Capítulo Um



Capítulo Um


Deixe-me fazer uma pergunta. É uma pergunta teórica, por favor, preste atenção. Você abriria a correspondência de outra pessoa? Não? Claro que não! Eu já sabia a resposta.

Certo, mas suponhamos que houvesse uma carta especial. Uma carta com aparência chamativa de verdade, em um envelope cor de creme bem grosso, endereçada à mão, sem o endereço do remetente. E suponhamos que a carta tenha sido enviada a você. Mais ou menos por engano. E que você não tivesse como entregar para a pessoa a quem se destinava.

Ainda não sentiu a tentação?

Muito bem. Bom, digamos também que a pessoa para quem a carta estava endereçada fosse sócia de um dos mais exclusivos clubes privados de Londres e tivesse uma vida social fabulosa. Isso tudo enquanto você está realmente entediada, depois de ter acabado de se mudar para uma cidade nova, onde sua vida ainda não tinha exatamente deslanchado. E suponha que você tivesse de ficar olhando para aquela carta, dia após dia, em cima do consolo da lareira.

Imagine se puder me fazer esse favor, que essa pessoa tivesse uma pilha de correspondência se acumulando em seu apartamento e que você estivesse cuidando daquilo tudo para ela, apesar de ser altamente duvidoso que algum dia ela retornaria para recolher as cartas.

E digamos ainda que a pessoa que deveria receber a tal carta tivesse se mudado de seu apartamento já fazia mais de um mês, mas continuava recebendo mais telefonemas do que você.

Agora, será que você sentiria a tentação? Só um pouquinho?

Não? Não, é claro que não. Eu também não.

Bum. Bum. Huh, huh, yeah.

O teto balança, e isso sugere que Sirius, o sujeito que mora no andar acima de mim, está dando mais uma festa. Durante a última hora, fiquei tentando ler Feira das Vaidades (o livro preferido de minha mãe), mas cada vez que chego ao fim de um parágrafo, percebo que não absorvi nada e preciso voltar para começar tudo de novo. O que é uma pena, porque esse livro é ótimo, e eu quero saber o que acontece a seguir.

Até agora, a alpinista social Becky Sharp, uma moça esperta e maldosa, está manipulando todo mundo a seu redor, e parece que tudo é movido a dinheiro e virtude: quanto mais uma personagem tem de qualquer uma dessas coisas, melhor sua posição na sociedade, apesar de dinheiro sem virtude ser preferível a virtude sem dinheiro. Acho que algumas coisas nunca mudam.

Tento ler de novo, mas não adianta: Becky Sharp não pode competir por minha atenção quando o hip-hop ecoa pela minha cabeça. Talvez uma revista seja a melhor idéia.

Tentando ignorar a música alta e as risadas que vêm do apartamento de Sirius, pego um exemplar de Elle e começo a ler, bem feliz, um artigo a respeito de limpar os excessos. "Limpe seu guarda-roupa e crie uma nova você!", diz. Bom, eis aí uma idéia. Essa seria uma maneira construtiva de passar mais ou menos uma hora.

Só que não era bem assim que eu imaginava passar uma noite de sábado em Londres quando resolvi me mudar para cá. Eu me senti delirante de tanta animação quando entreguei minha carta de demissão há um mês, dizendo a meu chefe que me mudaria para Londres e que ele não podia fazer nada a respeito. Eu me senti muito bem de entrar na sala dele com passos firmes e um sorrisinho se espalhando por meu rosto. Quase fiquei esperando ouvir aplausos e uma trilha sonora de filme quando disse a ele (ou quem sabe Richard Gere pudesse entrar ali e me carregar para fora da sala). Sabe, eu não sou o tipo de pessoa que toma uma atitude, “bate o pau na mesa” e manda ver. Sempre fui boazinha, direta e previsível. Ninguém achou que isso poderia acontecer (muito menos eu). Mas às vezes é engraçado como a vida faz a gente mudar, você não acha? As coisas não estavam muito bem lá em Bath, onde eu trabalhava e morava com meus pais, e quando eu comentei com minha mãe que estava pensando em me mudar para Londres, ela ficou tão animada que eu meio que precisei levar a idéia a cabo, apesar de não ter dito aquilo a sério mesmo.

Mas minha mãe disse que a gente só tem uma chance de viver; então é preciso aproveitar a todas as oportunidades. Assim, acabei deixando para trás meus amigos, minha família, meu trabalho... De certo modo, eu achava que devia à minha mãe experimentar. Ela sempre quis se mudar para Londres e viver a vida da “alta sociedade”, como ela diz, desde que era menininha. Mas nunca pôde fazer isso: casou, teve filhos e, antes que se desse conta, perdeu a chance dela. E como meu pai detesta estar em qualquer lugar de onde não dá para enxergar um campo, ela nem pode visitar Londres com muita freqüência. Eu, por outro lado, sei exatamente do que meu pai está falando: as cidades grandes podem ser assustadoras.
Mas, bom, o negócio é que agora eu estou aqui. E não posso ficar sem fazer nada, só ouvindo a música de uma festa em que eu não estou. Preciso fazer as coisas acontecerem. Minha mãe ficaria totalmente decepcionada se soubesse que eu passei um mês sem sair à noite. Preciso pelo menos tentar fazer com que ela aproveite um pouquinho da vida em Londres por intermédio de mim.

E eu realmente me senti bem por abandonar meu emprego na Shannon’s, a agência de publicidade e marketing em que eu trabalhava, por saber que não ficaria mais no pub na sexta à noite reclamando do novo Diretor de Marca que chamava todo mundo de “querida”, em um tom condescendente e irritante de verdade. Chega de ter de vestir saia curta toda vez que fazíamos uma apresentação. E chega de ficar me perguntando se um emprego em Bath, de que eu nem gostava muito, era a melhor coisa que eu podia esperar. Não, eu ia assumir o controle da minha vida. Ia sair da região oeste do país e da atitude super-desencanada-mas-na-verdade-bem-limitada-se-você-olhar-um-pouquinho-além-da-superfície de lá. E eu estava no topo do mundo.

Talvez eu devesse ter resolvido mais alguns detalhes práticos antes de simplesmente ter me mudado para cá, mas me deixei levar um pouco pelo calor do momento e pela idéia romântica de chegar a uma cidade grande sem nada além de uma mala. Eu era a heroína da minha própria historinha. Eu não ia me contentar com “não era bem isso que eu queria”. E eu iria provar para minha mãe que eu era capaz: ela só tem uma filha, então é meu dever deixá-la orgulhosa. Claro que isso significa que eu não tenho exatamente um emprego neste momento; eu tenho um serviço, só que não é bem o que eu esperava. Mas trabalhar em uma loja não é assim tão ruim. E eu tenho lido o jornal The Guardian, à procura de vagas adequadas em publicidade. Pelo menos é minha intenção. Só preciso dar um jeito na vozinha dentro da minha cabeça que não pára de me lembrar de que eu nunca quis muito trabalhar em publicidade, para começo de conversa.

Examino o artigo com mais atenção. O guarda-roupa é uma janela para a alma, parece. Se o seu não está todo arrumadinho, o autor escreve, como você pode esperar que a sua vida esteja? Hummm. Espero que não seja verdade. Meu guarda-roupa está um pavor. É pequeno, está abarrotado e cheio de cabides de arame horrorosos.
Quando entro no quarto, de repente me dou conta de que tirar tudo dali e começar de novo talvez não seja má idéia. Realmente, posso fazer uma limpa ali: vida nova, guarda-roupa novo. E uma vez que estiver tudo resolvido, talvez o restante da minha vida também entre um pouco mais nos eixos.

Só que... fico olhando para o guarda-roupa, imaginando por onde começar. Talvez não seja uma idéia assim tão boa, no final das contas. Não tenho dinheiro para comprar roupas novas, e de que adianta se desfazer de tudo se você não vai poder sair logo em seguida para comprar roupas novas que reduzem sua cintura e alongam suas pernas como que por milagre?

