Verdades e Mentiras
Verdades e Mentiras
Não foi uma pergunta justa — Harry gritou, lutando para libertar-se. — Você me enganou! Como eu poderia saber o que Belatriz gosta de comer?
— Não é da minha conta o que você sabe ou não — disse o guarda da ponte. Ele ergueu a espada ainda mais alto até que a sua lâmina curva ficou na altura do pescoço de Harry.
— Não! — gritou o garoto. — Espere! — Naquele momento de terror, ele só conseguia pensar no Cinturão de Deltora e no topázio. Se nada fizesse para evitar, aquele gigante de olhos dourados certamente o mataria e tiraria o Cinturão de seu corpo. Talvez, o entregasse a Belatriz. E então Deltora estaria eternamente perdida para Voldemort.
"Preciso atirar o Cinturão no abismo", pensou, desesperado. "Preciso me certificar de que Rony e Jasmine me vejam fazê-lo. Assim, eles terão alguma chance de encontrá-lo novamente". Se ele pudesse deter o gigante até conseguir jogar o Cinturão...
— Você é falso e trapaceiro! — ele gritou, deslizando as mãos sob a camisa e procurando o fecho do Cinturão. — Não admira que esteja condenado a guardar esta ponte até que verdades e mentiras se transformem em coisas iguais.
Como esperara, o homem parou. A raiva lhe iluminava o olhar.
— Meu sofrimento não foi conquistado justamente — ele disparou. — Belatriz tomou minha liberdade por pura maldade e me condenou a ficar preso a este pedaço da terra. Se você está tão interessado em verdades e mentiras, jogaremos outro jogo.
Os dedos de Harry ficaram paralisados sobre o Cinturão. Mas a ponta de esperança que percorrera o seu coração diminuiu e desapareceu ao ouvir as próximas palavras do inimigo.
— Jogaremos para decidir de que forma você irá morrer — o homem esclareceu. — Você pode dizer uma coisa e nada mais. Se o que disser for verdade, vou estrangulá-lo com minhas próprias mãos. Se o que disser for mentira, vou decapitá-lo.
Harry curvou a cabeça, fingindo refletir, enquanto os dedos lutavam secretamente para abrir o Cinturão. O fecho estava emperrado e não abria. Sua mão pressionava o topázio — conquistado a duras penas e prestes a ser perdido, se ele não se apressasse.
— Estou esperando — avisou o guarda da ponte. — Faça a sua declaração.
"Declaração falsa ou verdadeira? Seria melhor ser estrangulado ou decapitado? Nenhum dos dois", pensou Harry, sério. E, então, uma idéia fantástica surgiu-lhe como um raio luminoso.
Olhou com audácia para o homem que aguardava.
— Minha cabeça será cortada — ele disse com clareza. O homem hesitou.
— E então? — Harry gritou. — Não escutou minha declaração? É falsa ou verdadeira?
Mas ele sabia que o inimigo não tinha a resposta. Se a afirmação fosse verdadeira, o homem certamente o estrangularia, tornando-a falsa. E, se fosse falsa, ele poderia cortar-lhe a cabeça, tornando-a verdadeira.
Enquanto se perguntava como conseguira ter tal idéia naquele momento de pânico, a enorme figura à sua frente soltou um suspiro profundo que o fez estremecer. Nesse momento, Harry arregalou os olhos e gritou, assustado. A carne do homem começava a se encrespar e a derreter, mudando a sua forma.
Penas marrons brotavam em sua pele. Suas pernas encolhiam, os pés se espalhavam e se transformavam em garras. Os braços e ombros poderosos estavam se dissolvendo e assumindo a forma de asas enormes. A espada encurvada estava se tornando um bico curvo e ameaçador.
Em instantes, o homem se fora e em seu lugar encontrava-se um pássaro imenso e orgulhoso de olhos dourados parado sobre o rochedo. Com um grito triunfante, ele abriu as asas, elevou-se no ar e uniu-se aos demais pássaros que pairavam no vento.
Estou fadado a guardar esta ponte até que a verdade e a mentira se transformem numa coisa só.
