Poente brutal
Era um calor infernal debaixo daquele sol, Kassandra não acreditava que os McCoy conseguia trabalhar num dia como aquele, mas ela jamais se sentira tão mal na vida por causa do calor. Não estava acostumada àquele clima e a falta de uma casa estruturada piorava ainda mais as condições.
Andrew entrou no estábulo, o pai terminara de colocar a última ferradura num cavalo e alisava a anca perfeita do animal, acalmando-o.
— A senhora está passando mal novamente - disse Andrew depois de um pigarro.
Greg bufou, passando a mão sobre a boca, limpando o suor.
— Não sei o que fazer. Ela é muito frágil.
— Ela só não está acostumada - murmurou Andrew levantando a pata do cavalo gentilmente. - Talvez um banho a faça melhorar.
— Sim. Talvez faça.
Greg deixou o filho mais velho no estábulo e andou apressado até a casa. Ele ia falar sobre o banho, mas Nellie tinha sido mais rápida: preparara uma banheira improvisada para a senhora Crabbe com um antigo cocho, enchendo-o de água. As duas conversavam baixo ao lado da construção da caixa d’água, onde Nellie tinha posto o cocho. Greg encostou-se na parede da varanda com o ombro, cruzou os braços e fechou os olhos, queria aproveitar cada segundo daquele som gostoso, o som de duas mulheres felizes.
Fazia meses que Kassandra Crabbe morava com os McCoy e a todos cativara, mesmo surpresa por ter conseguido tal feito já que conhecia-se bem. Mas havia mudado tanto nos últimos seis meses e gostava tanto da nova pessoa que não queria sair da lá. E era irônico ela gostar tanto de um lugar pobre e descuidado, e pequeno e feio, mas sentia-se tão bem entre aquelas pessoas que decidiu mudar as coisas.
Ela e os meninos arquitetaram um projeto de paisagismo, criando um belo caminho ladeado por tocos inúteis de madeiras que levava até um grupo de grandes árvores, onde a família gostava de se sentar e passar muitas horas conversando.
Havia alguns arbustos pelos arredores da casa, e Nellie tentava mantê-los sempre verdes, mas muitas vezes, a falta de tempo fazia com que ela se esquecesse de regá-los. Kassandra se prontificou a auxiliá-la, e agora, tudo parecia mais verde, mais bonito. A família passou a se reunir mais e conversar mais na varanda. E até mesmo Andrew parava para admirar a paisagem, depois de um longo dia de trabalho, e contar como fora o dia, ou como era a cidade onde morara e estudara durante anos.
Contudo, nada era tão ou mais interessante e curioso do que as histórias da senhora Crabbe. Ela certamente tinha o dom da palavra, cativando com qualquer que fosse a narrativa que expusesse. As crianças mais novas, que freqüentavam a pequena escola algumas milhas rio acima, passaram a apreciavam os estudos por conta de Kassandra. E Nellie não mais se sobrecarregava com os afazeres domésticos e com o cuidado dos irmãos, porque Kassandra a estava ajudando naquilo também.
A tarde avançava, Gregory e os três filhos mais velhos voltavam para casa, depois de prenderem o gado, quando uma estranha fumaça se erguera ao norte. Nellie estava na varando, com a mão sobre o rosto, tentando proteger-se do sol enquanto tentava descobrir quem eram os visitantes. Mas conforme se aproximavam, nada de amistoso tinham os homens naquelas cavalgaduras.
Gregory berrou algo e Kassandra se sobressaltou dentro da casa.
— O que está acontecendo? - quis saber ela, abrindo a porta da cozinha com força e percebendo que todos olhavam para o mesmo lado, estáticos.
O som do ricochete de um disparo de arma de fogo pôde ser ouvido, e as crianças pequenas correram para dentro de casa.
— Andrew! Luc! À minha esquerda - e os dois rapazes desceram dos cavalos e esconderam-se, armados, atrás do casebre das ferramentas.
— O que está acontecendo? - repetiu Kassandra assustada.
— Venha para dentro, senhora - pediu Cliff, de dezessete anos, com uma espingarda nas mãos. - O pai sabe o que fazer.
