Capitulo V




O som da madeira contra a madeira, o estrondo violento de uma porta e os lamentos de uma mulher fizeram que Gina esquecesse seu orgulho e descesse a escada a toda velocidade. Quase tinha chegado ao final quando ouviu o disparo.
Então, a porta para a que corria se abriu lentamente. As paredes giraram ao seu redor e depois desapareceu.
—Vamos, querido, acorde. — Gina voltou a cabeça, gemeu e estremeceu.
—Vamos, garota, abre esses enormes olhos azuis, que quero vê-los.
Gina obedeceu, e se encontrou olhando para Harry cara a cara.
—Não teve graça.
Aliviado, Harry sorriu e lhe acariciou a bochecha.
—O que é o que não teve graça?
—Que se escondesse lá em cima para me assustar. — piscou para voltar a enfocar o olhar e descobriu que estava deitada em seu colo, no sofá do salão — Deixe-me levantar.
—Espera um pouco. Não é conveniente ficar em pé de repente.
Ajudou-a a se ajeitar um pouco, lhe apoiando a cabeça em seu ombro.
—Estou bem.
—Está muito pálida. Se tivesse algo a daria para beber. Mas devo admitir que nunca vi uma mulher desmaiar de forma tão graciosa. Até tive tempo de segurá-la antes que batesse a cabeça contra o chão.
—Se espera que o agradeça, esquece. Foi culpa sua.
—Obrigado. Sinto me lisonjeado por uma mulher desmaiar ante minha visão. —disse, passando um dedo pela sua face — Conseguiu recuperar um pouco de cor.
—Se esta for sua forma de fazer negócios, pode agarrar seu trabalho e levar para... — apertou os dentes — Deixe-me levantar.
—Espere um pouco. — insistiu — Por que não me conta o que aconteceu?
—Sabe muito bem! — protestou, sacudindo o pó das calças.
—A única coisa que sei é que entrei bem a tempo para vê-la interpretar A Dama das Camélias.
—Nunca desmaiei em toda minha vida. — disse, dando-se conta horrorizada de que o tinha feito pela primeira vez e diante dele — Se quiser que eu trabalhe em sua casa, não acho que vai me convencer me atemorizando.
Harry a olhou atentamente e levou a mão ao bolso para pegar o cigarro. Depois lembrou que tinha deixado de fumar exatamente a uma semana antes.
—Como assustei-a?
—Andando pelo andar superior, abrindo e fechando portas, e fazendo todos aqueles ridículos sons.
—Talvez deveria começar dizendo que me atrasei. Havia problemas na fazenda, e saí há uns quinze minutos.
—Não acredito.
—Não a culpo.
Se não podia fumar, teria que se mover. Ficou em pé e caminhou para a lareira. Teve a impressão de sentir cheiro de fumaça de um fogo que acabara de se apagar.
— Denis estava lá. — disse Harry — E Martin também. Agora é prefeito.
—Sei quem é Martin.
—Tinha que ter conhecido ele na Escola. — murmurou Harry — Era um verdadeiro imbecil. O caso é que ele estava na fazenda, e continuou lá quando parti. Há uns quinze minutos. Pedi o jipe de Denis emprestado, para subir a colina. Estacionei-o e entrei pela porta bem a tempo de ver como estava branca.
Voltou a caminhar para ela, tirou o casaco e o jogou sobre as pernas.
—A propósito — acrescentou — como conseguiu entrar?
—A porta estava aberta. — disse olhando-o fixamente.
—Estava fechada.
—Estava aberta. — insistiu.
—Que interessante.— disse tirando chaves do bolso.
—Diz a verdade? — perguntou Gina com insegurança.
—Asseguro que sim. Por que não me diz o que você ouviu?
—Primeiro ouvi passos, mas não havia ninguém. Depois ouvi uns rangidos lá em cima, de modo que comecei a subir. Fazia frio, muito frio, e me assustei, então subi muito depressa.
—Assustou-se e subiu em vez de sair?
—Achei que estava lá em cima. Ia dar uma bronca em você. — sorriu fracamente — Estava furiosa por ter me assustado. Depois, olhei o corredor, e tive a impressão de que não estava aqui. Ouvi um ruído estranho, como se alguém raspasse uma madeira, uma porta batendo, e um choro de mulher. Então, desci correndo. Estava assustada — confessou.
Harry voltou a sentar-se junto a ela e rodeou seus ombros com um braço.
—Quem não iria estar?
—Por fim. — concluiu Gina — quando quase cheguei aqui embaixo, ouvi um disparo. De pistola. Quando vi que a porta se abria, não agüentei mais.
