Wennbar
WENNBAR
Atônito, Harry ergueu os olhos semicerrados para a garota. Ela devia ter aproximadamente a sua idade, um rosto pequeno e delicado, cabelos negros, sobrancelhas inclinadas da mesma cor e olhos verdes. Seus trajes cinzentos esfarrapados lhe pareciam estranhamente familiares. Ela estava inclinada sobre ele e desamarrava os cordões de sua capa.
— Graças a Deus você apareceu! — ele sussurrou.
— Isso vai ser útil, Filli — a garota disse.
Assustado, Harry se deu conta que ela não estava falando com ele, mas com uma pequena criatura peluda e de olhos grandes que se segurava em seu ombro.
— Que sorte passarmos por aqui hoje — ela prosseguiu. — Se tivéssemos esperado até amanhã, o tecido estaria bastante estragado.
Com um único empurrão do braço fino e bronzeado, ela virou Harry para o lado, para que pudesse retirar a capa que estava debaixo dele. Em seguida, fez com que ele voltasse à posição anterior e se levantou, a capa descuidadamente dobrada no braço.
Um grito estridente veio de cima. Harry ergueu a cabeça e viu um pássaro preto, um corvo, empoleirado na árvore da qual a garota havia saltado. Com a cabeça inclinada para o lado, ele assistia a tudo com um olho amarelo observador.
A garota sorriu e mostrou a capa.
— Veja o que encontrei, Kree! — ela chamou. — Um ótimo cobertor novo para o ninho. Já estamos voltando, não tenha medo.
Ela se virou para ir embora.
— Não! — Harry gritou em pânico. — Não nos deixe.
— Você não pode nos deixar aqui para morrer — Rony rugiu ao mesmo tempo. — Mas a garota já tinha desaparecido, levando a capa com ela. De repente, em meio ao desespero, Harry pensou nas mãos da mãe que criaram o tecido à luz de velas, pacientemente.
— Devolva minha capa! — ele berrou.
Mesmo enquanto gritava, deu-se conta do quanto estava sendo tolo. Ele iria morrer de maneira horrível, muito breve. Que importância tinha se a capa fosse levada?
Mas, de alguma forma, era importante.
— Você não tem o direito de levá-la — ele gritou furiosamente para o vazio. — Minha mãe a fez para mim. Minha mãe!
Houve um momento de silêncio. Então, para surpresa de Harry, a garota voltou, observando-o, desconfiada, através dos cabelos emaranhados.
— Como a sua mãe pode ter feito esta capa? — ela perguntou. — Os Comensais não conhecem suas mães. Eles são criados em grupos de dez, em casas com...
— Não sou um Comensal! — defendeu-se Harry. — Meu amigo e eu somos... viajantes de Del. Você não viu nossas roupas?
— Seu disfarce não me engana — a garota riu com desdém. - Somente os Comensais seguem o caminho de Wenn Del, pois leva diretamente às Florestas.
Ela ergueu a mão para acariciar o pequeno animal pousado em seu ombro e sua voz endureceu.
— Muitos de seus colegas estiveram aqui antes de vocês, procurando coisas vivas para roubar ou destruir. Eles pagaram por seu erro de maneira dolorosa.
— Não somos Comensais — Rony falou. — Meu nome é Ronald, e esse é Harry. Viemos para as Florestas por um bom motivo.
— Que motivo? — a garota quis saber, incrédula.
— Não... não podemos contar — Harry retrucou.
Ela se afastou, dando de ombros. Invadido pelo pânico, Harry gritou para ela.
— Como você se chama? Onde está sua família? Você pode trazê-la aqui?
A garota parou e virou-se para fitá-lo outra vez. Ela parecia intrigada, como se nunca tivessem perguntado tais coisas antes.
— Eu me chamo Jasmine — informou finalmente. — Kree e Filli são minha família. Os Comensais levaram meus pais há muito tempo.
Harry sentiu-se desalentado. Então, não havia ninguém que pudesse ajudá-la a levá-los para um local seguro. Mas, mesmo assim... ela era forte. Talvez ainda houvesse uma maneira de...
