Capitulo XII



A sexta-feira não estava sendo um bom desfecho para a se¬mana de trabalho, concluiu Harry. Primeiro um de seus homens telefonara para avisar que a gripe daquela tempo¬rada o atingira e o deixara de cama. Ao meio-dia, tivera de mandar outro operário para casa, porque estava tão gripa¬do que nem conseguia levantar um martelo.
Como os outros quatro homens que compunham sua equipe estavam em outra obra do outro lado do rio, em Maryland, ele ficara sozinho para lidar com o inspetor da prefeitura a respeito dos encanamentos e algumas mudanas que teriam de ser feitas.
O pior de tudo, e o que mais o irritara, fora ficar sozi¬nho com o pai durante grande parte do dia.
Thiago Potter estava com metade do corpo debaixo da pia da cozinha. As velhas botas tinham recebido novas solas dezenas de vezes. Teimoso como era, o velho só con¬cordaria em comprar um novo par quando aquelas virassem pó.
Não preciso de nada além do necessário, era o que Thiago di¬ria, uma frase que usava sempre, para tudo. E tudo tinha que ser ao seu modo, matutou Harry, procurando justificar o próprio ressentimento.
Ele e o pai nunca havia se dado bem.
— Desligue essa coisa barulhenta — ordenou Thiago. — Como um homem pode trabalhar com esse som infernal?
Sem responder, Harry foi até o aparelho de som portá¬til e desligou-o. Qualquer música que ouvisse seria consi¬derada horrível pelo pai. E Thiago praguejava e resmungava enquanto trabalhava, motivo pelo qual Harry ligara o rádio.
— Que idéia estúpida diminuir esta cozinha! Perda de tempo e de dinheiro. Espaço para o escritório... Conversa fiada! Quem precisa de escritório para ensinar um bando de garotinhas mimadas a ficar na ponta dos pés?
Harry tentara ao máximo trabalhar longe da cozinha, mas chegara o momento de ficar ali também, portanto res¬pondeu:
— Tenho tempo, e a cliente tem dinheiro.
— Sim. Os Weasley têm muitos recursos. Porém, isso não é motivo para jogar dinheiro pela janela, é? Deveria ter dito a sua cliente que é um erro diminuir a cozinha.
Harry deu uma martelada e disse a si mesmo para ficar calado, mas não conseguiu.
— Não acho que esteja fazendo um erro. É desnecessá¬rio uma cozinha tão grande aqui. No passado foi projetada para servir dezenas de pessoas. O que uma escola de dança vai fazer com uma cozinha de restaurante?
— Escola de dança! — resmungou Thiago com pouco-caso. — Não dou um mês para durar! E aí como ela vai vender este prédio todo recortado? Pias da altura de crianças nos banheiros! Terá que quebrar tudo de novo! Fiquei surpreso com o fato de o homem da prefeitura não achar ridículo.
— Quando se ensina crianças deve-se ter acomodações próprias para elas.
— Basta a escola primária para isso, não acha?
— Mas não ensinam bale na escola.
— Pois vou lhe dizer uma coisa — sibilou Thiago, aborre¬cido com o tom de voz do filho. Como Harry, também luta¬va consigo mesmo para ficar calado, mas não conseguia. Pôs a cabeça para fora e disse: — Sua obrigação vai além de pegar o dinheiro dos clientes, rapaz. Deve conhecer o bas¬tante da profissão para ensinar-lhes o que é certo.
— A não ser que eu concorde com a opinião deles — retrucou Harry.
Thiago sentou-se no chão, o boné azul e desbotado penden¬do da cabeça coberta por cabelos grisalhos e oleosos. Seu rosto era quadrado e muito enrugado, entretanto na juven¬tude fora um honrem bonito. Os olhos eram castanho.
— Precisa aprender a não responder a seu pai.
— Já pensou em não falar tudo que pensa, pai? — re¬trucou Harry, começando a sentir a dor de cabeça que sem¬pre o dominava quando ficava muito tempo ao lado de Thiago Potter.
O pai levantou-se. Era muito alto e esbelto. Mesmo aos sessenta anos conservava um físico musculoso.
— Quando tiver vivido tanto quanto eu, e adquirir a minha experiência profissional, poderá me responder.
