Capítulo 1
O pai aprontara novamente.
Hermione Jane Granger freou o carro vermelho sob a placa enferrujada que confirmava estar de volta ao lar, a fazenda Tilted T.
Duas vezes por ano, todos os anos, no dia em que se casara e no dia em que a esposa morrera, Pete Granger bebia demais e apostava a fazenda. Felizmente, todos em Bootlick, no Texas, sabiam que o homem ficava fora de si quando misturava álcool e jogo. Assim que Pete recuperava a sobriedade o bastante para raciocinar direito, o novo "proprietário" lhe revendia a fazenda por alguns dólares ou meia dúzia de cervejas.
Mas, desta vez, ele perdera a fazenda para o homem que Hermione mais desprezava no mundo. O pai perdera Tilted T para não outro senão Harry Potter… e o patife não queria devolvê-la.
O carro ainda balançava quando Hermione saltou e seguiu em direção à ampla sede da fazenda. Um pouco de sua raiva dimi¬nuiu ao ver o pai de pé à porta dos fundos com um largo sorriso no rosto.
— Ah, pai… — Ela o abraçou e sentiu o cheiro familiar de fumo no bolso da camisa. — Diga que entendi errado ao tele¬fone. Diga que não perdeu a fazenda para Harry Potter.
Pete enrijeceu o maxilar.
— Ele a ganhou de forma justa.
— Harry Potter não sabe o significado dessa palavra. — Mes¬mo após seis anos, aquele nome lhe provocava idéias irracio¬nais. Podia quase ver os olhos castanho-escuros desdenhando dela. — Não posso acreditar que desistiu da nossa fazenda sem lutar.
— Não sabia mais o que fazer. Ele tem a escritura, assinada, tudo dentro da legalidade. — Pete mexeu-se inquieto. — As coisas mudaram um pouco por aqui, Hermione Jane. Saberia se morasse mais perto.
O pai ficou magoado quando a filha deixou a fazenda sema¬nas após a morte da mãe, vítima de câncer. Não entendera na época e ainda não entendia. Hermione o abandonara quando mais precisavam um do outro, mas isso nunca mais aconteceria. Aque¬las terras estavam em seu sangue, e estava determinada a as¬segurar a fazenda para seu filho.
Ao pensar em James, de cinco anos, sentiu uma premonição. Estava prestes a ficar frente a frente com seu tormento e, em¬bora não soubesse, Harry Potter tinha o poder de destruí-la.
Deu um tapinha nas costas do pai e enrijeceu-se. Entrou em casa, ansiosa para rever o lar, apoiou-se no balcão que dividia a cozinha e a sala de jantar, fechou os olhos e inalou o perfume de pinho dos produtos de limpeza.
Pinho? Abriu os olhos. Um momento. Havia algo errado. E os aromas familiares de couro velho e sabão?
Cautelosa, analisou o ambiente. A mesa redonda não estava mais lá, nem as cadeiras de espaldar alto. No lugar, havia um conjunto de jantar de carvalho, novo, com acabamento em ver¬niz brilhante e cadeiras acolchoadas.
— Pai!
— Tentei alertar. — Ele tocou-lhe o braço.
— Onde estão nossos móveis?
— Eu os levei para o trailer.
— Por que está morando no trailer do capataz? Não me diga que aquele hipócrita do Harry Potter o expulsou. Ah, vou matá-lo com minhas próprias mãos! Vou quebrar os dois joelhos dele para que nunca mais possa montar em touros. E…
— Vai jogar chocolate quente em mim, como nos tempos da escola?
Hermione congelou. Mesmo de costas para a porta, reconheceu a fala arrastada que a atormentava nos sonhos. Grave e sexy, com um toque de divertimento oculto, o som que lhe causava arrepios. Cerrou os punhos e os dentes antes de se voltar para encarar seu pesadelo.
Pete ergueu a mão, cauteloso.
— Contenha-se, Hermione. Mudar para o trailer foi escolha mi¬nha. Este rapaz pode ser um jogador de pôquer astuto, mas ele não colocaria um velho na rua, no sereno.
— Não há sereno aqui — replicou Hermione. — E este rapaz é um homem de trinta anos que roubou a nossa fazenda!
— Ora, Hermione, não fiz nem vinte e nove ainda — protestou Harry. — Não me faça velho antes do tempo.
Ela não estava preparada para o turbilhão de emoções que lhe varreu cada célula do corpo ao vê-lo. Lá estava ele, arro¬gante como sempre, o ombro largo apoiado no batente da porta. Ruguinhas de expressão adornavam o lábio inferior que sempre achara particularmente sensual. Apreciou a boca maravilhosa por um instante, lutando contra a lembrança dos beijos mara¬vilhoso de que Harry era capaz.