Depois de hesitar durante alguns instantes, volto para o sofá. Não estou com pressa: este provavelmente não é mesmo o melhor momento para arrumar meu guarda-roupa. É sábado à noite, pelo amor de Deus. Eu devia estar fazendo algo divertido.


Bum bum, huh huh huh, uh huh, huh, yeah.

Largo a revista: a música está alta demais, e não tem como eu me concentrar. Talvez eu devesse cozinhar alguma coisa. Eu podia tentar preparar alguma receita nova ótima ou algo assim. Sempre digo que não tenho tempo para cozinhar da maneira adequada, e esta é a minha chance.

Tendo dito isso, minha cozinha não é exatamente o local mais fácil onde se cozinhar. Eu digo cozinha, mas o que quero dizer na verdade é uma pequena área emendada na sala que tem uma pia, uma geladeira e um fogão. Daí tem uma mesinha entre a “área” da cozinha e a “área” da sala e... bom, é só isso, para falar a verdade. Não tem espaço para armário: precisei guardar as caixas de cereal nas estantes de livro porque não há nenhum outro lugar para colocar.

Esse é o problema de Londres. A gente vê o anúncio de um apartamento na vitrine de uma imobiliária (“Apartamento moderno em Ladbroke Grove, um quarto, perfeito para receber os amigos”), e você fica achando que vai deparar com um lugar igual à casa da Monica de Friends. Daí, você chega lá e vê que o “perfeito para receber os amigos” se traduz por “cozinha fica na sala, então é só dar um passo”.

Acho que eu podia fazer mais por este lugar: está um pouco vazio, eu sei. Mas o negócio é que eu realmente não tenho nada para “fazer mais”. Eu vim de Bath de trem, e mal consegui trazer minhas roupas, imagine só livros e quadros. E, de qualquer maneira, eu não quis trazer toda a minha bagagem (nem física nem metafórica). Mudar par uma cidade nova é começar vida nova, e trazer lembranças de Bath só serviria para abalar o objetivo. Meus móveis velhos não passam disto: velhos. Fazem parte da minha velha vida com Pete. Peter é meu namorado. Ou melhor, meu ex-namorado. Ele é parte da razão por que eu me mudei para cá. Como eu disse, não estou pronta para me contentar com “não é exatamente o que eu queria”.

Mesmo assim, isso não é desculpa para não deixar o lugar mais personalizado, com a cara de quem mora aqui: já faz um mês que me mudei, afinal de contas. O problema é que eu nunca consigo decidir que tipo de decoração seria “pessoal”. Será que eu escolho moderno e clean, com sofás de couro e tapetes felpudos? Pete teria vendido a avó (ou eu, para ser honesta) para ter um apartamento moderno e leve, completo com sofá de couro, uma enorme TV de plasma e eu daqueles boxes com tijolos de vidro. A certa altura, até abrimos uma poupança juntos, pensando em comprar um lugar. Mas nunca conseguimos economizar muito, sempre havia algo mais importante, como entradas para o campeonato de futebol (ele) e sapatos (eu). Talvez nenhum de nós quisesse mesmo ter um apartamento. Não de verdade.

Então, bom, tem o visual moderno, mas não tenho certeza se tem a ver comigo. Daí tem a coisa toda do visual pobre-chique que, vamos ser realistas, está bem mais condizente com meu orçamento, de todo modo. Desde que eu me mudei para cá, as parcas economias que tinha conseguido juntar estão desaparecendo com rapidez. Móveis vintage com certeza dariam certo neste apartamento. Além do mais, é a primeira vez em muito tempo que moro sozinha, e estou muito inclinada a adotar a idéia de fazer tudo com cara de mulherzinha, só porque eu posso. Nada de ficar achando lugar para um PlayStation, ninguém para ficar me dizendo que qualquer coisa florida deveria ficar em casas de velhas senhoras. Eu poderia criar um paraíso fofo, só meu.

Mas será que eu sou mesmo uma moça do tipo mulherzinha? Ainda não estou completamente convencida disso. Nunca uso rosa e, quando estava na escola, nunca fui muito daquela coisa toda de usar suéter de caxemira. Eu era mais do tipo que andava com os meninos, sempre a maior bagunceira. Para falar a verdade, só comecei a exibir sinais de vaidade quando entrei na faculdade. A coisa era tão simples que eu não sei por que nunca tinha tentado antes: é só passar uma hora na frente do espelho aplicando maquiagem e penteando o cabelo que os caras começam a prestar muito mais atenção na gente. Também ajuda se você rir das piadas deles, em vez de ficar tirando sarro da cara deles (isso eu aprendi no segundo ano com universitária). Quando voltei para casa, já conhecia todos os truques do negócio. E foi então que Pete finalmente começou a reparar em mim. Pela primeira vez na vida, ele veio conversar comigo como se eu fosse uma garota, e não “um dos caras”. Durante praticamente a vida inteira (bom, desde que eu tinha uns 13 anos), tinha sido apaixonada por ele, e ele nunca tinha me considerado nada mais que amiga. E, durante todo aquele tempo, para chamar a atenção dele, eu só precisava passar um pouco de brilho nos lábios e jogar o cabelo de um lado para o outro. Eu teria ficado extremamente louca da vida se não estivesse tão feliz por ele finalmente reparar em mim.

Claro que a outra opção de decoração é a coisa toda de indiano/étnico: mesinhas de rata, tapetes vermelhos com formas geométricas e incenso queimando. Mais uma vez, não sei se tem a ver comigo, mas preciso começar de algum lugar, não é mesmo? Há uma loja em Portobello Road que vende um monte de mesinhas e tapetes e nem é muito cara.
Suspiro. Tomar decisões importantes assim é demais para mim neste momento. Mesmo assim, com certeza dá para fazer alguma coisa com o que eu já tenho.

Olho ao meu redor em busca de inspiração. Há dois livros no braço do sofá. Meu som, que já viu dias melhores, está no chão, rodeado por CDs e fitas. Um espelho torto que o senhorio deixou pendurado e desolado na parede reflete a parede vazia a sua frente, com a tinta rachada e os buracos que sugerem o lugar em que havia quadros pendurados. E daí tem uma pilha de cartas enchendo o consolo da lareira, sendo que nenhuma é para mim. Quando aluguei este lugar com um contrato de seis meses, o senhorio me pediu para guardar qualquer correspondência que chegasse para Dorcas, a moradora anterior, “para o caso de ela voltar”. O que na verdade era um tanto desconcertante: parece que este apartamento não é bem meu, só estou cuidando dele enquanto a pessoa que morava aqui não volta. Mas o pior é que ela recebe mais correspondência do que eu.

Talvez eu precise pendurar algumas fotografias na parede. Jogar umas mantas em cima do sofá. Daí eu poderia tirar os tapetes e lixar o assoalho. Ou podia comprar um tapete enorme e deixar bem aconchegante...

Realmente não sei como as pessoas conseguem tomar decisões sobre coisas como decoração com tanta facilidade. Parece que elas têm um tipo de segurança incrível, de que existe uma maneira certa de fazer as coisas, e é o jeito delas. Veja meus pais, por exemplo. Meu pai gosta de música clássica e não agüenta bares e pubs barulhentos. Ele gosta de sair de férias, mas só se puder ir de carro (detesta avião). Gosta de comida inglesa tradicional e lê mais biografias do que livros de ficção. Minha mãe, por outro lado, gosta de comida italiana, de restaurantes glamurosos, de móveis e panos estampados, de férias na Europa continental e de filmes com Michael Caine. Eu sei quando eles vão gostar ou não de algo, porque são bem diretos, bem decididos. Minha mãe sempre diz: "Eu conheço meu gosto e gosto do que conheço", e é verdade, ela sabe. Mas eu sempre fico com vontade de perguntar para ela: “Como? Como é que você sabe? Como você pode ter tanta certeza?”.

