Meia-noite na sala fantasma



Meia-noite na sala fantasma

Durante as duas semanas que antecederam as provas práticas, nada teria agradado mais à Alice e Érika do que aproveitar os últimos finais de tarde ensolarados do semestre conversando debaixo da velha figueira. O clima parecia contrariar de propósito o calendário escolar das garotas, já que os dias cinzentos do início do mês haviam dado espaço a uma breve despedida do verão, com direito a muito sol e calor, justamente na véspera das avaliações.


Suando sob sua capa e tentando aspirar o mínimo possível do vapor com cheiro de gasolina que se desprendia de sua poção para emudecer, Alice tentava lembrar-se de qual era a cor ideal que a poção deveria atingir para que fosse finalizada.


-“Por Merlin, que cheiro é esse?” – tossiu a professora Fernandes, aproximando-se do caldeirão da garota.


-“Cheiro de gasolina, professora.” – respondeu Alice, resignada.


-“E foi ‘gaselina’, seja lá o que for isso, que eu pedi que a senhorita fizesse?”


-“Não, senhora.” – falou a menina, abaixando os olhos para o conteúdo de seu caldeirão, que estava laranja quando deveria estar branco-pérola.


-“Então eu imagino que a senhorita já saiba qual será a sua nota no teste prático.” – sentenciou a professora, movendo a varinha em um gesto discreto que fez com que toda a poção de Alice desaparecesse sem deixar vestígios.


Completamente sem ânimo, a garota saiu da sala de Poções e dirigiu-se ao andar superior. Como ainda faltavam algumas horas para o almoço, ela decidiu sentar-se em dos bancos do pátio interno, à beira da Fonte dos Astros.


-“Hei, o que vocês está fazendo aqui?” – era um monitor do quinto ano, da casa de Esmeralda – “Ainda é cedo para sair da sala de provas.”


-“A Fernandes evaporou a minha poção.” – explicou a garota, ao que o monitor acenou com a cabeça, compreensivo.


-“Ela também já fez isso comigo, quando eu estava no terceiro ano. Sou Mark Taylor.” – acrescentou, estendendo a mão para a garota.


-“Alice Elsea, muito prazer.”


-“É todo meu!” – sorriu ele.


-“Mas e você, porque não está fazendo prova?”


-“Esta manhã estamos tendo avaliações de matérias que eu não curso, então fui escolhido para patrulhar os corredores.” – explicou Mark, mirando o céu, pensativo – “Coisa de monitor, sabe como é.” – acrescentou, ao que Alice concordou com a cabeça.


-“Então,” – continuou ele – “que poção que você estava tentando preparar que não deu certo?”


-“Poção para emudecer.”


Mark riu, fazendo duas covinhas, uma em cada bochecha, preguearem seu rosto redondo.


-“E ficou com cheiro de... como os trouxas chamam mesmo? Ah! ‘Gaselina’?”


-“Gasolina”. – corrigiu a garota.


-“Isso, isso aí. Já aconteceu com um amigo meu, é só colocar pimenta-do-reino e aumentar o fogo que resolve!”


Alice fez cara de impressionada.


-“Então quer dizer que eu poderia ter concertado a poção? Não acredito que a Fernandes não me deu essa chance!” – indignou-se ela.


-“ A Fernandes realmente tem a péssima mania de fazer isso...” – começou Mark – “Bem, e desculpe, mas eu preciso ir, ainda tenho muito trabalho a fazer. Foi bom conversar com você.”


-“Igualmente.” – a garota se surpreendeu dizendo. - Que garoto estranho! - pensou -  Ele parece tão... animado! De qualquer forma, é muito simpático e fala quase tanto quanto a Érika.  - riu-se.


 


*      *      *


 


No final da tarde de sexta-feira, uma animada Érika rumava para sua prova prática de Feitiços. Ela estava confiante de que se sairia bem, devido aos inúmeros elogios que recebera do professor Kalil pelo seu progresso com o Vingardium leviosa.


Quando a prova começou, no entanto, o ânimo da garota esfriou. O professor havia preparado um túnel transparente, que fazia curvas e dava voltas, formando um grande labirinto por onde os alunos deveriam guiar pequenas bolinhas, completando o percurso sem deixar que o objeto batesse em muitos obstáculos.


-“Quanto menos obstáculos vocês atingirem, maior será a sua nota.” – anunciou ele – “E então, quem quer ser o primeiro?”


Vários alunos expressaram seu nervosismo em relação à prova, recusando-se a se voluntariar.


-“Não importa, os alunos de Esmeralda começarão, depois será a vez dos de Safira.” – ordenou ele, fazendo com que Nicole James fosse a primeira.


