as densas nuvens. Nevava. E era uma neve espessa que se acumulava no solo não coberto pela camada de plástico, escondendo-o aos poucos. Mas nada disso impedia que o clima gélido fosse esquentado por centenas de vozes de repórteres do mundo inteiro e curiosos em geral, todos ansiosos por conseguir o máximo de informações possíveis daquele humilde empregado. Esforçou-se para deixar que as baixas temperaturas tivessem efeito sobre seu corpo, evitando que suasse pela pressão daquele contrastado ambiente. Tentou olhar para cima, dar toda sua atenção para os picos das poderosas montanhas, mas constantemente perdia o contato visual por alguma nave que lhe apontava um maldito jato de luz contra os olhos.

Bem, tudo o que precisava fazer, por hora, era pedir paciência enquanto conversava com os responsáveis pelas investigações. Durante a viagem de carro não conseguira entrar em contato com ninguém que pudesse lhe ir esclarecendo um pouco a situação antes de enfrentar aquelas feras sedentas de informações dramáticas e sensacionalistas. Apertou ligeiramente os olhos quando uns quantos focos de luz dos repórteres foram apontados para ele, tentando se acostumar a quente luminosidade. O volume dos murmúrios aumentou a ponto de transformá-los em gritos frenéticos. “Muito bem, meus fãs, venham até mim...” Pensou Arthur com ironia e tentando manter uma expressão o mais neutra possível.

Subitamente ele estava cercado por pessoas que lutavam por um lugar privilegiado para captar cada mínimo detalhe que escapasse de sua boca. Todos disparavam perguntas e mais perguntas. Muitas sem sentido que ele simplesmente ignorava, e outras muitas que se resumiam em “Que demônios está acontecendo?”.

- Até o momento, tudo o que posso dizer é que a área está sendo analisada por vários especialistas e todos os dados deste pesaroso desastre estão sendo anotados. Por favor, sejam pacientes, assim que obtivermos mais detalhes os informaremos o mais rápido possível. Agora, se me derem licença... – Após pronunciar, com firmeza, essas palavras, forçou caminho entre a avalanche humana até atravessar a linha que retinha os abelhudos longe do desastre, soltando um discreto suspiro e alisando sua roupa fina, porém perfeitamente aquecida.

Quase imediatamente aparece a sua frente, pisando ruidosamente na superfície de plástico, um homem calvo, com exceção de um par de tufinhos que ele insistia em cultivar. Reconheceu quase imediatamente a Ford, o supervisor-chefe de toda a área Leste russa, com quem já almoçara no início de sua carreira. Ele podia nunca tê-lo confessado, mas odiava a Arthur por ter conseguido o posto que tanto almejara. Mas apesar de tudo, Arthur o achava divertido.

- Finalmente chegou! – Exclamou ele, tentando vencer os barulhentos às costas de Arthur, com um rosto rabugento e um tom seco que Arthur recebeu com um sorriso interno – Isto é um desastre, um desastre! – Pegou de sua manga e o puxou, com pressa, em direção a borda da cratera formada pela explosão, onde uma improvisada escada de plástico facilitava a descida pelos aparentemente mais de vinte metros de terra superaquecida. Arthur podia ver como a explosão recortara um círculo quase perfeito, consumindo qualquer mínimo elemento que encontrasse, deixando apenas metade de um pavilhão do antigo processador para contar a história. Seu interior era bem visível a uns poucos metros dali. – Se não fosse nossos descapacitadores, sinceramente, não sei o que poderia ter acontecido! – Arthur não dava real atenção à, cada vez mais indignada e exasperada, voz de Ford, pegando apenas algumas reclamações soltas enquanto observava como umas quantas dezenas de homens caminhavam pelo fundo da cratera e pelo último nível da metade do pavilhão restante.

‘’Falei há uns quantos minutos com o ‘chefe’ da investigação’’ Por fim suas palavras começavam a interessar ‘’Disse que queria se encontrar conosco para nos contar algo que descobriu. Embora ache muito difícil que seja algo importante’’ Ao dizer as últimas palavras, deu um pequeno chute no declive rochoso, levantando uma nuvenzinha de poeira ‘’não restou muito do que descobrir. ’’

Arthur afirma em silêncio. Ainda duvidava da necessidade de sua viagem. Claro, seu rosto era muito mais indicado para sair na TV do que a do velho Ford, mas não podia aceitar que algo tão absurdo lhe fizesse atravessar aquele enorme país. Quando, por fim, terminaram as escadas e tocaram o solo rochoso, tomando exímio cuidado para não perderem o equilíbrio, um dos homens que circulavam por ali, comunicando-se aos gritos, correu até ver seu rosto.