Sabe, eu também gosto de comida italiana, mas gosto de chinesa, japonesa, inglesa e francesa. Já fui vegetariana e também já fiz a dieta do Dr. Atkins (com muito e muito bife). Gosto de comédias românticas com Meg Ryan, mas também gosto de filmes franceses e de terror. Gosto de sair para dançar, mas também gosto de ficar em casa. Gosto de refeições aconchegantes a dois e gosto de festas barulhentas; às vezes me visto dos pés à cabeça de bege e marrom neutro, outras vezes saio mais colorida do que o arco-íris. E nunca consigo resolver do que gosto mais.

E daí tem Pete. Quer dizer, eu achei que gostasse dele. Achei que o amasse. Mas nunca tive muita certeza. Ou será que eu nunca tive certeza se ele me amava?

Então, bom, voltemos à cozinha. Vejamos... abro a porta da geladeira. Dois ovos, um pouco de salsão (parece que é muito bom para desintoxicar; bem que eu gostaria que o gosto não fosse tão horrível) e um pão. Eu só tenho isso mesmo? Abro o compartimento do congelador e vejo a pizza que comprei do Fresh'n'Wild outro dia. Minha cabeça imediatamente se enche de argumentos contra a idéia de "preparar uma receita refinada": cozinhar para uma pessoa só é perda de tempo; não tenho nada para usar; não vou me dar o trabalho...

Meu Deus, que loucura. Estou em casa no sábado à noite. Não tem nada de mais, certo? Então, por que estou tão irritada? E por que estou com o estômago todo embrulhado por causa da música de Sirius? Quer dizer, claro que está alta, mas estamos em Notting Hill. As pessoas fazem festas, não é mesmo? Qual é o problema disso?

Saio da cozinha com determinação, esforçando-me ao máximo para ignorar a vozinha dentro da minha cabeça que não vai embora, repetindo que eu sou uma fracassada por estar sozinha em casa em um sábado à noite. Que se a minha mãe estivesse aqui agora (e sabe como é, se ela fosse vinte anos mais nova), teria arrumado um jeito de ser convidada para a festa em vez de ficar aqui sozinha, só escutando. Que eu nunca vou realmente conseguir vencer aqui e, assim que meu dinheiro acabar, vou voltar para casa com o rabo entre as pernas.

Uh huh, bum bum, huh huh, yeah.

Sirius e eu nos cumprimentamos de vez em quando. Mas é só isso. E também não é exatamente verdade: sou sempre eu que digo oi, Sirius simplesmente meio que retribui com um sorriso.

Mas ele é muito sexy, Não é bem meu tipo... quer dizer, é muito moderninho, para começo de conversa. Usa aqueles coletes combinando com o chapeu, ao estilo de Justin Timberlake, e está sempre de jeans escuro, parece até uniforme; acho que é designer ou artista, porque está sempre carregando um portfólio. Ele é tão “Londres55”... nunca se veria alguém assim em Bath.

E isso é parte do problema: eu me sinto super-intimidada por tudo o que tem a ver com Londres. Todas as outras pessoas parecem simplesmente conviver bem com isso, em vez de ficarem emocionadas com uma coisa boba como o metrô. Acho que eu vou acabar me acostumando, mas é preciso entender que fui criada em Castle Goomble, um vilarejo minúsculo perto de Bath, e só ouvia minha mãe contando histórias sobre as luzes fortes, o perigo e as emoções da cidade. Quando eu era adolescente, achava que a vida começava e terminava em Londres, e que estar presa à região oeste do país era a pior coisa que poderia ter acontecido comigo. As pessoas falam de "comunidade" como se fosse a melhor coisa do mundo, e é, é mesmo. Mas será que você consegue se imaginar morando em um lugar em que todo mundo sabe o livro que você está lendo; onde sua vizinha lhe dá parabéns no dia em que você fica menstruada pela primeira vez; onde todo mundo de sua rua sabe a nota que você tira em cada prova da escola? Pode acreditar, a coisa fica sufocante. Quando fiquei um pouco mais velha, pelo menos podia ir até Bath, a cidade mais próxima. Mas isso não é lá muito emocionante, não é mesmo? O lugar é lotado de turistas na maior parte, e todo mundo acha "lindinho". Bom, estou cansada de lindeza. Quero tosqueira, diversão e loucura.

Também existe o problema de que Bath se transforma em uma cidade muito pequena mesmo depois que você termina com alguém. Principalmente quando a razão da separação é o fato de você saber que ele a estava traindo, e agora você não consegue ir a nenhum restaurante ou bar sem ficar olhando para os lados, tentando disfarçar, para ver se ele não está lá com a outra pessoa.

Examino meus CDs e fitas: tem de tudo, de Stan Getz a White Stripes. Hummm. Bjork... Faz um tempinho que eu não escuto... mas provavelmente é intenso demais. Air...? Não, suave demais. Este é o problema dos álbuns, eu acho: você precisa assumir compromisso com um estado de espírito específico. Eu sei que isso não é nada cool, mas adoro compilações, em segredo. Adoro a variedade contida em único disco, e isso significa que não preciso me decidir por escutar um ou outro artista. Meus dedos hesitam por cima de uma fita antiga que eu gravei quando estava na escola e eu a tiro do meio das outras. Quando estava na escola, eu passava a vida gravando fitas para meus amigos; esse era provavelmente meu método de comunicação preferido. A mistura certa de músicas é capaz de dizer: "Você fica melhor sem ele" ou "Você é uma amiga maravilhosa, e sinto muito por ter estragado sua blusa preferida" muito melhor do que palavras. Essa fita é uma compilação típica de sua época: um par de canções chorosas como "Unbreak My Heart", algumas faixas das Breeders e de PJ Harvey que capturavam minha angústia adolescente perfeitamente, algumas faixas de dance e uma ou outra música retro de alguma banda obscura que incluí para mostrar como eu era cool. Os CDs podem utilizar tecnologia maravilhosa, mas o lado negativo é que ninguém mais perde tempo fazendo fitas de compilações.

Fazer o download de uma faixa em segundos simplesmente não é a mesma coisa que ter de gravar tudo manualmente, ouvir cada música e apertar o botão do stop no momento exato, no final de cada música. Talvez as fitas não sejam assim tão ruins, apesar de o gravador mastigá-las sempre que pode.

Feliz por ter tomado uma decisão com tanta rapidez, coloco a fita para tocar e me deito no sofá, determinada a relaxar e aproveitar a noite ao máximo. Este aqui é só um percalço de curto prazo, lembro a mim mesma. Quanto tempo faz que estou em Londres? Um mês. Só um pouco mais de quatro semanas. Não tenho como achar que já teria vida social. Essas coisas demoram para ser cultivadas. Morei no meu vilarejo durante 26 anos, então não é surpresa o fato de nunca ter passado uma noite em casa. Me pego pensando com saudade no apartamentinho que eu dividia com Pete em Bath, com uma lareira sempre acesa que me aquecia enquanto ele estava fora, fazendo sei lá o quê (ou melhor, fazendo sei lá quem). Mas, lembro a mim mesma, eu não era feliz de verdade. Vivia rodeada de amigos e familiares, mas sempre me sentia sozinha. E é claro que eu era convidada para todas as festas, mas eram sempre as mesmas pessoas falando sobre os mesmos velhos assuntos. Todo mundo conhecia todo mundo: diabos, a certa altura, todo mundo já tinha ficado com todo mundo. Não havia emoção nem intriga, e ninguém que não me conhecesse como "Lil-e-Pete": não tinha como eu ser anônima, como reconstruir minha identidade. Ao passo que aqui... bom, com certeza não há problema nenhum no quesito do anonimato. E se a balança está pendendo um pouco para um lado, tenho certeza de que logo recuperará o equilíbrio. Aumento o som mais um pouco. São os Indians cantando: "Life Ain't No Bed Of Roses" [a vida não é nenhum mar de rosas]. Nem me lembre disso, penso com sinceridade. Mesmo assim, olhe para o lado positivo.

