Páscoa
Páscoa
O Domingo de Páscoa amanheceu com um cheiro gostoso de ovos de chocolate no ar, fazendo Alice pular da cama para a cesta cheia de guloseimas que seus pais haviam colocado em seu quarto no meio da noite. No entanto, para a surpresa da garota, não haviam chocolates apenas de seus pais, Érika e Alexandre também enviaram seus presentes. Um enorme ovo trouxa vinha do garoto, enquanto a amiga anunciava em seu cartão que seu pai, de passagem pela Inglaterra, havia comprado chocolates da melhor doceria bruxa de lá, uma tal de Dedosdemel.
Feliz por seus amigos terem se lembrado dela, mas triste por não ter nenhuma coruja à sua disposição para retribuir as gentilezas, ela correu ao quarto dos pais para acordá-los.
Foi um feriado de Páscoa animado, mesmo com o pequeno desapontamento do Sr. e da Sra. Elsea em saber que a filha havia revelado sua identidade bruxa às amigas, quando eles haviam tentado de tudo para manter o segredo.
-“Eu achei que elas me conheciam o bastante, só isso.” – justificou-se a garota.
-“Acho que você fez bem em falar a verdade.” – disse seu pai – “Você testou a confiança que tinha nelas, mas elas provaram não serem dignas.”
-“Mas Alice, e se elas contarem a alguém?” – perguntou sua mãe, preocupada.
-“Ninguém vai acreditar nelas, mamãe, não se preocupe.”
-“Vou tentar não me preocupar, vou tentar.” – disse a Sra. Elsea, fingindo que aquilo era uma tarefa muito difícil, ao que Alice e seu pai riram.
O dia da volta da garota a Amgis foi marcado por muitos beijos, abraços e algumas lágrimas. No entanto, mesmo sabendo que sentiria saudades dos pais, Alice estava ansiosa em voltar, pois sentia-se cada vez mais deslocada no ‘mundo’ trouxa.
Durante o trajeto até a escola, ela conversou animadamente com Alexandre e Érika sobre o feriado. O garoto havia passado sua semana de folga na casa dos pais, no Rio de Janeiro, já a garota tinha ido a São Paulo, ver o pai.
-“Ele está indo para o Japão, dá para acreditar?” – disse ela, empolgada.
Smaug soltou um miado agudo do colo da dona, Alice podia jurar que sentira um tom de reprimenda na ‘voz’ do bichano.
-“Está bem, está bem, eu sei!” – disse Érika ao gato siamês.
Alice e Alexandre se entreolharam, mas decidiram não dizer nada.
Após o almoço, Matheus Dantas e dois outros colegas primeiranistas surgiram dos bancos em frente e iniciaram uma animada conversa com os garotos. Como nenhum dos outros conhecia Brasília, Alice passou grande parte do tempo descrevendo a capital nacional a seus interlocutores, parando apenas para que eles pudessem trocar de roupa.
Foi com uma sensação de satisfação e de energias renovadas que os alunos do primeiro ano atravessaram novamente o portal que levava ao saguão de Amgis. Estavam todos felizes, rindo e conversando despreocupadamente durante o jantar de boas vindas, que não era tão suntuoso nem tão formal quanto o banquete de abertura do ano letivo, mas ainda assim compunha uma bela e farta refeição.
Horas mais tarde, deitada novamente em sua cama de mogno polido, Alice contemplava o teto do quarto. Seria estranho recomeçar as aulas em uma terça-feira, mas de alguma forma, estar em Amgis a fazia sentir-se mais calma, mais completa.
- Aqui não preciso me esconder ou mentir sobre quem eu sou. – refletiu – é o lugar onde posso, e devo, ser verdadeira.
Para o inferno com Nicole James e Henry Monfort! Não seria ela quem iria atrás daqueles dois. Não mais.
* * *
-“Aqui está o novo calendário de provas.” – anuncio a Srta. Jacobs, na segunda aula daquela manhã cinzenta de Terça-feira. –“Peço que prestem mais atenção a este do que prestaram ao outro, já que a maioria de vocês foi um desastre nos exames de Transfiguração.”