—Sinto ter chegado tarde. — de forma inesperada, inclinou-se sobre ela e a beijou na face—. Sinto muito.
—Isso é o de menos.
—O caso é que algumas pessoas sentem coisas nesta casa e outras não. Considerava você uma mulher fria e prática.
Gina cruzou os braços.
—Mesmo?
—Absolutamente. Mas parece que tem mais imaginação do que esperava. Esta melhor agora?
—Sim.
—Tem certeza que não quer voltar a se apoiar em mim?
—Tenho, obrigado. — Harry a olhou fixamente e tirou uma teia de aranha de seu cabelo.
—Quer sair daqui?
—Certamente.
—Quero levá-la para outro lugar. — disse Harry, pegando seu casaco.
—Não é necessário. Já disse que estou... — ficou em pé e esteve a ponto de cair — Bem. — apressou em dizer.
—Negócios, querida. — Afastou seu cabelo do rosto e contemplou seu lóbulo, com uma pedra azul — No momento., acho que podemos encontrar algum lugar mais quente e acolhedor para discutir os detalhes.
Gina decidiu que aquilo era bastante razoável.
—Certo.
Agarrou sua maleta e caminhou para a porta, diante de Harry.
—Gina?
—Sim?
—Seu rosto esta sujo.
Riu ante o olhar assassino da mulher e a segurou pelo braço. Apesar de seus protestos, não a soltou até chegar ao final do terreno.
—Tem que olhar por onde pisa. — explicou.
—Tenho o costume de olhar. — respondeu ela. Harry desceu pelo caminho, passou junto ao carro de Gina e continuou andando.
—Eu pensei que eu fosse seguir você.
—Já que não acredito que queira dizer que iria comigo até o fim do mundo, basta que usemos um veículo. Depois a trarei de volta.
—De onde?
—Lar, doce lar, querida.
A fazenda dos Potter era maravilhosa entre a neve, iluminada pela luz do sol. Uma casa de pedra com varanda coberta, um telhado arqueado no celeiro, algumas casas antigas e alguns cães cor areia que correram para eles latindo de alegria, formavam a cena.
Tinha passado por ali em muitas ocasiões; quando os campos estavam recém semeados e quando estavam preparados para a colheita. Até parara uma ou duas vezes quando Denis dirigia o trator. Parecia que ele se encaixava perfeitamente ali.
Mas não podia imaginar Harry Potter na mesma cena.
—Suponho que não voltara a se ocupar das tarefas do campo.
—Certamente que não. Denis adora isto, e Carlos suporta. Rony considera um bom negócio.
—E você? — perguntou, inclinando a cabeça enquanto estacionava.
—Odeio.
—Não sente nenhuma ligação com estas terras?
—Eu não disse isso. Disse que odeio o trabalho da fazenda.
Harry desembarcou do carro e saudou os cães. Antes que Gina pudesse sair do veículo, Harry a levantou nos braços.
—Importaria de me deixar no chão? Sou perfeitamente capaz de andar pela neve.
—Botas de cidade. Isso sim, certamente, são muito bonitas. — comentou enquanto a levava para a varanda — Tem os pés muito pequenos. Saiam fora. — disse aos cães.
Abriu a porta, empurrou-a com um cotovelo e levou Gina para dentro da casa.
—Ei, Harry! O que nos traz?
—Consegui uma mulher por aí. — respondeu, piscando um olho para seu irmão.
—Muito bonita. — colocou mais lenha na lareira e se endireitou — Como está, Gina?
—Estarei ótima assim que seu irmão me soltar.
—Tem café quente? — perguntou Harry.
—Claro. A cozinha não fecha nunca.
—Perfeito. Agora, saia.
—Isso não foi nada educado. — comentou Gina, tirando o cabelo dos olhos enquanto Harry a levava para a cozinha.
—É filha única, não é?
—Sim, mas...
—Eu imaginava. — deixou-a em uma cadeira da cozinha — Como quer o café?
—Puro e sem açúcar.
—Isso que é uma mulher.
Tirou o casaco e o pendurou em um gancho da porta, junto à pesada jaqueta de trabalho de seu irmão. Pegou duas xícaras brancas de um armário.
—Quer comer algo com o café? — perguntou a Gina — Alguma mulher esperançosa passa a vida dando de presente biscoitos para Denis. Será que é pela cara bonitinha e inocente?
—Bonita, talvez. Os quatros são muito bonitos. — tirou o casaco com indiferença — Mas não quero biscoitos.
Harry colocou uma xícara fumegante frente a ela. Depois deu a volta a uma cadeira e se sentou ao contrario, com o respaldo entre as pernas.