Raios! A vida fora camarada com o moreno Harry. A beleza máscula que a cativara na adolescência só aumentara com a maturidade. Ele se mantinha em forma, sempre o peão de tou¬ros confiante. E ninguém ficava tão bem quanto Harry Potter em calça jeans velha e chapéu preto.
Era mesmo um caubói bonitão, e Hermione desejou arrancar das órbitas aqueles olhos que se divertiam a sua custa.
— Então… — Deu uma fungadela para regularizar a respi¬ração. — A ovelha negra voltou.
— Eu poderia dizer o mesmo de você.
A resposta suave só fez aumentar a raiva de Hermione. Como Harry ousava manter-se calmo e indiferente, quando ela estava pronta para atacar?
— Eu pertenço a este lugar. Esta é a minha casa.
Ele desdenhou. Desencostou-se do batente com expressão irô¬nica, com toda a segurança de quem era o novo único proprie¬tário da Tilted T. Com um floreio, digno de um campeão de rodeios, tirou o chapéu e o pendurou no suporte preso à porta. Junto ao balcão, acomodou-se numa banqueta, como se fosse o dono do lugar.
Raios! Ele era mesmo o dono agora.
Hermione recuou além do balcão. Estava muito irritada. Harry Potter já lhe roubara demais. Não levaria sua fazenda também.
A tensão no ambiente, emanada principalmente por Hermione, era mais densa do que tempestade de areia na pradaria.
— Você é um ladrão e um trapaceiro, Potter!
Harry pousou a mão forte na coxa igualmente musculosa e sor¬riu torto.
— Bem, olá, Hermione. É muito bom revê-la também.
Num nível subconsciente, ela sabia que Harry escondia as ver¬dadeiras emoções por trás de uma atitude arrogante, mas ela já não se importava com os sentimentos dele. Ela não deixaria por menos.
— Você se aproveitou do meu pai.
— Ele não fez nada disso — interveio Pete, de seu lugar ao balcão. — A mão de cartas que ele tinha era mesmo melhor do que a minha.
Hermione ouviu um zunido e manchas cinza dançaram diante dos olhos. Como se estivesse prestes a desmaiar. Ou a ponto de cometer um crime… um assassinato. A questão era quem matar primeiro, Pete ou o canalha do Harry Potter?
— Pai, por favor, se não vai se impor a esse biltre, deixe que eu faço isso.
Hermione lamentou as palavras assim que as pronunciou. O pai enrubesceu. Ela o constrangera, ferira aquele bendito orgulho dele. Antes que pudesse se desculpar, Pete levantou-se.
— Vou para o trailer. Quando se controlar, encontre-me lá. Sally está preparando o jantar.
Ele saiu batendo a porta. Hermione piscou, confusa. Quem era Sally?
— Quer um café?
Hermione voltou-se. Harry lhe oferecia uma caneca, o sobrolho in¬terrogativo.
— Só não comprei aquela outra marca… ainda.
Ela ficou boquiaberta. Ele se lembrava de sua marca favorita de pipoca?
Com a estranha declaração do pai e a amizade indesejável de Harry, Hermione se sentia tão desequilibrada quanto um bêbado em um barco a remo sob um furacão. Harry misturou uma colher de açúcar antes de pousar a caneca no balcão.
Contente por poder fazer algo além de fitá-lo, Hermione sorveu o líquido quente, raciocinando freneticamente.
Não era assim que pJamesjara o reencontro. Harry não deveria estar diante dela, observando-a calmamente por sobre uma ca¬neca decorada com motivos de rodeio. Não deveria recordar co¬mo ela preferia o café, nem o tipo de pipoca. Deveria confirmar ser o canalha que a abandonara em prantos na estrada de cas¬calho de acesso à Fazenda Tilted T, para correr atrás de fama e fortuna nos rodeios. Tratava-se do vil sedutor mentiroso que lhe prometera um futuro e então partira deixando atrás de si um rastro de poeira.
A lembrança daquela manhã ainda era tão viva quanto o sabor do café que bebericava. Concentrou-se, recuperando a dor e a raiva, para não fraquejar.
Estavam na cabine da caminhonete velha dele, protegidos do vento forte de junho. Ele a abraçava alisando seus cabelos loiros compridos em torno do rosto banhado de lágrimas.
— Eu tenho de ir, Hermione — explicara ele. — Os metidos da cidade só estão esperando que eu escorregue, que mostre o san¬gue Potter. É a minha chance de provar a todos que estão errados e fazer algo de mim mesmo. Preciso ser mais do que um empregado do seu pai.
— Mas um dia a Tilted T será minha, e sua também, por¬tanto — argumentava Hermione, as lágrimas rolando soltas. — Você não será mais empregado de ninguém.