Ela entrou, seguida por Nellie e Cliff, as outras crianças tinham se enfiado em um alçapão debaixo da mesa, o qual Nellie escondia com um tapete.
— A senhora sabe usar uma dessas? - perguntou Cliff, mas para sua decepção, Kassandra balançou negativamente a cabeça.
Nellie, por sua vez, não se fez de rogada, carregou o rifle e por uma fresta na parede, enfiou o cano e esperou com o olho na mira. Pouco depois, Cliff fez o mesmo, mas enfiando o cano da espingarda no caixilho da janela semi-aberta. Kassandra olhava com atenção para Gregory, somente ele podia ser visto de dentro da casa, estava atrás de um grande barril cheio de água.
O som dos disparos tornava-se mais alto a cada instante e os gritos dos agitadores, os homens que se aproximavam nos cavalos pareciam, selvagens e desrespeitosos. De repente, uma bala atravessou a parede de madeira, jogando lascas por todos os lados. Kassandra escondeu o rosto nas mãos e sentiu vontade de chorar. Que diabos estava acontecendo? Então ouviu o primeiro disparo sair de perto da casa. E o segundo, e o terceiro. E um tiroteio teve início, e mais buracos pela casa surgiam. Homens praguejavam, cavalos sapateavam e então veio o fogo, entrando pela janela dentro de uma garrafa. Kassandra ficou de pé e atirou sobre a garrafa a bacia de água que Nellie usava para lavar a louça.
— Fique abaixada, senhora! - pediu Cliff em forte tom, e segundos depois, disparou a espingarda. Ela, porém, somente fez barulho, porque o alvo não estava próximo o suficiente.
Os disparos começaram a atravessar a parede com mais fúria e os três tiveram que se deitar no chão, atrás da bancada de madeira maciça para protegerem-se.
— Quem são aqueles homens? - Kassandra perguntou olhando para Cliff.
— Provavelmente ladrões.
— Ladrões? - ela não entendeu. O que ladrões queriam naquele lugar?
— O nosso gado - explicou Nellie. - É a única coisa que temos de valor... e um bom rebanho como aquele vale muito.
Imediatamente Kassandra lembrou do responsável por estar ali e sentiu tanta ira que ajoelhou e correu abaixada até seu quarto.
— Senhora! - gritou Cliff, mas era tarde, não a via mais.
— O que ela foi fazer lá?
— Não faço idéia, Nellie - disse Cliff fechando os olhos, como se pudesse deixar de ouvir o som das balas perfurando a parede.
Do nada, os tiros cessaram. Então Gregory McCoy entrou na casa, as botas fazendo um estranho barulho.
— Estão todos bem? - perguntou olhando por cima do balcão e vendo Cliff e Nellie bem escondidos. Os dois balançaram a cabeça afirmando.
Logo depois entraram Luc e Andrew, e as crianças pularam para fora do alçapão.
— Pai! Sua perna! - gritou Elliot apontando para um ferimento.
— Eu vou ficar bem. Onde está a senhora?
Cliff, já de pé, apontou para o quarto e todos olharam para lá. Kassandra vinha saindo devagar, ajeitando o vestido. Numa das mangas havia um pouco de sangue.
— Foi de raspão - esclareceu ela antes que alguém perguntasse. - Quem eram essas pessoas?
— Ladrões, com toda a certeza - afirmou Greig.
— Eles... estão mortos? - quis saber Nellie.
— Alguns. Outros bateram em retirada, mas acho que vão voltar.
Andrew balançou a cabeça, deixou a arma ao lado da porta e saiu da casa.
— Aonde ele vai? - perguntou Kassandra temendo que alguém o emboscasse lá fora.
— Vamos enterrar os bastardos.
— Pai! - repreendeu Nellie.
— E não são? - perguntou Greig encarando a filha.
— Luc e Cliff ajudarão Andrew. O senhor fica aqui para darmos uma olhada nesse ferimento - disse Kassandra.
— Eu... eu... - Nellie gaguejava com vergonha de falar.
— Nellie é um pouco fraca para essas coisas. Eu cuido disso quando terminarmos - completou Greig.
— Não. O senhor fica aqui! Nellie, esquente um pouco de água, por favor. Depois me traga algumas toalhas limpas, sim? Tire a calça, senhor McCoy, e sente-se aqui.