Eu tomei a iniciativa. Não moro mais em Bath, a cidade de Jane Vusten, das ruínas antigas, da água de "spa" com gosto esquisito e dos campos infindáveis. Não sou mais Lily de Bath: sou Natalie de Notting Hill.

O telefone toca e eu salto do sofá para atender. Só umas poucas pessoas podem estar me ligando. Minha mãe (mas eu falei com ela ontem à noite, e ela não costuma ligar dois dias seguidos); Marlene, minha melhor amiga (mas também é improvável, ela deve ter saído para se divertir); ou... Pete. Desde que eu me mudei para cá, acho que temos nos falado uma vez por semana, e nossos telefonemas são sempre praticamente idênticos. Começamos contando como estamos ótimos e maravilhosos; daí falamos sobre o trabalho, a família (qualquer assunto neutro que possamos encontrar) e daí ele sempre diz: 'Ainda não consigo entender por que você saiu de casa. Por que você não volta? A gente se divertia tanto...". E eu respondo algo como: "Não, você costumava se divertir e, na maior parte do tempo, nem estava comigo, aliás", e daí ele começa a dizer que eu sou paranóica, e eu fico na defensiva e o acuso de ir para cama com outras, e antes de nos darmos conta, já estamos discutindo a mesma coisa que passamos três anos inteiros discutindo repetidamente. Depois de um tempo, eu normalmente começo a chorar. Eu o superei; mas é que eu fico aborrecida quando penso no tempo que desperdicei com ele. Pensando que ele se sentia do mesmo jeito que eu.

- Alô? — digo, cheia de esperança. Então, nós discutimos. Isso não quer dizer que eu não deseje ter notícias dele.

- Alô. Estou falando com Dorcas Meadowes? — diz uma mulher que parece refinada.

Meu coração se aperta. Certo, a outra possibilidade é que o telefonema nem seja para mim. O que é bem deprimente, levando em conta que eu sou a única pessoa que mora aqui. Agora eu bem que queria ter trocado de número, mas isso custa 40 libras e na hora eu não achei que seria problema ficar com o telefone antigo quando eu me mudei. Só que é. Isso sem mencionar o fato irritante de que a desgraçada da Dorcas recebe mais telefonemas do que eu, e ela nem mora mais aqui. Mas vai ver que é melhor assim. Se fosse Pete, eu poderia ter confessado que estou me sentindo meio para baixo. E isso teria sido um desastre.

- Não — digo, tentando manter a decepção longe da minha voz. — Ela se mudou há um mês.

- Ah. Você tem o telefone novo dela?

- Não, sinto muito - digo pela décima vez nesta semana. Será que Dorcas não se lembrou de dizer aos amigos qual é seu novo telefone?

- Bom, é uma pena - a mulher diz, parecendo muito irritada. - Aqui é do Nobu. Ela reservou uma mesa aqui hoje à noite, e preciso saber se ela vem ou não.

- Do Nobu? — esse só é o restaurante mais caro em toda a Londres. Dorcas deveria estar lá nesta noite? Uau. De repente ela subiu muito na minha avaliação.

- É — responde a mulher.

- Certo — digo depois de uma breve pausa. Não acredito que estou ao telefone com o Nobu! — Bom, sinto muito, mas realmente não posso ajudar.

— Não, bom, então está certo. - E, com isso, ela desliga.


Huh huh, huh huh. Bum, yeah.

Fico olhando para o telefone durante alguns segundos, tentando imaginar como seria sair para jantar no Nobu. Dorcas provavelmente é uma moça urbana toda glamurosa. Glamurosa e rica. Fico imaginando com quem ela ia jantar. Meus olhos pousam na pilha de cartas endereçadas a ela. De repente, elas me parecem bem mais interessantes. Imagino qual é o tipo de correspondência que uma pessoa que come no Nobu recebe.

Vou até lá e pego as cartas. A maior parte delas parece bem tediosa. Mas tem um envelope pardo grande que parece meio interessante, e um menorzinho, cor de creme, escrito à mão. Daí tem um catálogo, que dá para ver através do invólucro de plástico transparente. Deixo o restante das cartas onde estão e levo as duas de aparência interessante e o catálogo para o sofá comigo.

Acho que posso abrir o catálogo. Quer dizer, é só propaganda, não é mesmo? Não vai ter nada pessoal ali.

Quando estou prestes a rasgar o plástico, paro e reviro os olhos por tomar uma atitude tão ridícula. Não dá para acreditar que cheguei ao ponto de realmente pensar em abrir as propagandas que outra pessoa recebe pelo correio para me divertir.

Mas, já que cheguei assim tão baixo, eu meio que estou mesmo com vontade de abrir. Acho que, se vou ser patética, então que o faça completamente.

Olho em volta sorrateira, como se estivesse preocupada que alguém me visse fazendo isso, puxo o plástico com rapidez e abro o catálogo. Sei que é só um catálogo, mas me sinto um pouco estranha de abrir a correspondência de outra pessoa.

Mas reprimo minhas dúvidas e volto a atenção para o catálogo. Se é que isso pode ser chamado de catálogo, quer dizer: de algum modo, parece lindo demais para uma descrição tão simples. Nunca vi um catálogo de reembolso postal assim! Para começar, o papel em que está impresso é reluzente; em segundo lugar, está lotado de coisas interessantíssimas, todas incrivelmente caras (abajures de pedra e vestidos de veludo e outras coisas de que ninguém precisa, mas que são tão lindas que você provavelmente hipotecaria a casa só para tê-las). Claro, se você tivesse o que hipotecar, é claro. Acho que vou guardar isto aqui para minha mãe, é o tipo de coisa que ela adoraria.

Imagino minha sala repleta de "objetos" lindos. Será que Dorcas fazia encomendas deste catálogo? Quando ela morava aqui, será que esta sala era cheia de mantas e almofadas lindas? Aposto que sim. Ela provavelmente também sempre acendia velas. Se eu fechar um pouco os olhos, posso imaginar cortinas grossas de veludo na janela, almofadas de couro e camurça no chão e uma manta de pele falsa no sofá. Certo, assim que eu guardar um pouco de dinheiro, vou sair para fazer compras.

Largo o catálogo e olho para as outras cartas. Agora meu apetite foi atiçado, e estou com vontade de dar mais uma olhadinha na vida de Dorcas. Não seria ruim se eu tivesse minha própria pilha de cartas para abrir, mas não tenho nenhuma. Recebi um extrato do banco hoje de manhã (algo que nunca é bom de se ver no início do fim de semana) e um cartão-postal dos meus pais há duas semanas: e é tudo, desde que me mudei para cá. Será que as pessoas não escrevem mais cartas? Claro que sim, só que escrevem para Dorcas, não para mim.

Depois de hesitar durante alguns minutos, pego o envelope marrom grande, devolvo à pilha de cartas com um gesto pomposo, procurando em segredo algum sinal de que seja outra carta de propaganda, para justificar sua abertura. Em vez disso, fico chocada. Tem um selinho discreto no canto que diz "Soho House". Como é que eu não vi isso antes? Será que não é da Soho House? O clube particular que todo mundo que é alguém freqüenta? Aquele que abriu uma filial em Nova York e apareceu logo em Sex and the City? Não me diga que Dorcas era sócia!