Harry lhe acariciava o rosto.
— Um dia… — Beijou-a, os olhos estranhamente brilhantes. — Mas já estou pronto para as provas de montaria em touro. Se tiver sorte, poderei ficar dez anos nesse negócio. Depois, você e eu teremos o resto de nossas vidas juntos. — Afagou-lhe o queixo com o polegar de pele áspera. — Quando minha carreira nos rodeios acabar e eu tiver algum dinheiro, transformaremos a Tilted T na melhor fazenda do leste do Texas.
— Se me ama de verdade, vai ficar.
— Hermione, eu te amo. — A voz dele saiu rouca e grave de emoção. — É por isso que tenho de ir. Por favor, entenda.
Surdo a seus apelos, ele dera a partida na caminhonete e saíra de sua vida. Ante o ultimato… ou ela, ou os rodeios, Harry escolhera os rodeios, onde poderia exercitar livremente o legado de mulherengo de seu pai.
A agonia da lembrança era forte o bastante para trazer-lhe de volta o juízo. Não seria nunca mais enganada por outro ho¬mem. Muito menos por aquele!
— Esta é a fazenda da minha família e eu a quero de volta.
— Por quê? — Harry estreitou o olhar avaliando sua expressão transtornada. — Se se importa com este lugar, por que se mu¬dou para Oklahoma CiHarry e deixou seu pai cuidando de tudo sozinho?
Hermione conteve o ímpeto de revidar. Como ele ousava questio¬nar sua lealdade àquela fazenda? Harry não imaginava quantas noites ela chorara até dormir em seu minúsculo apartamento na cidade, atormentada pelo barulho do trânsito e das sirenes das viaturas policiais. Ele não imaginava a saudade que sentira de casa, da falta que lhe fizera o conforto do lar e da família. Como precisara desesperadamente dele.
— Tive motivos para ir embora. — Ela segurava a caneca com tanta força que temeu quebrá-la.
— É. Ouvi dizer que se casou. — Harry pousou a bebida dele no balcão, o olhar baixo. — E que se divorciou. Pete até me mostrou uma fotografia do seu filho.
Embora nada indicasse que ele desconfiasse de algo, Hermione sentiu o sangue gelar. Engoliu em seco duas vezes antes de se arriscar a falar.
— Minha vida pessoal não é da sua conta.
— Costumava ser. — Ele passou o dedo na borda da caneca.
— Isso foi há muito tempo, Harry. — Antes de você escolher o lombo de um touro à mulher que jurou amar. Antes de dar às tietes de rodeios o amor que prometera guardar só para ela. Antes que eu tivesse um filho seu sozinha.
Hermione lembrou-se de si mesma aos dezenove anos, à pia do banheiro, esperando o teste de gravidez revelava a verdade. Lembrou-se do cheiro de ovos fritos ao primeiro enjôo matinal, dos pés inchados, da dor nas costas que ninguém se oferecia para massagear. E lembrou-se das vinte horas de trabalho de parto sem ninguém para lhe dar apoio e para comemorar a chegada de seu filho. Hermione Jane Granger nunca mais seria tão vulnerável.
— Lamento, mas não estou interessada em relembrar o pas¬sado.
— E se eu estiver? — Harry sorriu, mas o olhar era sério, atento. — Deixamos muitos assuntos pendentes entre nós.
Se não estivesse tão triste, Hermione acharia engraçada a escolha de palavras de Harry. Oh, tinham assuntos pendentes, sim, mas não os que ele imaginava. Provavelmente, ele ansiava por outra sessão de luxúria na cocheira… literalmente… mas Hermione apren¬dera a lição. Duas vezes. Primeiro com Harry, depois com Josh Riddley, o homem que fora seu marido só pelo tempo suficiente para proteger seu filho de especulações e evitar que Pete se decepcionasse com a única filha.
Hermione enganara a si mesma tanto quanto a Josh, acreditando que era o amor a uni-los, e não o desespero. Josh logo descobriu a verdade, ao mesmo tempo que ela descobria que desposara um homem que tendia à violência quando bebia demais. Pen¬sando bem, decepcionar Pete teria sido mais fácil do que viver com Josh, mas, após sofrer tanto para proteger seu segredo, não iria magoar o pai agora.
Pete era antiquado. Nunca mais andaria de cabeça erguida se a cidade toda soubesse que seu orgulho e alegria, sua filha perfeita, tornara-se mãe solteira. Josh fora um capítulo triste em sua vida, mas o caubói bonitão além daquele balcão fizera algo muito pior. Ele despedaçara seu coração.
Hermione permitiu que o café forte e doce lhe envolvesse a língua e aquecesse seus lábios repentinamente frios. Algumas mulhe¬res escolhiam homens errados repetidamente, e Hermione Jane Granger fazia parte desse grupo. Sofrera duas decepções antes de perceber isso, mas bastava.