—Tampouco quer decorar minha casa?
Gina pensou um pouco antes de responder.
Observou atentamente o café e bebeu um gole. Era excelente.
—Tenho várias coisas que acredito que parecerão muito adequadas para mobiliá-la. Também investiguei um pouco sobre as cores e as malhas que era costume ser utilizado naquela época.
—É isso um sim ou um não?
—Um sim. Claro que vou aceitar o trabalho. — o olhou fixamente aos olhos — E vai sair bem caro para você.
—Não está preocupada?
—Eu não disse isso, exatamente. Mas agora que sei o que é que me espera, asseguro-o que não voltarei a desmaiar a seus pés.
—Agradeço por isso. Me deu um tremendo susto. — esticou o braço para brincar com os anéis de Gina — Descobriu em sua investigação algo sobre os dois cabos?
—Que dois cabos?
—Deveria ter perguntado à velha senhora Metz. Adora contar a história. Que relógio mais estranho. — comentou, colocando um dedo entre as duas correias elásticas.
—É de 1920, aproximadamente. Naquela época, era muito moderno. E devo acrescentar que é muito bom, porque funciona perfeitamente. O que aconteceu com os cabos?
—Parece que durante a batalha, dois soldados se separaram de seu regimento. O campo de milho que há ao leste estava cheio de fumaça, e negro por causa das explosões de pólvora. Parte das tropas se escondeu entre as árvores, e muitos outros morreram por aqui.
—Parte da batalha aconteceu aqui, em seus campos? — perguntou.
—Sim, alguma. Temos até alguns marcos comemorativos. O caso é que estes dois cabos, um da união, e o outro confederado, perderam-se. Eram uns meninos, e provavelmente, estavam aterrorizados. O azar foi se encontrarem no bosque que forma o limite entre a propriedade dos Potter e a dos Barlow.
—OH. — colocou o cabelo para trás, pensativa — Tinha esquecido que os terrenos são ligados.
— Esta casa está a menos de um quilômetro da dos Barlow, atravessando o bosque. O caso é que se encontraram cara a cara. Se algum dos dois tivesse tido um pouco de bom senso, teriam corrido para se esconder e agradecer por estarem salvos. Mas não foi assim. — voltou a beber um gole de café — Conseguiram se ferir mutuamente. Ninguém sabe quem fugiu primeiro.
O soldado do sul chegou até a casa dos Barlow. Estava gravemente ferido, mas conseguiu subir na varanda. Um dos criados o viu, e como simpatizava com o sul, colocou-o para dentro. Ou talvez só viu um menino que sangrava e fez o que considerou razoável.
—E morreu na casa. — murmurou Gina, desejando não ver a cena com tanta claridade.
—Sim. O criado correu para avisar a sua senhora. Era Abigail O'Brian Barlow, dos O'Brian da Carolina. Abigail acabava de dar ordens de que subissem com o moço para tratar de suas feridas quando seu marido chegou. Disparou no moço na mesma escada.
—Meu Deus! Por que?
—Não queria que sua esposa tocasse um inimigo. Ela morreu dois anos depois, em sua casa. Dizem que jamais voltou a dirigir a palavra a seu marido, claro que antes daquilo tampouco tinham muito que dizer. Supõe-se que seu casamento fora de conveniência. Segundo os rumores, não a tratava muito bem.
—Em outras palavras. — disse Gina, tensa — Era um canalha.
—Essa é a história. Ao que parece, a sem hora Barlow era muito sensível e se sentia muito infeliz.
—E apanhava. — acrescentou Gina, pensando em Luna.
—Não acredito que naquela época se falasse muito dos maus tratos. E o divórcio — encolheu os ombros — não devia ser uma opção a considerar, dadas as circunstâncias. O caso é que o fato de matar aquele pobre menino diante dela deve ter sido a gota que encheu o copo. A última crueldade que pôde suportar. Mas isso é só a metade. A metade que conhece a cidade.
—Então a história continua. — suspirou e ficou em pé — Acho que preciso de outro café.
—Sim. O ianque fugiu em direção contrária. — agradeceu quando o serviu outra xícara de café — Meu bisavô o encontrou perto da casa. Tinha perdido seu filho maior no Bull Run. Lutava com o regimento contrário.
Gina fechou os olhos.
—E matou o menino.
—Não. Talvez tenha passado isso por sua cabeça. Talvez pensasse em deixar que sangrasse até a morte. Mas o pegou e levou para cozinha. Colocou-o na mesa e cuidaram do rapaz, sua mulher, suas filhas e ele. Não era esta mesa. — acrescentou com um sorriso.


Continua...


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