A garota fez um excelente percurso, mas não tão bom quanto o de Alexandre, que conseguiu não bater em nenhum dos obstáculos, ganhando pontos extras.


Tremendo, Érika adiantou-se para perto do labirinto.


-“Vingardium leviosa.” – ordenou, fazendo uma bolinha azul erguer-se, mas cair logo em seguida.


Tentando ignorar as risadas dos colegas, mas corando violentamente, ela tentou mais uma vez. Concentrando-se, a garota conseguiu fazer um percurso quase perfeito, batendo apenas no obstáculo mais difícil do labirinto. No entanto, ela sabia que sua falha inicial lhe renderia a perda de muitos pontos.


Por fim, só restou a prova de Astronomia, que seria realizada em turnos, entre as 22h e a meia-noite, de acordo com u sorteio a ser realizado pela professora. Como a aula de Astronomia de Érika era junto com a turma de Ametista, ela acabou caindo no mesmo turno de Henry Monfort.


-“Veja se não arruína a minha prova, garota.” – disse ele, num tom ameaçador, logo após a professora os ter chamado.


-“Muito bem, quero que vocês localizem e mapeiem as dez estrelas mais importantes da constelação de Orion.” – pediu a professora.


- Rá! Fácil, fácil. - pensou Érika, começando imediatamente o trabalho.


Henry Monfort, no entanto, parecia extremamente perdido, de modo que garota teve trabalho em dobro para terminar a avaliação a tempo.


Ao esgotar-se o tempo, o garoto, visivelmente de mau humor por ter sido ajudado por Érika, saiu apressado da sala, parando apenas para arrumar alguns papéis na mochila antes de prosseguir. A menina, procurando não indignar-se com aquela falta de gratidão, seguiu para o dormitório de Safira em seu próprio ritmo. No entanto, ao passar pelo ponto onde Henry parara, ela notou que havia um pedaço de pergaminho no chão e o recolheu.


-“Ora, ora, o que temos aqui?” – murmurou.


Parecia um bilhete, mas ela deveria lê-lo? - Melhor não, Érika.  – aconselhou-se, mentalmente -  É falta de educação ler a correspondência dos outros.


Mas ela deveria ter alguma consideração por Henry, que não demonstrara nenhuma gratidão pelo fato de ela ter feito a prova toda sozinha?


- Além disso, não é nem uma correspondência, é só um bilhetinho. - acrescentou, enquanto olhava para os dois lados, certificando-se de que não havia ninguém por perto.


Devagar, mas ansiosamente, ela desdobrou o frágil pedaço de papel, que lhe revelou uma mensagem escrita com uma caligrafia grossa e desajeitada.


Nós nos encontraremos logo após as avaliações de Astronomia, meia-noite, para acertar os últimos detalhes, você também vem?


Ass.: Nicole James


A resposta estava logo abaixo, em uma caligrafia ainda mais tosca do que a anterior, se é que aquilo era possível.


Não tenha dúvidas, estarei na sala Fantasma ao lado da sala de Adivinhação, como sempre.


Ass.: Henry Monfort


Sentindo seus olhos arregalarem, Érika correu para a sala comunal de Rubi, torcendo para que Alice ainda estivesse acordada. Quase sem esperanças, lembrando-se de que já passava das onze e meia, o que somava três horas e meia a mais do que o horário-limite, a garota estacou em frente à porta do dormitório rubro.


- Droga!  - lembrou-se - Não posso entrar se não estiver acompanhada por alguém da casa!


Segurando-se para não esmurrar a parede, tentou controlar-se e pensar no que fazer. Quando estava quase desistindo e já se virava para ir embora, uma voz lhe chamou a atenção.


-“Precisa de ajuda?” – era Carlos, que vinha pela direção oposta do corredor.


-“Bom, sim, será que você... será que você poderia chamar a Alice para mim?” – pediu Érika, virando-se.


-“Isso eu não posso fazer, porque não tenho a senha do dormitório feminino.” – explicou o garoto, ao que ela deixou escapar um suspiro – “Mas posso deixá-la entrar na sala comunal, para ver se Alice ainda está acordada.”


Érika sorriu enquanto Carlos abria a porta da sala comunal de Rubi para que ela entrasse. Lá dentro, conseguiram convencer uma garota do quarto ano a chamar Alice. Devido ao adiantado da hora, a garota surgiu usando uma capa por cima do pijama e bocejando muito.


-“Algum pro-o-blema?” – perguntou, em meio a um bocejo.


-“Bem,” – começou Érika, olhando nervosamente para Carlos –“eu imagino que sim.”


Não havia mais ninguém na sala comunal àquela hora, de modo que Alice disse simplesmente:


-“O que aconteceu? É grave?”


-“Não acho que seja grave, mas... é sobre James e Monfort.” – explicou Érika, sussurrando as últimas palavras.