Hermione sorveu outro gole de café.
— Vamos deixar claro, Potter. Não há nada pendente en¬tre nós.
Para enfatizar, pousou a caneca com força no balcão. Um pouco do café transbordou. Desceu da banqueta, contornou o balcão e foi para a cozinha. Harry estava na frente do suporte de papel-toalha. O brilho em seu olhar indicava que não pretendia abrir caminho.
— Se tivesse alguma educação, daria passagem ou me pas¬saria o papel-toalha.
Ele sorriu, cruzou os braços e se recostou no balcão. Desa¬fiava-a a se aproximar, a provar que não havia nada pendente entre ambos.
Ótimo. Ela mostraria ao caubói insuportável o quanto era imune a ele.
Armada com a traição dele e seis anos de pesar, avançou pelo lado esquerdo dele, sem se esquivar ao contato. Ele se mexeu um pouco, alinhando seus corpos. E ela se viu com o nariz diante do tórax do homem que mais odiava no mundo. E ele cheirava bem… Sentiu o coração disparar. Era o mesmo aroma de madeira que permanecera impregnado em sua pele, em suas roupas e em sua memória até muito tempo depois de ele ter partido.
Hermione cerrou os dentes contra a onda de sensações que amea¬çavam aflorar.
— Dê-me a bendita toalha, Potter.
— Dê-me a toalha. Dê-me a fazenda — desdenhou ele, a boca tão próxima que ela sentia seu hálito quente. — A rainha deseja mais alguma coisa?
Harry era tão forte, quente, másculo e… tão familiar, mesmo após tanto tempo. Por um breve instante, sentiu-se novamente atraída por aquele charme poderoso.
Ele passou a mãos em suas costas, carinhoso. A sensação era de manteiga se derretendo sobre milho verde fumegante. Hermione já ia pousar o rosto naquele peito largo quando ele a puxou para trás pelo rabo-de-cavalo. A risada grave a atingiu como um açoite.
Hermione recuou furiosa. Como ele ousava brincar com ela? E por que ela reagira daquela forma?
Sem se importar com o café derramado, contornou o balcão. Se Harry achava que conseguiria seduzi-la e fazê-la esquecer como a abandonara, estava muito enganado. No passado, poderia ter ¬se dobrado, mas agora tinha de considerar o filho.
— Nada mudou, Potter — reafirmou, ofegante e com voz tensa. — Ainda é o moleque egoísta que sempre foi, certo de conseguir tudo na base do charme. Pois tenho novidades para você, caubói. Pode montar no seu cavalo e voltar para o lugar de onde veio. Apenas deixe a escritura da Tilted T na mesa quando partir.
Ele adotou uma pose descontraída, a expressão enigmática, embora Hermione desconfiasse que ele não estava tão indiferente quanto parecia.
— Lamento desapontá-la, querida, mas este velho caubói aqui não vai a lugar algum.
— Então, vamos à justiça.
— Não tem base nenhuma para isso. A fazenda estava no nome do seu pai.
— Meu pai ia deixar a fazenda para o meu filho.
— Talvez. Mas, se esperava ter a fazenda para o menino, deveria tê-lo trazido para cá ao nascer. Um garoto criado na cidade não saberia conduzir uma fazenda.
— Eu vou ensinar a ele.
— Como? Mostrando-lhe reprises de velhos seriados? Dei¬xando-o brincar nos pôneis de plástico do supermercado?
— James já sabe cavalgar tão bem quanto eu na idade dele. — Sempre que punha o filho na sela de um cavalo, Hermione sentia um aperto no coração, ressentida com o fato de o próprio pai do menino lhe ter roubado a oportunidade de crescer no campo.
Harry aproximou-se.
— E quanto ao pai dele? Talvez tenha planos para o garoto.
Hermione estremeceu com a idéia, o segredo ameaçando escoicear como um garanhão selvagem.
— James não tem contato com sua imitação de pai desde o dia em que ele partiu. Josh não tem nenhuma autoridade sobre a vida de James. Nunca teve, nem nunca terá.
Harry assobiou.
— Parece que foi um divórcio amargo.
— Tão amargo que nem eu, nem James carregamos o sobre¬nome do pai dele. James é meu e só meu. — O momento lhe parecia tão apropriado quanto qualquer outro para o esclareci¬mento. — Somos ambos Granger. E os Granger sempre foram pro¬prietários desta fazenda. Sendo assim, não desistirei enquanto você não a devolver.
— Nesse caso, querida… — retrucou Harry com fala arrastada, o brilho do divertimento novamente em seus olhos. — Espero que tenha trazido a escova de dentes, porque será uma estadia longa.
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