Meu coração começa a bater um pouco mais rápido. Se quiser falar em "alta sociedade", isto aqui tem de ser o que mais se aproxima disso hoje em dia. De repente, Londres não parece assim tão impenetrável, afinal de contas. Eu realmente recebi uma carta do Soho House. Correção: Dorcas recebeu uma carta do Soho House. Mas ela não está aqui, não é mesmo? E, além do mais, não faço a menor idéia de onde ela está. Porque, até onde eu sei, ela pode ter se mudado para a Austrália e não vai se importar muito com algumas cartas que ficaram aqui, não é mesmo? Dou uma bela apalpada no envelope: não tem muita coisa ali dentro. Algumas folhas de papel, no máximo. Então, largo mais uma vez. Isso é insuportável. Não posso ficar abrindo a correspondência de outra pessoa assim. Mas, veja bem, estamos falando do Soho House! Quando é que eu vou ter uma oportunidade dessas de novo?

Volto-me para a outra carta, que parece igualmente atraente. O envelope é grosso e cor de creme, a caligrafia é elegante, endereçada como se deves com uma caneta-tinteiro.

Dorcas Meadowes, Ladbroke Grove, 127, apí° 3, Notting Hill, Londres W11

Parece bem chique, não é mesmo? E agora é meu endereço. Eu moro aqui. De repente, sinto uma onda de animação. Dane-se Pete, e dane-se a festa no andar de cima: não preciso de nenhum dos dois.

Fico imaginando como Dorcas deve ser. Bonita, provavelmente. Não posso imaginar nenhuma pessoa feia que freqüente o Soho House. Levanto para me olhar no espelho empino a cabeça e ajeito a postura, imaginando que sou ela.

— Queriiida, você está divina — digo para meu reflexo, fingindo ser Catherine Zeta-Jones ou alguém assim. Certo, talvez o sotaque esteja um pouco exagerado (pareço mais a rainha do que Elizabeth Hurley), mas posso dar um jeito nisso.

— Estou com pressa, saindo para tomar um drinque no Soho House — digo a um Pete imaginário.

— Ah, Sirius, sinto muito; não posso ficar mais... tenho uma reserva no Nobu daqui a uma hora...

Enquanto falo, minhas mãos são atraídas de maneira irresistível para as cartas mais uma vez, eu as tomo na mão e começo a me abanar, para completar o quadro. Não faria mal dar só uma olhadinha, não é mesmo? Quer dizer, ninguém nunca vai saber, vai? Tenho certeza de que Dorcas nunca vai voltar para pegá-las, então dar uma olhadinha não vai fazer absolutamente diferença alguma. Só que pode ser que ela volte, não pode? E daí, o que eu faço? Não seria exatamente adequado entregá-las já abertas, não é mesmo? Caramba, e elas também parecem tão irresistíveis...

Quase como em um reflexo, puxo as mãos para longe das cartas, como se tivessem
queimado as pontas dos meus dedos.

— Lily Evans, o quê, diabos, você acha que está fazendo? — digo para mim mesma por entre os dentes e me arranco para fora desses delírios de "Dorcas Meadowes".

Essa foi por pouco. Sorrio para meu reflexo enquanto escuto "Tempted by the fruit of another" [tentado pelo fruto de outro] saindo do meu som. Não sei se foi bem isso que o Squeeze quis dizer quando fez a canção, mas as palavras têm tudo a ver. Vou resistir à tentação. Essas cartas são correspondência pessoal de outra pessoa, e eu não sou o tipo de gente que vai abri-las. Ponto final. Ligo a TV, mas, antes que possa ter oportunidade de começar a mudar os canais, o telefone toca de novo.

— Salva pelo gongo! — grito e estico a mão para pegar o telefone.

— Lily? — pergunta uma voz conhecida. — Você parece meio sem fôlego.

— Marlene! É, bom, é que acabei de atravessar o apartamento correndo. Ou melhor, mergulhei por cima do sofá.

Lene e eu fomos vizinhas desde mais ou menos os cinco anos e, até eu vir para Londres, fazíamos praticamente tudo juntas. Minha irmã, Petúnia, morreu quando eu tinha seis anos, e meus pais demoraram muito tempo para superar a questão, então eu passei uns dois anos mais na casa de Marlene do que na minha. Nós éramos inseparáveis: íamos a todo lugar juntas, líamos os mesmos livros, assistíamos aos mesmos filmes...

...Meu Deus, até nosso primeiro beijo aconteceu na mesma noite. Obviamente, não nos beijamos uma à outra, beijamos meninos. Foi com John e Steve da escola, e nós duas tínhamos 14 anos. Até fizemos questão de ficar a cerca de três metros uma da outra, para o caso de alguma coisa dar errado, e daí acabamos rindo tanto que John e Steve ficaram completamente paranóicos e saíram andando, como se fôssemos uma dupla de retardadas dementes. Fiquei bem aliviada, na verdade: John era péssimo de beijo e, já naquele tempo, eu me preocupava com a possibilidade de Pete ficar sabendo. Não que fosse fazer alguma diferença significativa: até parece que Pete tinha me convidado para sair àquela altura, mas quando eu tive aquela idéia, eu estava me guardando para ele.

Mas, bom, desde então, Marlene e eu fizemos praticamente tudo juntas (escola, faculdade, até trabalho: entramos na agência Shannorfs, em Bath, no mesmo dia). Quando saí da faculdade, comecei a atirar para todos os lados para tentar conseguir um emprego: como não sabia o que queria fazer, eu me candidatei a praticamente tudo, enquanto Lene estava pronta para viver na miséria um tempo, até descobrir o que realmente queria fazer da vida. Mas eu a convenci a mandar um currículo juntamente com o meu para algumas empresas, e acabamos as duas conseguindo um trabalho na Shannon's, uma agência de publicidade. Acontece que ela acabou se adaptando ao posto com naturalidade, ao passo que eu nunca senti no fundo do coração que aquilo era para mim. Mas, se eu não tivesse resolvido pedir demissão e me mudar para Londres, ainda estaríamos trabalhando lado a lado.

Só que, para ser sincera, desde que cheguei a Londres, tenho evitado os telefonemas dela. Não é que eu não queira falar com ela (claro que quero), mas é que eu queria deixar até ter mais coisas para contar. . Afinal de contas, ela é minha melhor amiga. A última coisa que eu quero é ela ficar achando que eu fico sentada de bobeira toda noite.

Quero impressioná-la com histórias fantásticas a respeito do meu maravilhoso turbilhão social: meus dias cheios de glamour e minhas noites cheias de hedonismo. E, também, não posso contar a ela a verdade, porque ela acabaria contando para minha mãe. E não suporto a idéia de os sonhos da minha mãe de se mudar para Londres irem pelo cano pela segunda vez na vida.

— Que bom que você finalmente resolveu ficar em casa!
— diz Marlene com seu tom alegre de sempre. — Então, conte, como está tudo? Você está feliz em Londres?

Faço uma pausa. Tenho vontade de contar a Lene que ando me sentindo um tanto solitária, um pouco assustada de ter mergulhado na parte funda e não me lembrar muito bem de como se faz para nadar. Eu sempre contei meus problemas para Marlene (e pode acreditar, foram muitos). Sempre adorávamos passar a noite de sábado assistindo a filmes antigos e discutindo nossa vida amorosa (geralmente desastrosa), e eu sei que ela espera que eu lhe faça confidências como sempre.

Mas, por algum motivo, eu não consigo, então murmuro alguma coisa e peço que ela me fale de si em vez disso.

Enquanto Lene vai me contando sobre a semana que passou, penso sobre como ela ficou surpresa quando eu concretizei minha ameaça de me mudar para Londres. Na verdade, eu me surpreendi também. Eu só disse isso para causar efeito em uma noite quando Pete chegou em casa à meia-noite sem explicar por onde tinha andado. Então eu disse a ele que já estava farta daquilo, e que iria largá-lo e me mudaria para Londres. E quando ele me disse para parar de ser ridícula, eu finquei o pé no chão e me recusei a confessar que, na verdade, não tinha planos de me mudar... não a sério. E daí minha mãe ficou sabendo... bom, ela ficou tão animada que eu não tive como dizer que não tinha certeza se tinha falado a sério ou não. Mesmo assim, agora está feito; mas eu bem que gostaria de ter algumas boas histórias para contá-la.