Ao receber o seu, Alice fez como Alexandre a aconselhara durante o café-da-manhã. - Marque com cores fortes as matérias em que você se saiu pior nos exames teóricos, para recuperar sua nota nos exames práticos. - dissera ele, em tom de ordem.
Naquele momento, porém, todo o ânimo para os estudos que estivera transbordando dela nos dois dias anteriores parecia ter-se evaporado. E uma aula dupla de transfiguração com os alunos de Ametista era a última coisa da qual ela precisava para recuperá-lo. Decidiu, portanto, examinar logo seu calendário para poder programar as revisões.
- Ótimo! - gemeu, ironizando - A prova de Poções será a primeira. Realmente, não poderia ser melhor!
-“Pessoal, um minuto, por favor.” – todos se viraram de frente para encarar a professora – “Certo, como nossos exames práticos estão se aproximando, vamos dar mais ênfase à pratica de feitiços durante as nossas aulas.” – vários alunos deixaram escapar um ‘viva’, ao que a Srta. Jacobs pediu silêncio com um gesto – “Agora quero que, assim que eu terminar de explicar e somente quando eu terminar de explicar, vocês dirijam-se aquela mesa” – e apontou para a mesa atrás de si – “e peguem uma rosa branca cada um.”
Algumas alunas de Ametista, empolgadas com as palavras “rosa branca”, deram gritinhos de excitação e correram até a mesa para escolherem as mais bonitas.
-“Parem!” – gritou a Stra. Jacobs – “O que há de tão difícil em ‘somente quando eu terminar de explicar’, senhoritas?”
As garotas pararam no meio do caminho.
-“Achamos que a senhorita já tinha acabado de explicar, professora.” – disse Luísa de la Paje, que aparentava ser a líder do bando.
-“Está bem, está bem, agora voltem para seus lugares.” – ordenou a professora.
-“Cínicas!” – murmurou Alice, ela sabia que aquelas garotas não tinham prestado a menor atenção às palavras da mestra.
-“Bom, onde eu estava? Ah sim, agora me lembro, agora me lembro.” – com o canto do olho, Alice viu Henry e seu grupinho rindo do jeito distraído da professora, o que a deixou ainda mais irritada, odiava demonstrações de falta de consideração como aquela – “Bom...” – recomeçou Helena, visivelmente constrangida ante aos rizinhos abafados dos alunos de Ametista – “Depois que eu terminar de explicar, peguem uma rosa branca cada um e pratiquem o feitiço para mudar sua cor, que aprendemos na teoria.”
-“Podemos pegar as rosas agora, professora?”
-“Sim, Srta. de la Paje, agora podem.”
Foi um Deus-nos-acuda. Parecia que todas as garotas, tanto as de Ametista quanto as de Rubi, queriam se apossar das melhores rosas. Alice, por esperar mais tempo que os demais alunos, acabou com uma rosa mirrada e quase sem folhas, mas não se importou.
Algum tempo depois, todos estavam concentrados, tentando mudar a cor de suas respectivas flores, o que não era tarefa fácil.
-“Não, não, não!” – gritou a Srta. Jacobs, correndo na direção de Henry Monfort – “O senhor tem que segurar a varinha assim” - disse, mexendo na mão do garoto – “e girar o pulso assim. Agora tente.”
-“Colorarte!” – ordenou ele.
Com um ‘puf’ a rosa pegou fogo, o que fez vários colegas rirem e as bochechas de Monfort ficarem mais escarlates do que a rosa que Alice colorira com grande sucesso.
No final da aula, a professora deixou que os alunos levassem suas próprias rosas – umas azuis, outras arroxeadas, mas a maioria escarlate, como a de Alice – “para que as meninas enfeitassem seus quarto e os meninos desse as suas ‘namoradas’”.
-“E aos que não conseguiram tingir a rosa de vermelho, eu aconselho que continuem praticando!” – acrescentou, segundos antes do sinal do meio-dia tocar.
-“Ela acha que temos namoradas com onze anos!” – Alice ouviu Henry comentar ao seu grupinho, que riu, bajulando-o. Definitivamente, Monfort não pensava do mesmo modo que Camila e Stéphanie. Ignorando-os, ela entrou no Salão Principal para um merecido e renovador almoço.