-“Sobre quem”?


-“James e Monfort! Pronto, falei!” – Érika quase gritou. Se queriam ir atrás dos dois, teriam que se apressar – “Agora ele também ouviu.” – acrescentou, olhando para Carlos e parecendo preocupada.


-“Eu deveria ter saído?” – questionou o rapaz – “Me desculpem, eu acabei me distraindo.”


-“Não tem problema.” – falou Alice, ao que os olhos de Érika arregalaram –“Eu contei a ele o nosso encontro com Mlle. Lautrec.”


-“E não contou ao Alex? Tudo bem, não vamos perder tempo com essa bobagem, se Carlos quiser nos ajudar, ótimo.” – Érika disse depressa – “Eu encontrei esse bilhete.”


Apanhando o papel que a amiga lhe oferecia, Alice o leu devagar.


-“Como você encontrou isso?” – perguntou ao terminar.


Érika contou-lhes, resumidamente, a prova que fizera com Monfort e o modo como o bilhete caíra da mochila do garoto.


-“Deixe-me ver se eu entendi, você achou o bilhete com a data do encontro e diz que nós devemos ir até lá, para descobrir o que está havendo?”


-“Essa é a idéia.”


-“Garotas, por favor, não façam isso.” – aconselhou Carlos – “Já está muito tarde para se andar pelo casarão e amanhã cedo teremos aulas normalmente.”


-“Se você não quiser, não vá.” – disse Érika, ríspida.


-“Então está bem, estou indo dormir e espero que vocês duas façam o mesmo.” – e saiu, sem dizer mais nada.


Durante alguns segundos, as duas garotas ficaram se encarando, sem pronunciar palavra.


-“É loucura!” – sentenciou Érika.


-“Eu sei, mas temos que tentar!” – falou Alice, determinada.


-“Você não quer mais se preocupar com o que aqueles dois fazem, então é melhor não irmos!”


-“Como sabe que eu não quero mais pensar nisso?


-“Ora Alice, está no seu jeito de agir! Você os evita como se eles fossem venenosos, ou algo do gênero.”


-“Mas mudei de idéia, vamos!” – falou, abrindo a porta da sala comunal.


Suspirando, Érika foi atrás dela, sensurando-se por ter colocado aquela idéia na cabeça da amiga.


-“Certo,” – sussurrou Alice, já no meio do corredor –“No bilhete diz ‘sala Fantasma ao lado da sala de Adivinhação’, qual é o andar da sala de Adivinhação?”


-“Deve ser o terceiro.”


-“Então temos que subir. Pela escada principal deve ser mais rápido.”


Rumaram em direção ao Norte, subiram dois lances da escada principal e viraram para o Oeste.


-“Tem certeza que é por aqui?” – perguntou Alice.


-“Não, mas para o lado Leste eu sei que não é, e se não for por aqui, então é no primeiro andar.” – respondeu Érika, que andava mais a frente.


Torcendo para não precisar ir até o primeiro andar, Alice a seguiu. Andavam com a máxima cautela, parando de tempos em tempos para escutar. O corredor estava escuro feito breu, o silêncio reinava, quebrado apenas pelos sussurros e roncos de alguns quadros e o som discreto de suas capas farfalhando, o que, àquela hora da noite, lhes parecia um atentado aos tímpanos.


-“Aqui, esta é a sala de Adivinhação.” – anunciou Érika.


-“Ótimo, agora só temos que encontrar a tal sala Fantasma.”


Forçando a vista para enxergar no escuro, as duas olharam de um lado a outro do corredor, mas nada encontraram.


-“Um pouco de luz não deve fazer mal.” – falou Alice, pegando sua varinha no bolso da capa – “Lumus!”


As garotas percorreram mais uma vez a extensão do corredor, mas nada encontraram.


-“Tem certeza de que essa sala existe?” – perguntou Alice.


Érika colocou a mão no queixo, pensativa.


-“Martins me falou que Amgis tem dessas coisas estranhas, sabe? Paredes que desaparecem e aparecem fazendo salas, escadas que funcionam certos dias da semana, como a secundária.” – lembrou-se, dirigindo-se a parede mais próxima, para encostar-se – “Essa sala está por aqui em algum lugar, nós só temos que achaaaaar!”


Gritou as últimas sílabas, já que a parede em que ela havia se encostado não passava de uma ilusão, podendo ser atravessada sem dificuldade.


-“Parece que você tem um dom para achar coisas escondidas!” – riu Alice, lembrando-se do incidente com o alçapão, em que a amiga lhe confessara ter ‘encostado’ em algo estranho na parede.


-“Teremos muita sorte se ninguém ouvir, isso sim!”