— Você diz isso desde quando eu tinha oito anos — ob¬servou Harry. — Acho que posso dizer que já tenho bas¬tante experiência. Este é o meu trabalho, projetado e execu¬tado. É feito como acho que tem que ser. — Encarou o pai. — O cliente tem o que deseja. Contanto que Gina Weasley fique satisfeita, tudo bem.
— Pelo que ouvi dizer, tem feito mais do que só satisfazê-la no trabalho.
Mal dissera aquilo, Thiago arrependeu-se. Não tivera in¬tenção de falar assim, mas escapara. Deus! O filho sempre o tirava do sério, pensou com irritação.
Harry segurou com força o martelo. Por um longo mo¬mento, desejou gritar ao pai uma série de palavras amar¬gas. Por fim, respondeu:
— O que existe entre mim e Gina Weasley só diz respei¬to a nós dois.
— Moro nesta cidade também, assim como sua mãe. Se falam de minha família, sou atingido. Você tem um filho para criar, e não deve ficar circulando com uma moça ele¬gante para provocar comentários.
— Não ponha James na conversa. Deixe meu filho fora disso!
—James é meu sangue também, e nada mudará isso. Manteve-o na cidade grande todo aquele tempo para po¬der dar suas voltas, sabe Deus aonde, mas agora regressou. Na minha cidade não vou permitir que me envergonhe, nem ao menino.
Dar voltas, pensou Harry com raiva e amargura. Sim, em hospitais, médicos e especialistas. Depois, andar por aí para tentar esquecer a própria dor e fazer o que era certo: cuidar de uma criança que perdera a mãe aos dois anos de idade.
— Não sabe nada a meu respeito. O que fiz, faço, ou o que sou — falou por entre os dentes cerrados, e determina¬do a não perder o controle. — Porém, você sempre deu um jeito para distorcer as coisas e me culpar.
— Se tivesse sido ainda mais duro, talvez você agora não estivesse criando um filho sem mãe.
A mão de Harry tremeu, quase deixando o martelo cair. Tentando apoiar-se, feriu o dedo em um estilete.
Thiago deixou escapar um grito abafado ao ver o sangue espirrar, e agarrou um lenço. Preocupação e aborrecimento mesclaram-se ao comentário:
— Não presta atenção quando maneja ferramentas, ra¬paz?
— Saia daqui! — exclamou Harry, apertando a mão sobre o ferimento e dando um passo atrás. Estava para per der o controle e tinha medo das próprias reações. — Pegue seu material e saia da minha obra.
— Vamos no meu caminhão. Vai precisar levar alguns pontos.
— Disse para sair daqui. Está despedido. — O coração de Harry batia de modo desordenado. — Pegue suas ferra¬mentas e vá embora.
Envergonhado, Thiago atirou os objetos na bolsa, e ao sair murmurou:
— De hoje em diante não temos mais nada para falar um com o outro.
— Nunca tivemos — sussurrou Harry, mais para si mesmo.

Harry Potter vai ouvir poucas e boas, pensou Gina, fu¬riosa. Se ele aparecer, é claro. Precisava aprender que um en¬contro marcado para as sete horas não era às sete e meia.
Arrependia-se de ter convencido os pais a sair, concluiu, amuada. Agora não tinha ninguém com quem se queixar. Caminhou pela sala e olhou para o telefone.
Não, recusava-se a ligar para ele de novo. Telefonara às sete e vinte e só a secretária eletrônica respondera. Sim, ti¬nha uma mensagem para Harry, mas iria dá-la pessoalmen¬te, pensou com raiva.

E quando pensava no trabalho que tivera para se pre¬parar para o encontro, o sangue fervia em suas veias! Esco¬lher o restaurante ideal e a roupa perfeita... Àquela hora, pensou, teriam sorte de ainda encontrar a mesa reservada. Aliás, decidiu, cancelaria a reserva imediatamente. Se Harry pensava que sairia com um homem que não tinha a delica¬deza de chegar no horário, estava muito enganado!
Pegou o telefone no momento em que a campainha da porta soou. Aprumou os ombros, ergueu o queixo e diri¬giu-se à entrada com toda a calma.


Continua [...]

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