— Os Comensais também são nossos inimigos mortais — ele explicou com toda a calma e firmeza possíveis. — Nossa busca na floresta é parte de um plano para derrotá-los e livrar Deltora de Voldemort. Ajude-nos, eu lhe imploro.
Ele prendeu a respiração ao ver a garota hesitar enquanto acariciava com os dedos a capa que ainda carregava no braço. Então, no alto, o pássaro preto grasnou outra vez. Jasmine olhou para cima, jogou a capa sobre o peito de Harry e afastou-se em disparada sem dizer mais nada.
— Volte! — Harry gritou com toda a força. — Jasmine! — Mas não recebeu resposta e, quando olhou para a árvore novamente, percebeu que até o pássaro se fora.
Harry ouviu Rony gemer com uma raiva impotente. Depois, eles se viram cercados por um profundo silêncio. Nenhum pássaro cantava, nenhum animalzinho corria pela grama. Era o silêncio da espera. O silêncio do desespero. O silêncio da morte.
O sol mergulhou ainda mais no céu. Sombras longas e escuras riscavam o local onde os dois estavam deitados. Breve, muito breve, estaria escuro. E então, pensou Harry, Wennbar chegaria.
A capa aquecia-lhe o peito. Ele não podia erguer as mãos para tocá-la, mas ainda assim ela lhe proporcionava bem-estar. Ficou feliz por tê-la consigo. E, então, fechou os olhos...
Algo tocou-lhe o ombro. Ele gritou aterrorizado, abriu os olhos e viu o rosto de Jasmine perto do seu.
— Abra a boca — ela ordenou. — Depressa! — E encostou uma minúscula garrafa em seus lábios.
Confuso, Harry obedeceu e sentiu duas gotas frias caírem na língua. Um gosto horrível encheu-lhe a boca.
— O quê... ? — ele balbuciou, confuso. Mas Jasmine já havia se afastado.
— Abra a boca — escutou-a pedir a Rony.
Logo em seguida, Rony emitiu um som de quem engasgara e estava enjoado. Harry percebeu que ele também recebera um pouco do líquido de sabor horrível.
— Veneno! — Rony disparou. — Você...
O coração de Harry deu um grande salto. Então, de repente, sentiu o corpo se aquecer e formigar. A cada minuto, a sensação aumentava e se tornava mais assustadora. O calor transformou-se em ardor. O formigamento transformou-se em pontadas agudas de dor. Era como se ele tivesse sido jogado em um arbusto espinhento em chamas.
O grasnido de advertência do corvo se fez ouvir acima deles. O céu vermelho se mostrava entre as folhas das árvores. Rony gritava, mas Harry não conseguia ouvir, ver ou sentir nada além do próprio sofrimento e medo. Ele começou a se contorcer e a se agitar no chão.
Então, vagamente, percebeu que Jasmine estava curvada sobre ele. Ela puxava-lhe os braços e chutava-o com força com os pés descalços.
— Levante-se! — ela insistiu. — Escute-me! Não vê o que está fazendo? Você está se mexendo. Você pode se mexer!
Espantado, mal acreditando no que acontecia, Harry lutou contra a dor e esforçou-se para se erguer. Cegamente, procurou sua capa. Ele não a deixaria agora.
— A árvore — Jasmine gritou. — Arraste-se até a árvore e suba! Wennbar está quase sobre nós! — Ela já se voltara para Rony, que rolava num canteiro de samambaias, gemendo de agonia.
Harry ergueu-se e foi até ele, arrastando a capa atrás de si, mas a garota acenou para que voltasse.
— Vá! — gritou furiosa. — Eu cuido dele. Ande! Suba!
Harry sabia que ela estava com razão. Ele não podia ajudá-la ou a Rony. Já fazia muito em cuidar de si mesmo. Começou a rastejar na direção do tronco da grande árvore. Suas pernas e braços tremiam. Todo o seu corpo estremecia, atingido por ondas de calor.
Ele alcançou a árvore e alçou-se para o alto. Viu um galho perto de sua mão. Harry o segurou, ofegante, e, com a outra mão, jogou a capa ao seu redor.