-“Deixe-me ver se eu entendi,” – Érika dizia a Alexandre, no instante em que Alice sentou-se a seu lado, na mesa de Safira –“a prova prática dele vai ser fazer as coisas levitarem?”
O garoto assentiu com a cabeça.
-“Rá! Então vai ser fácil!” – ela exclamou, triunfante.
Alex ergueu as mãos, imitando alguém que se rende. Pelo que Alice pôde concluir, os dois estiveram discutindo aquilo por muito tempo antes que ela chegasse.
-“Alice!” – disse Érika, finalmente notando a presença da amiga ao seu lado –“Preste atenção nesse feitiço e veja como é bacana.” – ela puxou a varinha do bolso das vestes de modo teatral – “Vingardium leviosa”! – cantarolou, fazendo o garfo levitar meio metro acima da mesa.
-“Muito bom!” – elogiou Alice, entusiasmada.
-“Gostou?” – Érika fez o garfo descer – “Você vai aprender na sua próxima aula dupla de Feitiços. Alex aqui diz que a prova prática vai ser toda em cima desse feitiço, se for assim, já sei qual vai ser a minha nota!”
-“Zero!”- falou Alexandre para Alice, apenas mexendo os lábios e sem deixar nenhum som escapar, para que a outra não ouvisse.
Alice forçou um acesso de tosse para disfarçar o riso, mas Érika nada percebeu.
-“Que rosa linda!” – exclamou ela, apontando para a flor na mão da amiga.
-“Obrigada. Fui eu mesma quem coloriu, mas não se preocupe, você vai ganhar uma dessas na sua próxima aula de Transfiguração.”
-“É só amanhã à tarde!” – lamentou-se a loirinha, consultando seu horário.
-“Uau! Vocês já estão praticando o ‘Colorarte’?” – espantou-se Carlos, ao sentar-se à mesa em frente a Alice – “Ano passado, nós só vimos esse feitiço depois das férias.” – e sem mais perda de tempo, começou a servir-se de batatas assadas.
-“Bom, imagino que eles tenham mudado o programa.” – disse Alexandre, com um dar de ombros.
-“Pessoal, eu preciso lhes confessar uma coisa.” – começou Alice, mas Érika a interrompeu:
-“Tudo bem, não precisa se preocupar, nós sabemos que não foi você quem coloriu essa rosa.”
-“O quê?” – fez a outra, incrédula.
-“Não me entenda mal, mas está perfeita demais, não tem como uma aluna do primeiro ano conseguir uma façanha dessas.” – explicou, como se fossa a constatação mais óbvia do mundo.
Alice arregalou os olhos, mas antes que pudesse dizer algo, Alexandre interveio:
-“Não liga para ela, ela fez penas demais levitarem essa manhã.”
-“Obrigada, Alex. Bom, como eu ia dizendo, aconteceu uma coisa no feriado que eu preciso contar para vocês.”
-“Já sei!” – interrompeu Érika, pela segunda vez – “Você está namorando?”
-“CALA A BOCA, ÉRIKA!” – disseram Carlos, Alexandre e Alice em uníssono.
Érika fingiu costurar a boca com uma agulha invisível e olhou para a amiga com um olhar inquisitor.
-“Eu contei a duas amigas trouxas que sou uma bruxa.” – despejou ela, ao que Érika soltou um ‘aah’ de desapontamento ao ver que a amiga não estava mesmo namorando.
-“Você O QUE?” – assustou-se Carlos.
Tomando cuidado para que ninguém mais ouvisse, Alice narrou a história de Camila, Stéphanie e a boneca falante. Quando terminou, os olhos de todos estavam arregalados.
-“Bom, eu acho que ninguém vai mesmo acreditar nelas, se elas tiverem coragem de contar a alguém.” – disse Carlos, tendo sido ele o primeiro a se recuperar do choque – “Mas isso não significa que você não tenha que tomar mais cuidado.”
-“E eu acho que essas garotas não merecem o tamanho da consideração que você tem por elas.” – opinou Érika.
-“Eu sei.” – murmurou Alice, cabisbaixa.