- Por favor, senhores, acompanhem-me – Disse uma potente voz feminina sob a máscara, branca como o resto de sua roupa antes de se virar e caminhar em direção dos restos do pavilhão, os andares subterrâneos do qual formavam um tipo de portal negro que destacava entre a terra onde começava a acumular um pouquinho de neve. Os dois a seguiram – encontramos uma coisa interessante por aqui.

- Alguma pista sobre a causa disto tudo? – Chutou Ford impacientemente

- Um sobrevivente. – Disse secamente, sem nem ao menos virar-se para encará-los. Ambos emudeceram. Não era necessário ser nenhum especialista para saber que a radiação produzida pelas chamas intensas, dizimariam qualquer forma de vida num raio quase duas vezes maior que o alcance da explosão e eram mais do que cientes de que aquela velha estrutura não era capaz de suportar tal radiação.

Ambos a seguiram, mantendo as bocas fechadas até chegarem dentro do negro portal. Entrando em um corredor de uma antiga instalação que, sem dúvidas, não pertencia a mais moderna construção do processador de anti-matéria, já que o solo era forrado por um gasto artesanato e as desgastadas paredes eram de concreto. Não sabiam se haviam aproveitado alguma outra estrutura para construir a original, mas deram pouca importância. A idéia de um sobrevivente daquele desastre inundava sua atenção.

Mais a frente do corredor a escuridão era interrompida por fontes de luz artificial que sustentavam quatro homens, todas apontando para uma porta dupla de puro metal. Aparentava ser grossa, mas era facilmente forçada pelos elementos de branco. Pelo chão haviam espalhados vários instrumentos.

- Após não encontrar nenhuma pista sobre a causa do colapso, o que acho muito difícil que aconteça, nos chamou muito a atenção esta antiga estrutura e alguns homens vieram inspecionar e, casualmente, detectaram uma fonte de calor dentro desta sala. – Explicava a especialista, aparentemente a chefe, apontando para o portão que estava a ponto de ser arrombado – Investigamos e pudemos notar que esse calor era, evidentemente, causado por atividade celular. Era fraca no começo, mas agora já está bem próxima da de um ser humano. – Apontou desta vez para uma pequena tela que flutuava a uns poucos centímetros do chão, onde alguns dados eram registrados.

- Mas isso é...

- Impossível. Sim, sabemos. Por isso estamos preparados para qualquer coisa... – Levou uma mão a sua cintura, tocando uma pequena arma de fogo – Não são raros os casos de mutação por radiação, se é que me entendem. – Deu uma risadinha nervosa, o que chegou a arrepiar a espinha de Arthur.

Mas afinal, o que esperavam encontrar ali? Um zumbi devorador de cérebros como nos ‘’shows de imagens’’? Algum monstro aterrorizante que poderia matá-los num piscar de olhos? Tinha estudado a composição da anti-matéria como para saber que...

- PRONTO! – Berrou um dos homens de branco no momento em que a porta dupla de metal oxidado completava um arco até cair pesadamente no chão, com um estrondo que fez tudo estremecer e uma cortina de poeira impregnar o ar. Não demoraram para apontar todos os focos de luz para dentro da sala, iluminando o pouco que não era tapado pela nuvem acinzentada. Arthur pôde notar como a mulher, ao seu lado, apertava com força a arma que levava a cintura.

Quando a poeira por fim havia se dispersado um pouco, todos puderam distinguir, no centro da câmara, um vulto. Melhor dizendo, O vulto. O vulto do corpo de um homem magro, de coloração mais que pálida e completamente nu. Tremia incontrolavelmente, o que não estranhava nada devido às temperaturas próximas dos 40 graus negativos. O surpreendente era como aquele corpo seguia funcionando, como resistira a todo aquele frio intenso, como havia parado ali e por que demônios estava nu. A cabeça de Arthur começava a doer, tanto por ter aspirado um pouco de pó, ao qual era alérgico, quanto por fazê-la trabalhar demasiado naquelas perguntas sem lógica.

CONTINUA

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