Somente um ou dois dias atrás, tivera de subir por uma corda até o alto de um muro, sem pensar. Agora duvidava que pudesse até mesmo subir nesse galho.
A luz do dia desaparecia. O sol escorregara abaixo do horizonte.
Bem acima de Harry, houve um bater de asas quando o pássaro preto deixou o galho. Chamando com voz áspera e urgente, ele voou ao encontro de Jasmine, que cambaleava em direção da árvore, com Rony apoiado ao ombro.
— Eu sei, Kree! — ela ofegou, quando o pássaro bateu as asas ansiosamente ao redor de sua cabeça. — Posso sentir o cheiro.
Ao ouvi-la, Harry também sentiu um odor fraco e enjoativo de decadência se espalhar pela clareira.
Ele sentiu um embrulho no estômago. Amarrou os cordões da capa, segurou o galho com ambas as mãos e conseguiu se içar para cima. Agarrou-se à casca áspera, ofegante e trêmulo, com medo de que mesmo assim pudesse cair.
Jasmine e Rony alcançaram a árvore, enquanto o pássaro ainda pairava sobre eles.
— Mais alto! — Jasmine ordenou a Harry. — O mais alto que puder. Ele não consegue subir, mas irá tentar pegar-nos com as garras.
Harry rangeu os dentes, ergueu os braços e subiu a um galho mais alto. Ele ouviu Rony resmungar com esforço, enquanto também lutava para escalar a árvore. O cheiro detestável agora estava mais forte. E escutava-se um som, um caminhar furtivo e pesado, o estalar de ramos, o farfalhar de folhas e o quebrar de galhos, como se algo se movesse na direção da clareira.
— Apresse-se! — Jasmine saltara para cima ao lado de Harry. A minúscula criatura que ela chamava de Filli chilreava no ombro dela, os olhos arregalados de pavor.
— Rony — Harry conseguiu dizer.
— Ele sabe o que fazer. A melhor ajuda é continuar subindo para abrir espaço para ele — a garota disparou. — Suba, seu tolo! Você não entende! O sol se pôs. Wennbar está...
Filli gritou e o pássaro preto grasnou. Os arbustos do outro lado da clareira balançaram e se curvaram. O ar foi invadido por um cheiro tão detestável que Harry engasgou e ficou nauseado. Então, uma criatura imensa e abominável, como nunca vira antes, arrastou-se para seu campo de visão.
Quatro pernas atarracadas se curvavam sob o peso de um corpo inchado, redondo, intumescido e coberto de bolhas, como uma gigantesca fruta em decomposição. Pés enormes e chatos transformavam os galhos que encontravam em pó. Pregas de pele enrugada e de um verde acinzentado pendiam de seu pescoço. A cabeça eram apenas dois olhos minúsculos encravados acima de mandíbulas longas e cruéis. A boca se abriu, mostrando fileiras de dentes negros e pegajosos e exalando lufadas de ar fétido a cada respiração.
Abafando um grito de repulsa e terror, Harry subiu ainda mais alto, obrigando suas pernas e braços trêmulos a obedecerem à sua vontade. Um galho, outro e mais outro.
Um grunhido terrível se fez ouvir na clareira. Ele olhou para baixo e viu que Jasmine e Rony, logo abaixo dele, também olhavam. Wennbar alcançara o canteiro de samambaias. Ele batia os maxilares, sacudia a cabeça de um lado a outro e grunhia com raiva, ao descobrir que o seu prêmio se fora.
"Estamos salvos!", pensou Harry, o coração acelerado. "Salvos! A criatura não pode nos alcançar aqui em cima. " Ele fechou os olhos, quase tonto de alívio.
— Harry! — Jasmine soltou um grito esganiçado.
Harry abriu os olhos no exato momento em que Wennbar se pôs nas patas traseiras, as dianteiras arranhando o ar, a barriga de um cinza pálido brilhando no escuro. A criatura rugiu, e as pregas de pele que pendiam do pescoço desapareceram quando a garganta inchou e aumentou. Wennbar erguia a cabeça cada vez mais para cima...
Ele continuou a pular para a frente, atirando-se de encontro à árvore, os maxilares tentando morder, os olhos minúsculos queimando de raiva e fome.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!