-“Ainda bem que aqui no Brasil o Ministério da Magia não é lá muito eficiente.” – comentou Alexandre.
-“A Srta. Jacobs me falou um pouco sobre esse Ministério, mas eu não entendi direito.”
-“Bom, o Ministério regula as leis mágicas.” – explicou Carlos – “Inclusive a lei da confidencialidade. Para a sua sorte, Alice, o Ministério não é tão competente quanto deveria ser em detectar bruxos que quebram o Acordo Internacional de Sigilo em Magia.”
- “E por que não?” – perguntou Érika.
-“Eles dão a desculpa de que o país é grande demais, mas pra mim é uma questão de incompetência mesmo.” – disse Carlos.
Os quatro passaram o restante do almoço discutindo as leis bruxas e sua aplicação pelo ministério, e Alice ficou impressionada diante da quantidade de coisas das quais não sabia, e das quais ainda precisava aprender.
* * *
Enquanto isso, há milhares de quilômetros de distância, em Brasília, duas garotas tocavam a campainha do apartamento dos Elsea.
-“Boa tarde, Sra. Elsea!” – começou Camila – “Desculpe por virmos sem avisar, mas é que eu esqueci um casaquinho meu no quarto de Alice, será que eu poderia buscá-lo?”
-“Alice não me avisou nada sobre isso, mas bem...” – ela vacilou, deveria ou não deveria deixar que as garotas entrassem?
-“Eu também esqueci uma das minhas bonecas.” – mentiu Stéphanie.
-“Está bem, podem entrar, vocês conhecem o caminho.” – cedeu a Sra. Elsea.
-“Obrigadinha.”
-“Por nada.”
As duas entraram no conhecido quarto da amiga, tomando um cuidado desnecessário para não fazer nenhum ruído.
-“Ande logo, pegue a câmera!” – ordenou Camila – “Não temos muito tempo!”
Obediente, Stéphanie retirou a mochila das costas e de dentro desta puxou uma filmadora.
-“Excelente, agora só temos que achar aquela boneca falante nojenta e gravar uma pequena entrevista com ela!”
-“Depois dessa, Mila, ninguém mais vai duvidar quando contarmos que Alice Elsea é uma bruxa!”
-“Esse é o plano!” – sorriu Camila, vasculhando as estantes em busca das bonecas – “Mas pensando melhor, acho que podemos vender a fita para uma emissora de TV e ficar ricas!”
-“Precisam de ajuda, meninas?” – a Sra. Elsea Gritou do corredor, fazendo-as gelarem de medo.
-“Não, Sra. Elsea, estamos bem, obrigada!” – Stéphanie gritou de volta.
Naquele momento, Camila achou as bonecas.
-“Aqui, foi esta!” – disse, apontando para uma Barbie de vestido rosa, sem coragem de tocá-la.
Stéphanie focalizou o objeto, enquanto a outra ordenava:
-“Vamos lá, diga alguma coisa!”
A boneca apenas sustentou seu sorriso de Barbie.
-“Vamos, pedaço imprestável de plástico, FALE!”
Nada.
Bufando, Camila pegou a boneca pelas pernas e a jogou no chão, gritando:
-“Diga alguma coisa!”
-“O que está acontecendo por aqui?” – disse a Sra. Elsea, entrando no quarto e dando de cara com uma Stéphanie de câmera na mão e uma Camila quase quebrando a pobre Barbie de vestido rosa.
-“A...a.. bo-o-neca.” – gaguejou Stéphanie – “Ela fa-a-la.”
A Sra. Elsea riu pelo nariz.
-“Meninas,” – começou, no tom mais compreensível que encontrou – “acho que vocês andam lendo livros de ‘Fantasy’ demais.” – e sorrindo, guiou-as para fora do quarto.
Depois que as garotas haviam saído, com uma expressão de frustração gravada em seus rostos, a mãe de Alice voltou ao quarto da filha. Com muita delicadeza, juntou a boneca do chão e a colocou de volta a prateleira.
-“Obrigada.” – sussurrou a Barbie.
-“Sou eu quem agradeço.” – a Sra. Elsea sussurrou de volta.
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