Harry olhou o pássaro fixamente, o corpo trêmulo. Ele mal conseguia acreditar no que acontecera. O guarda da ponte era um pássaro e fora obrigado a assumir a forma humana pela magia de Belatriz. Ele ficara preso ao solo, como se estivesse realmente acorrentado, por causa da maldade dela.
E a resposta ardilosa de Harry havia quebrado o feitiço de Belatriz. Ele pensara somente em salvar a própria vida, mas quebrara o feitiço da bruxa. O pássaro estava livre, afinal.
Um som interrompeu-lhe os pensamentos acelerados. Ele olhou a ponte e, para seu horror, percebeu que ela começava a se desintegrar. Sem pensar mais, saltou sobre ela, agarrou os corrimões de corda com ambas as mãos e correu como nunca imaginara ser capaz sobre o abismo assustador.
Ele pôde ver Rony e Jasmine parados na beira do penhasco mais adiante, estendendo-lhe os braços. Ouviu suas vozes gritando. Atrás dele, as tábuas chocavam-se umas às outras, soltando-se de suas amarras e mergulhando no rio nas profundezas do abismo.
Harry sabia que em breve a própria corda se soltaria e já a sentia cada vez mais frouxa. A ponte cedia e balançava loucamente enquanto ele corria.
Ele só conseguia pensar em correr mais depressa, mas se encontrava apenas na metade do trajeto e não podia correr rápido o bastante.
Agora, eram as tábuas que lhe escapavam de baixo dos pés! Ele tropeçava, caía, as cordas queimando-lhe as mãos que tentavam agarrar-se a elas. Ele pendia no ar, sem ter onde apoiar os pés. E, enquanto se encontrava ali, dependurado, indefeso e açoitado pelo vento, as tábuas à sua frente — as que eram o seu único caminho para a segurança — começaram a resvalar para os lados e caíram no rio.
Dolorosamente, uma mão sobre a outra, ele começou a balançar-se nas cordas frouxas que eram tudo o que restava da ponte, tentando não pensar no que estava abaixo dele, no que aconteceria se ele se soltasse.
"Estou jogando um jogo em Del", ele disse a si mesmo com fervor, ignorando a dor nos punhos fatigados. "Há uma vala enlameada sob meus pés. Meus amigos estão me observando e vão rir se eu cair. Tudo que preciso fazer é continuar — uma mão depois da outra.”
Então, ele sentiu um solavanco e soube que as cordas, atrás dele, haviam se soltado do penhasco. No mesmo instante, foi sacudido para a frente e moveu-se rapidamente na direção da pedra nua do penhasco. Em segundos se chocaria contra ela e seus ossos se despedaçariam na rocha rosada. Ele ouviu o próprio grito e os gritos de Rony e Jasmine, flutuando ao vento. Fechou os olhos com força...
Com um movimento rápido, algo enorme precipitou-se por baixo dele e o balanço nauseante foi interrompido quando sentiu algo macio e morno no rosto e nos braços. Ele estava sendo erguido cada vez mais para cima, e o forte bater de asas poderosas soava mais alto em seus ouvidos do que o vento.
Em seguida, foi agarrado por mãos ansiosas e tropeçou na poeira do solo firme. Seus ouvidos tilintavam. Ele pôde ouvir gritos e risos que pareciam muito distantes. Contudo, quando abriu os olhos, viu Jasmine e Rony inclinados sobre ele e deu-se conta de que eram eles que gritavam de alívio e felicidade.
Harry sentou-se, fraco e atordoado, agarrado ao chão. Seu olhar encontrou os olhos dourados do grande pássaro que, se não fosse por Harry, ainda estaria preso à terra exercendo a função de guarda da ponte.
Você me devolveu a vida, seus olhos pareciam dizer. Agora lhe devolvi a sua. Minha dívida com você está paga. Antes que Harry pudesse falar, o pássaro fez um movimento com a cabeça, abriu as asas e voou, reunindo-se aos companheiros mais uma vez e voando ao lado deles, prescrevendo voltas e gritando, para longe, ao longo do abismo.