Meus olhos são atraídos para as cartas de novo. Acho que eu bem que poderia contar algumas mentirinhas inofensivas, não é mesmo? Sabe como é, só para deixar as coisas um pouco mais animadas. Quer dizer, até parece que Lene está aqui ou algo assim. Ela nunca vai saber. Olho para outro lado. Caramba, Lily, dou bronca em mim mesma. Você está mesmo pensando em esconder a verdade de sua melhor amiga? Só porque não quer que todo mundo ache que você é um fracasso?

— Lily? Tudo bem com você? — Marlene sussurra ao telefone. Faz vários minutos que eu não digo nada, o que realmente não é normal no meu caso: geralmente, nós duas falamos tanto que precisamos nos esforçar para inserir uma palavra no meio da frase da outra. — Olha, se as coisas não estão dando certo, você pode me dizer, sabe disso. Não tenha vergonha nenhuma em admitir que você estava errada...

Eu me sinto corar. Reconhecer que eu estava errada? Acho que não. Isso significaria decepcionar minha mãe e fazer Pete cantar de galo para cima de mim e, sinceramente, não tem como eu confessar que estou sozinha em um sábado à noite pela quarta vez seguida. E, de todo modo, será que Marlene não se dá conta de onde eu estou? Estou em Notting Hill. Moro no número 127 de Ladbroke Grove. Claro que as coisas estão dando certo. Meus olhos repousam outra vez nas cartas.

— Se eu estou bem? — ouço a mim mesma dizer, com a voz levemente esquisita. — Meu Deus, não tinha como eu estar melhor!

Faço uma careta por causa do que acabei de dizer e sinto meu rosto esquentar.

- É mesmo? É que sua mãe disse que você tinha parecido um pouco para baixo quando ela ligou... que talvez as coisas estivessem um pouco mais difíceis do que você esperava. Quer dizer, Londres é um lugar enorme...

Minha mãe? Ai meu Deus, será que eu fui assim tão óbvia? Achei que eu tinha feito um bom trabalho ao dizer-lhe que era exatamente como ela achava que seria, quando me ligou outra noite. Obviamente preciso ensaiar para parecer mais convincente. E que hora melhor para treinar do que o presente?

Respiro fundo.

— A cidade é enorme e fabulosa! — digo a Lene, tentando sorrir enquanto falo. — Aliás, você teve sorte de me pegar em casa neste horário. Eu estava de saída.

Eu me contorço toda enquanto falo, mas tento convencer a mim mesma de que está tudo bem. Sinto-me um tanto vazia enquanto falo, mas acho que isso não tem muita importância.

— Ah, que bom — ela diz, parecendo aliviada, e sinto uma pontada de culpa. Ela realmente se importa comigo, e eu estou aqui inventando histórias ridículas a respeito de ter uma vida social secreta. — Então, aonde você vai? — ela pergunta.

— Aonde eu vou? - tento, desesperadamente, pensar em algum lugar. E daí me bate. Ou melhor, o cantinho esquerdo de uma das cartas de Dorcas atrai meus olhos. — Ah, para falar a verdade, vou ao Soho House — digo, antes que consiga me deter, então faço careta. Não acredito que disse isto.

— Não acredito! — Lene exclama. — Caramba, Lily... esse é o clube mais legal de Londres. Com quem você vai?

Com quem eu vou? Merda... com quem, diabos, eu poderia estar indo à desgraça do Soho House?

— Com... — começo a dizer, então faço uma pausa. Isso é ridículo, preciso dizer a verdade a Marlene. Diga simplesmente: "Não é verdade que eu vou. Eu inventei." Mas sei que não posso fazer isso. — Algumas pessoas...? — digo, hesitante.

— Só com algumas pessoas? Caramba, eu bem que gostaria de conhecer gente que vai ao Soho House. Então, como são as coisas... em Londres, quer dizer?

Como são as coisas? Como é que eu vou saber? Fico com vontade de dizer que fiquei em casa praticamente toda noite desde que cheguei aqui. A vista da minha janela é maravilhosa e, para ir e voltar do trabalho, eu atravesso a feirinha de Portobello, com todos aqueles bares e restaurantes maravilhosos, mas ainda não entrei em nenhum.

Mas não digo. Em vez disso, respiro fundo, cruzo os dedos e falo sobre os bares bacanas de Portobello Road pelos quais passei e nos quais fiquei morrendo de vontade de entrar, usando a imaginação para descrever o interior; sobre todas as roupas maravilhosas vendidas na feirinha, onde dá para comprar sapatos e camisetas de brechó bacanas por 5 libras; sobre a área espanhola no fim de Portobello, bem onde se junta a Golborne Road, onde dá para comprar o melhor azeite de oliva e as melhores tortas de creme do mundo.

— Daí tem o café e rotisseria Tom's, que é o melhor lugar para tomar café-da-manhã, e o Beach Blanket Babylon, que tem os melhores drinques do mundo — descrevo, entusiasmada, sem mencionar que tirei as informações da revista Heat, e não de experiência pessoal. Enquanto falo, vou lembrando a mim mesma de que Londres deveria ser assim. Londres provavelmente é assim para pessoas como Dorcas. Espero que Londres venha a ser assim para mim. — É uma maravilha — concluo no final de minha descrição desta minha maravilhosa cidade mítica, em que tudo pode acontecer, e em que nada aconteceu para mim, por enquanto. — É mesmo uma maravilha.

— Parece fantástico — Lene suspira. — Fico feliz. Outro dia mesmo, o Pete estava dizendo que acha que você volta daqui a um mês, olha só como ele não sabe nada. E agora você vai ao Soho House! Todo mundo vai ficar impressionadíssimo.

Pete disse isso? Caramba, que sujeito mais arrogante. Bom, vou mostrar a ele. Vou transformar tudo aqui em sucesso. Apesar da culpa que inunda minhas veias, sinto um jorro de animação ao pensar que todo mundo da minha cidade vai ficar achando que estou me divertindo muito. Eu sei que contei algumas mentirinhas inofensivas. Talvez não tão inofensivas assim. Mas pelo menos agora todo mundo vai ficar pensando que minha vida é maravilhosa. Esse é um tipo de consolo para o fato de que a realidade é bem diferente. Mas, bom, por que é que eu não poderia ir ao Soho House? Dorcas ia, e ela morava no mesmo apartamento que eu. Tudo é possível.

— Então — digo, mudando de assunto antes de me empolgar demais. — E você, o que vai fazer hoje à noite?

— Bom, todo mundo está no The George, então devo ir lá perto do horário de fechar. E a Rebecca Williams vai dar uma festa, então acho que vamos todos para lá mais tarde.

— Maravilha... parece ótimo — consigo dizer, tentando parecer entusiasmada. Rebecca Williams é uma daquelas tipinhas passivo-agressívas com cabelo e unhas perfeitas, e sempre foi uma das principais suspeitas de causadora das noitadas de Pete.

— E a loja? — Marlene pergunta, e eu tenho um pequeno sobressalto.

— Loja? — eu não contei para ninguém da minha cidade que estou trabalhando em uma loja. Quer dizer, eu trabalhava com publicidade. Estava na fila para uma promoção. Vai ser difícil confessar que agora dobro fileira de suéteres, apesar de trabalhar em uma das lojas mais glamurosas de Notting Hill. Então, eu meio que disfarcei e disse para todo mundo que estava trabalhando em algo parecido com o que fazia antes. Quer dizer, estou trabalhando com moda, não é mesmo? E eu costumava ter alguns clientes de moda na Shannon's. Então é mais ou menos a mesma coisa. Não é?