Os olhos de Alice se arregalaram – a sensação de perigo tomara conta dela novamente. Érika levantou-se e encarou a parede, que tinha uma aparência totalmente sólida. Estendendo a mão devagar, ela tentou tocá-la, mas seu braço a atravessou.


-“Vamos entrar,” –sugeriu Alice – “Nicole e Henry ainda não devem ter chegado.”


As duas atravessaram a parede e se depararam com uma sala de aula aparentemente normal, no entanto, quando encostavam em alguma mesa ou cadeira, suas mãos as atravessavam como se os objetos fossem feitos de névoa.


-“Que sala mais incrível!” – exclamou Érika.


-“Realmente, mas onde estão Nicole e Henry?” – falou Alice, olhando para os ladoS, preocupada.


-“Eles devem ter desistido do encontro.”


-“Não é óbvio?” – soltou Alice, em uma imitação perfeita de Nicole –“Aquele bilhete era a resposta de Monfort a James, como ele o perdeu, não pôde entregá-lo, não confirmando o encontro. Sendo assim...”


-“Nicole desistiu de vir, já que não sabia se seu ‘parceiro’ também viria!” – completou Érika.


Alice pegou o bilhete e o desdobrou freneticamente, lendo-o em voz alta logo em seguida:


-“ ‘Nós nos encontraremos logo após as avaliações de Astronomia, meia-noite, para acertar os últimos detalhes, você também vem?’  Mas se ela está perguntando a Henry se ele também virá, quem é esse ‘nós’?”


-“Algum amigo dela que não conhecemos, com certeza.” – disse Érika, ao que Alice concordou com a cabeça.


-“Vamos embora, eles realmente deve ter desistido do tal encontro.”


Mal ela terminara de pronunciara a frase, um estouro do lado de fora da sala as sobressaltou. Ao saírem, depararam-se com uma leve fumaça no ar, vinda da ala Sul.


-“Que fedor é esse?” – falou Alice, puxando um pedaço da capa para colocar na frente do nariz.


Vários personagens dos quadros que ficavam mais na ponta do corredor buscaram abrigo com seus vizinhos, fugindo do mal cheiro que começava a espalhar-se por todos os lados.


-“Não sei, mas temos que correr antes que o velho Tobias apareça!” – Érika disse, quase gritando.


No entanto, antes que elas pudessem chegar ao final do corredor, ouviram o ‘toc-toc’ da perna falsa do zelador se aproximando.


-“Hoje vocês não me escapam!” – grunhiu ele, surgindo na frente das garotas, que paralisaram de medo.


O velho Tobias lembrava muito um daqueles velhos capitães piratas dos filmes infantis, até mesmo o papagaio encarrapitado no ombro ele tinha. No entanto, apesar de fazerem piadinha sobre ele às escondidas, todos os alunos perdiam a coragem de rir em sua presença.


-“Agora sim,” – bradou ele – “peguei vocês!”


-“O Tobias pegou vocês! O Tobias pegou vocês!” – disse a ave, com sua voz esganiçada de papagaio.


-“Parece que eu estou vendo duas belas detenções bem na minha frente! E eu lhes garanto que não será nada leve. Soltar bombas de bosta no corredor não é algo muito apreciado por aqui.”


-“Não fomos nós!” – defendeu-se Érika.


-“Quantas vezes por dia você acha que eu ouço isso, mocinha?” – disse o zelador, sorrindo amarelo.


-“Quantas vezes por dia? Quantas vezes por dia?” – repetiu o papagaio.


-“Me digam seus nomes, para que os diretores de suas casas as procurem amanhã e lhes entreguem a data e horário da detenção.”


-“Érika Marinho e Alice Elsea.” – disseram elas, resignadas.


-“Por favor, senhor, nos escute! Nós descobrimos que Nicole James e Henry Monfort estavam combinando um encontro esta noite, e havia mais alguém envolvido, veja!” – falou Alice, mostrando o bilhete ao zelador.


Franzindo o cenho, o velho Tobias abriu o pedaço de pergaminho, enchendo as meninas de ansiedade.


-“Não é nada bonito fazer falsas acusações, mocinha!” – disse ele, devolvendo o papel a Alice – “Agora corram para seus dormitórios antes que a situação de vocês se agrave.”


-“Antes que a situação se agrave! Antes que a situação se agrave!”


As garotas se entreolharam sem entender, mas não se atreveram a discutir. Correram para a escada principal e desceram até o segundo andar, enquanto o velho Tobias limpava a sujeira da bomba de bosta com um feitiço rápido.


-“Porque ele não acreditou em nós?”


-“Não sei Érika, mas vamos descobrir.” – falou Alice, desdobrando o bilhete.


A garota sentiu seu queixo cair ao ver que o papel estava totalmente em branco.


 


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