— Você sabia que ele era um pássaro — Harry disse a Jasmine mais tarde, enquanto prosseguiam devagar. Embora ainda estivesse dolorido e fraco, havia se recusado a descansar muito tempo. A simples visão dos penhascos o atordoava. Ele queria afastar-se deles o mais depressa possível.
Jasmine confirmou com um gesto e olhou de relance para Kree, que se encontrava pousado em seu ombro ao lado de Filli.
— Eu senti — ela contou. — E senti muita pena dele quando percebi a dor e a ânsia em seu olhar.
— Ele deveria estar atormentado — resmungou Rony. — Mas teria nos matado sem questionar.
— Ele não pode ser censurado por causa disso. Foi condenado a executar a vontade de Belatriz. E Belatriz é um monstro — ela replicou, séria.
O desprezo deixava o olhar dela sombrio e, ao lembrar-se da charada que quase o levara à morte, Harry pensou que agora sabia o motivo. Ele esperou até que Rony tomasse a dianteira e voltou a falar com Jasmine.
— Você não teme Belatriz por si própria, mas por Kree, não é mesmo? — ele indagou com suavidade.
— Sim — ela confirmou, olhando fixamente para a frente. — Kree fugiu para as Florestas do Silêncio após ter escapado dela, há muito tempo. Ele estava fora do ninho quando ela capturou sua família. Assim, de certa forma, ele é como eu. Eu também era muito jovem quando os Comensais levaram meus pais. Kree e eu estamos juntos há muitos anos. Mas acho que chegou a hora de nos separarmos. Eu o estou conduzindo para o perigo. Talvez para a morte terrível que ele teme mais do que tudo. Não posso suportar isso.
Kree gorjeou baixinho, Jasmine ergueu o braço e fez com que ele pousasse em seu pulso.
— Eu sei que está disposto a arriscar, Kree, mas eu não. Já falamos sobre isso. E eu já tomei minha decisão. Por favor, volte para casa, nas Florestas. Se eu sobreviver, voltarei. Se não, pelo menos você estará em segurança.
Ela parou, ergueu o braço no ar e sacudiu-o levemente.
— Vá! — ordenou. — Vá para casa!
Kree bateu as asas para equilibrar-se e grasnou em protesto.
— Vá! — Jasmine gritou. Ela agitou a mão bruscamente, e Kree foi sacudido de seu pulso. Ele pairou no ar, grasnando, voou em círculo acima deles uma vez e se afastou.
Jasmine mordeu o lábio e continuou a andar sem olhar para trás enquanto Filli guinchava tristemente em seu ombro.
Harry procurou dizer algo que a consolasse, mas não encontrou nada apropriado.
Eles alcançaram um pequeno bosque e começaram a caminhar por uma trilha estreita que atravessava a sombra verde.
— Belatriz detesta tudo o que é bonito, vivo e livre — Jasmine disse, por fim, quando penetraram em uma clareira onde samambaias verdes se aglomeravam e os galhos das árvores formavam arcos sobre suas cabeças. — Os pássaros dizem que no território que cerca o Lago das Lágrimas houve antes uma cidade chamada D'Or — uma cidade parecida com um jardim, com torres douradas, pessoas felizes e flores e árvores em abundância. Hoje é um lugar morto e triste.
Ela agitou a mão, mostrando os arredores.
— Tudo isto aqui vai ficar morto e triste também quando Belatriz e seus filhos tiverem terminado sua obra maligna.
Mais uma vez, o silêncio caiu sobre eles e, nesse silêncio, deram-se conta do farfalhar das árvores ao redor da clareira.
— Inimigos! — Jasmine sussurrou, alerta. — Inimigos se aproximam!
Harry nada ouvia, mas já aprendera a não ignorar as advertências de Jasmine. As árvores naquele lugar eram estranhas para ela, mas mesmo assim conseguia compreender os seus sussurros.
Ele saltou para a frente e agarrou o braço de Rony. Este parou e olhou ao redor, surpreso.
— Comensais da morte — ela murmurou, o rosto pálido. — Toda uma tropa, e está vindo nesta direção.
N/A: Capitulo 2 e 3 postados...
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