— Sabe a sua lojinha? Não me diga que... que você mudou de idéia. Acho que não seria a primeira vez... — Lene está dando risadinhas.

De repente me lembro da noite que passamos bebendo até não poder mais na véspera da minha partida para Londres. Confessei que a minha ambição verdadeira na vida era ter uma lojinha cheia de coisas lindas. Na verdade, quando disse isso a ela, estava pensando em uma loja com sabonetes bacanas e talvez algumas roupas, mas depois de olhar para o catálogo Found de Dorcas, elevei um pouco minhas expectativas.

- Não, não mudei de idéia — respondo, indignada. Marlene sempre caçoa de mim porque eu nunca consigo tomar uma decisão. E isso não é verdade, não mesmo. Não em relação às coisas importantes. Pelo menos, não sempre.

Então, você vai abrir a loja? — Lene pergunta, toda interessada.

— Ah, sei. Até parece que eu vou simplesmente abrir uma lojinha. De algum modo, acho que não é tão fácil assim — respondo com um suspiro. — Acho que a idéia provavelmente devesse ser classificada como "sonho", mais do que "ambição", se é que você me entende. Você não contou para ninguém certo?

Claro que não — diz Lene. — Quer dizer, eu falei que minha ambição era ser modelo de passarela, então, quem sou eu para falar? E aí, com uma vida tão glamurosa em Londres, tem alguma notícia na fronte romântica?

Faço uma pausa. Quer dizer, a resposta óbvia é não. Não, não tenho. Então por que só estou pensando e não digo em voz alta? Por que a idéia de Lene indo à festa de Pete e dizendo para todo mundo que continuo solteira é tão difícil de aceitar para mim?

Lily? — pergunta, cheia de curiosidade, depois de eu ficar sem falar alguns segundos. — Você não fez isso, fez? Ai meu Deus, você já arrumou um namorado!

Ela parece super-animada. Será que seria assim tão errado deixá-la achando que eu estou saindo com alguém?

Diabos, o que está acontecendo comigo? Claro que seria errado, e também incrivelmente triste. Parei de inventar namorados aos 15 anos, e Marlene nunca acreditou em nenhum deles mesmo.

Mas parece que minha boca ganhou vida própria.

— Hum... bom, talvez — digo, enigmática. Gostaria de poder enxergar meu próprio rosto, porque a cara de indignação que estou fazendo com certeza daria fim a essa fantasia no mesmo minuto.

Vou até a frente do espelho para franzir a testa para mim mesma. Aliás, eu consigo parecer bem assustadora quando quero.

Eu sabia! — ela berra. — Quem ele é? Qual é o nome dele?

Merda. O nome dele. "Está vendo?" Digo a mim mesma, de mau humor. "Está vendo o que acontece? E agora, o que você vai fazer?”.

Olho ao redor, em uma busca desesperada por inspiração. De algum modo, acho que as cartas de Dorcas não podem me ajudar agora. Meus olhos viajam para o alto, na direção do teto.

— Sirius — digo baixinho. — Ele... hum, mora no andar acima de mim. — Certo, muito bem, de volta à realidade. Reconheço que seja certo exagero dizer que estamos indo para a cama juntos, mas ele pelo menos mora no andar de cima. Isso deve contar para alguma coisa, quem sabe?

Seu vizinho! — Marlene exclama. — Lily, você é terrível!

— Você não faz a menor idéia de como eu sou terrível — digo, com tristeza. A pior coisa é que dizer a Lene que tenho namorado me dá uma sensação bem boa: é como aqueles espelhos das lojas que fazem a gente parecer dois tamanhos menores do que a realidade. Você sabe que não é verdade, mas fica feliz do mesmo jeito.

Isso é legal demais — Lene prossegue, cheia de esperança. — Então, quando é que você vai me convidar para uma visita?

— O quê? Aqui? — de repente, sinto um choque de medo. Ela não pode vir aqui. Ela vai descobrir que eu ando que eu ando elaborando a realidade só um pouquinho...

— Você não quer que eu vá aí passar uns dias?

Lene parece estar na defensiva.

— Claro que quero. Meu Deus, eu adoraria que você viesse passar alguns dias aqui. Mas será que podemos marcar para daqui a algumas semanas? Eu... - tento encontrar uma desculpa com rapidez —... vou viajar com o Sirius no fim de semana que vem e vou trabalhar no outro - ouço a mim mesma dizer. — Mas eu ligo para você, certo?

— Você já vai passar um fim de semana com ele? — pergunta. — Uau. Ele tem algum amigo solteiro?

Tento lembrar se vi Sirius com algum cara bonito, daí me lembro de que na verdade não faz diferença, já que Sirius é pouco mais do que um namorado imaginário, então, se ele tem ou não amigos solteiros, não passa de uma questão acadêmica.

— Tenho certeza de que consigo desencavar um para você - prometo.

— Maravilha! Bom, diz quando você acha que eu posso ir.

— Certo. Divirta-se hoje à noite!

— Você também... Tchau!

Coloco o telefone no gancho e fico lá parada por um instante. Estranhamente, sinto-me animadíssima.
É verdade que os fatos não são nada bons.

  • Fato número um: Meu emprego é uma bela porcaria.

  • Fato número dois: Não tenho nenhum amigo aqui.

  • Fato número três: É sábado à noite e eu estou em casa assistindo à TV.

  • Fato número quatro: Acabei de mentir para minha melhor amiga e me senti bem fazendo isso.


  • Mas talvez seja bem como dizem: as aparências é que contam. O que começou como uma mentirinha inofensiva para impedir que minha mãe ficasse aborrecida transformou-se em uma vida inventada completa, até com namorado. E, para ser sincera, nunca me senti tão bem quanto agora desde que me mudei para Londres. Marlene acha que eu vou ao Soho House, e que estou saindo com Sirius. E isso significa que minha mãe vai ficar feliz da vida, e Pete... bom, espero que ele fique bem menos do que feliz. Talvez ele finalmente perceba que eu tenho capacidade total de viver sem ele. E, daí, só vou precisar encontrar uma maneira de passar das aparências para a realidade.

    Ligo a TV e sinto uma onda de prazer se abater sobre mim quando vejo Hugh Grant oferecer a Julia Roberts alguns damascos com mel. O Canal 4 está exibindo “Um lugar chamado Notting Hill”. Sinto-me inchar de orgulho ao vê-lo caminhando por Portobello Road: é meu novo lar! Eu adoro esse filme. Assisti com Lene quando foi lançado, e foi quando resolvi que me mudaria para Ladbroke Grove. Eu disse para todo mundo, e todo mundo só disse "sei, sei", e ninguém acreditou mesmo em mim. Ha! Bem rapidinho, coloco minha pizza pronta Fresh'n'Wild no forno e sirvo uma taça de vinho para mim mesma.

    Fico olhando para os créditos do filme. Minha garrafa de vinho está vazia e, para dizer a verdade, não estou me sentindo tão efervescente quanto antes. Quer dizer, eu sempre choro um pouco quando o cara que tem a mulher de cadeira de rodas se recusa a deixá-la para trás quando saem à caça de Julia Roberts. Mas normalmente não choro tanto assim.
    O filme terminou há cerca de dez minutos, e eu continuo toda chorosa. O negócio é que todo mundo é super-resolvido naquele filme. Quer dizer, Hugh Grant conhece Julia Roberts porque ela simplesmente entra na loja dele. E todos já são bem amigos, ao passo que eu não tenho amigo algum em Londres. Talvez eu tenha sido idiota de pensar que poderia recomeçar tudo. Com certeza nunca achei que ficaria solitária em uma cidade que tem tanta gente.

    Depois de ruminar um pouco, levanto para pegar um copo de água. Quando vejo meu reflexo no espelho, quase começo a chorar de novo: minha aparência está péssima, com a maquiagem toda escorrida pelo rosto e a fivelinha de strass que eu comprei hoje na feirinha de Portobello quase caindo de uma mecha de cabelo.