Os olhos marrom-amêndoa se esbugalharam.
— Ou o senhor prefere que eu estrague de vez a calça cortando-a de cima a baixo? - perguntou ela com as mãos na cintura. - Tudo bem - ironizou -, eu não vou olhar. - E virou-se de costas. As crianças acharam graça, porque para elas não havia mal algum em tirar uma peça de roupa.
Gregory tirou a calça, colocou-a sobre a mesa e sentou, tampando seu calção com as abas da camisa, que eram longas o suficiente para cobrirem quase até as coxas.
Kassandra não se assustou com o ferimento como Elliot, ela conhecia pessoas que passaram por situações piores, e sabia muito bem cuidar daquele tipo de caso. Sem cerimônia ela tocou na perna dele e abriu o ferimento, limpando-o para encontrar a bala, que por sorte tinha se alojado na epiderme, nem chegando à derme. Sabendo que não haveria forma de aliviar a dor, ela pegou um canivete e pinçou a bala para fora num único movimento e tornou a limpar o ferimento, ensopando-o com água em abundância e depois limpando gentilmente com uma toalha embebida em uísque, o único remédio existente naquela casa potente o suficiente para desinfetá-lo.
— Só mais um pouco, está bem? - pediu Kassandra.
Desnecessariamente, porque até então Gregory McCoy não tinha emitido um gemido sequer. Ela pegou um pouco de gordura animal, colocou sobre o ferimento e tampou-o com um pedaço de pano e, por fim, enfaixou a coxa dele fazendo certa pressão.
— O senhor precisa descansar agora - disse Kassandra com um leve sorriso nos lábios, seu trabalho fora bem feito.
— Não. Vou ajudar os rapazes - ele foi incisivo.
— Pai! - exclamou Nellie com os olhos tristes.
Sem dar ouvidos, Greig saiu de casa e caminhou até onde seus filhos enterravam os mortos. Mas ele não fez nada além de observá-los, e lá dentro da casa, Nellie recostava sua cabeça no ombro de Kassandra.
— É a primeira vez que ele me ouve - sussurrou a jovem com lágrimas nos olhos.
— Que bom - respondeu Kassandra baixando os olhos para as mãos cheias de sangue.
A manhã raiou barulhenta. Os meninos McCoy corriam de um lado a outro, parecendo brincar, mas Kassandra sabia que não era o que deveriam estar fazendo. Espiou por entre as cortinas e viu Greig com os braços na cintura, a cabeça baixa e os olhos nas botas. Andrew, ao lado dele, olhava por sobre o ombro, logo atrás, o gado mugia pedindo por liberdade.
— Bom-dia - cumprimentou Nellie.
Kassandra sentou à mesa e olhou para a porta, por onde Greig entrava.
— Sinto muito, senhor McCoy - a mulher apontava com a cabeça para a parede totalmente perfurada.
— Todos estão bem, é isso que importa. Aquilo ali poder ser consertado - ele disse se sentando sem cerimônia e pegando a xícara de café que a filha lhe estendia. - Sairemos para levar o gado a Red Rock City daqui a pouco - falou com firmeza, mas algo em sua voz era contraditório.
— Não podem esperar pelo menos dois ou três dias? - pediu Kassandra.
Andrew tirou os olhos do pai e os levou a ela.
— Perderemos o dinheiro, senhora - Greig respondeu prontamente. - A senhora não entenderia disso.
— E por que não? - quis saber Kassandra, sentindo-se ofendida.
— Digo... poucas mulheres entendem de rebanhos... de compra e venda... - ele tentou contornar a frase dita de mau jeito.
— Ah, sim. Claro que não entendo - ela sorriu forçado.
— E se... se... - Nellie não conseguiu terminar a frase.
— Mandei Cliff até os Stevenson, alguns homens dele permanecerão aqui até retornarmos. Quanto a casa, bem, vai ter que esperar conseguirmos um bom preço pelo rebanho.
Mal terminou a frase e Gregory McCoy se pôs de pé, o chapéu na cabeça e o cinturão onde jaziam duas pistolas, pronto para a viagem. Andrew despediu-se das mulheres segurando a aba do chapéu ao menear a cabeça e saiu atrás do pai.
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