    Mas é claro que isso não passa do vinho tinto falando (ou, sabe como é, melhor, chorando). Estou ótima, mesmo. Realmente, só preciso ir para a cama.

    Começo a arrumar tudo, pego a caixa de pizza vazia e a embalagem de chocolate e enfio em um saco de lixo; daí percorro o restante do apartamento catando lixo. Preciso reconhecer que a colheita não é muito impressionante: pacotes vazios de refeições individuais prontas, garrafas vazias de vinho, exemplares das revistas Heat e Hello!. Vou me livrar de toda essa porcaria e vou resolver minha vida, penso determinada. Vou fazer o que o artigo da revista mandou: limpar minha vida e criar uma nova eu. E isso inclui jogar fora as cartas de Dorcas (o senhorio que se dane). Agora este apartamento é meu, e não sei por que tenho de deixar as cartas dela se acumularem. Talvez eu até mande trocar o telefone, afinal de contas.

    Em vez de pegar as cartas, porém, faço uma breve pausa. Jogá-las fora com certeza é uma opção. Mas e se Dorcas de fato voltar? Ou se o senhorio resolver dar uma passada para pegá-las?

    Fico olhando para elas durante um tempo, tentando decidir se ficar com elas seria um ato de força ou de fraqueza. No fundo do meu coração, acho que o motivo por que não quero jogá-las no lixo é que estou desesperada para saber o que tem dentro delas.

    Mas isso é ridículo. Não há como abri-las. Nesta noite, já fui bem má de dizer a Lene que tenho uma vida social super-glamurosa, quando a verdade é que só fico aqui comendo pizza. Não tem como, além disso, eu também abri a correspondência de outra pessoa.

    Acho que eu poderia devolver tudo para o correio. Assim, provavelmente poderiam ser repassadas para Dorcas, seja lá onde ela more agora. Mas, na verdade, provavelmente seriam jogadas fora. Quer dizer, quem se importa com o fato de Dorcas receber ou não as cartas dela?

    Pego o envelope grosso, cor de creme e endereçado à mão, e seguro na contraluz, mas não dá para obter nenhuma informação adicional assim. Você só está fazendo isso por estar entediada, lembro a mim mesma. Vai ser só alguma carta tediosa sem nada de interessante dentro. E, de todo modo, abrir a correspondência de outra pessoa é simplesmente errado. Como roubar. Ou espiar alguém. Pode até ser crime.

    Só que... bom, se eu abrisse, poderia descobrir de onde veio, de modo que seria possível devolver com um bilhete explicativo. O correio às vezes abre as correspondências para devolver ao remetente, não é mesmo? Então, eu simplesmente poderia fazer isso para eles. Sabe como é, assim eles economizam tempo...

    Não. Idéia idiota.

    Como não quero ceder à tentação, olho de novo para a carta do Soho House. Certo, esta aqui tem mais a ver com correspondência comercial. Não é como se tivesse sido enviada por um amigo, ou um hospital, ou um banco, ou algo assim. Não é pessoal.
    Quem eu estou tentando enganar? Claro que é pessoal. Tem o nome de Dorcas Meadowes escrito nele.

    Mas se eu não abrir, nunca vou saber o que tem dentro. Minha mãe sonhou a vida toda em ser do tipo de Dorcas, que vai a todas as melhores festas. Nunca se sabe, se eu abrir, pode ser que descubra como ficar igual a ela. E se Dorcas não se dá o trabalho de dizer aos outros que se mudou, não é minha culpa, certo?

    Rapidamente, antes que minha consciência tome conta de mim, rasgo o envelope. Daí, largo de novo. O que está acontecendo comigo? Por que eu me preocupo com o que está dentro do envelope? E daí que é do Soho House?

    Mas, bom, agora que eu abri, acho que dá na mesma olhar. O mal já foi feito, certo?

    Lentamente, meus dedos se fecham sobre o conteúdo do envelope e puxo para fora. Tentando convencer a mim mesma de que isso é algo absolutamente adequado a se fazer, viro as páginas até encontrar um programa do Soho House com uma carta endereçada a Dorcas de alguém chamado Podge, convidando-a para a sessão fechada de um filme na semana seguinte e um jantar especial na outra em homenagem a algum diretor de quem eu nunca ouvi falar. Então, é isso que as pessoas fazem no Soho House.

    Fico olhando para a carta durante alguns minutos, tentando Imaginar como seria estar na pele de Dorcas, receber uma carta como esta de verdade. Ser sócia do Soho House, estar inserida na turma mais in. Dou outra olhada no programa, imaginando que sou ela. Hummm, a alguns filmes eu posso ir. Ao jantar, tenho certeza...

    Daí, percebo que há um item em destaque anunciando que há um festival na filial do Soho House no interior, o Babington House. É para lá que as pessoas mais refinadas vão passar fins de semana para descansar. Só que não é o tipo de interior que eu conheço: de acordo com a revista Heat, os quartos têm banheiro privativo e enormes home theaters, e o Gow Shed (ou "celeiro"), na verdade é um spa no qual se podem fazer tratamentos como Raw Hide (ou "pele em carne viva", uma esfoliação).

    Fico olhando para a outra carta. Minha curiosidade agora foi atiçada e estou desesperada para abri-la. Mas não vou abrir. Posso não ser rica e fabulosa como Dorcas, mas tenho integridade. Mais ou menos. Fico imaginando se Sirius a conhecia. Aposto que ela teria sido convidada para a festa dele; a diferença seria que ela provavelmente estaria ocupada demais para ir. Mesmo assim, não importa. Eu é que moro aqui agora. E vou me divertir aos montes, mesmo que não me torne sócia de algum clube privado.

    Prego o programa do Soho House em meu quadro de recados e coloco o catálogo da Found na minha mesinha de centro: de algum modo, ambos alegram o ambiente e fazem com que eu me sinta mais sofisticada. Então, decepcionada comigo mesma, pego os dois de novo e guardo em uma gaveta. Eu gostaria de ser mais parecida com minha mãe: ela era lindíssima e sofisticadíssima quando era mais jovem. Vi fotos dela com mini-vestidos nos anos 60, parecia modelo. Aposto que, se tivesse se mudado para Londres quando era mais nova, teria ido trabalhar na Vogue ou algo assim. Mas eu sou mais como meu pai: só faço o que é seguro e gosto de estar com pessoas que conheço bem. Minha mãe é capaz de circular em uma festa e conhecer todo mundo que está lá, ao passo que eu sempre encontro um grupo de amigos e colo nele. Mas vou ter de mudar se quiser que as coisas aconteçam aqui. Principalmente porque não tenho um grupo de amigos com quem andar, e isso significa que eu vou ter de tomar jeito e ser ousada, por mais assustadora que a perspectiva seja.

    E, nesse ínterim, não adianta nada ficar fingindo que eu sou Dorcas, imaginando se compro um cobertor de caxemira novo e a qual sessão fechada com meus amigos-celebridades irei, porque está na cara que eu não sou ela. De todo modo, já passa da meia-noite, estou cansada, e vou para a cama.

    Quando me levanto para ir para o quarto, faço uma breve pausa, então pego a segunda carta. Sem questionar minhas intenções, levo-a para o quarto e a coloco na mesinha-de-cabeceira.

    Não que eu vá abrir. De jeito nenhum.




    N/A: Primeiro capítulo postado, espero que gostem. :)
    A ortografia não está perfeita porque ainda estou sem beta. E, aproveitando, alguém se candidata? Juro que me comporto. /faz cara de amável/
    Agradecimentos especiais à Suze, que me aturou o dia todo falando sobre minhas idéias de adaptações. Suze, te amo, migs.
    You’re the best. ♥
    Próximo capítulo em breve. Beijocas,

    Skye Wooster.

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