Capítulo 2
O duque de Templecombe estava ganhando e a pilha de luíses de ouro à sua frente crescia a cada virada de carta.
Muitas das mulheres que observavam os jogadores de outras mesas tinham vindo postar-se atrás dele e davam gritinhos deliciados, todas as vezes que ganhava.
Havia ali mais ou menos cinqüenta hóspedes do grão-duque Boris, nas quatro mesas de jogo colocadas no salão elegante que dava para o jardim da vila.
Situado no alto de um rochedo, o palácio oferecia uma vista magnífica da baía. Mas ninguém estava interessado em outra coisa, a não ser nas cartas, e, quando o duque ganhou de novo, um murmúrio excitado percorreu os espectadores e até mesmo os adversários.
O homem sentado ao lado do duque, que perdera a noite toda, reclinou-se na cadeira com ar exasperado e disse:
— Infeliz no jogo, feliz nos amores!
— Isso fez com que o duque lembrasse de Imogen, e olhou à volta para verificar se a moça estava no lugar de costume perto dele.
Mas não havia sinal dela, e o duque lembrou vagamente de que, algum tempo antes, a vira sair por uma das largas portas-janelas que se abriam para o jardim.
Embora não tivesse muita certeza, teve a impressão de que o grão-duque a acompanhava, e, por um momento, uma ruga apareceu entre seus olhos.
O grão-duque era conhecido pelo fascínio que exercia sobre as mulheres. Isso, não só por ser imensamente rico e generoso, mas também por ser um homem muito atraente, com um charme que as mulheres achavam irresistível.
O duque lembrava que, quando se dirigiam para a vila, Imogen tinha dito que achava o anfitrião encantador e que teria prazer em revê-lo. Ficou um pouco irritado porque não queria que Imogen Moreton pensasse em outro homem, a não ser ele, e, principalmente, naquela noite.
Quando viajavam em seu iate, de Marselha para Monte Carlo, o duque resolveu que seus dias de celibato estavam no fim e que casaria com lady Moreton, como todo mundo esperava.
O marido de Imogen tinha morrido na Guerra do Bôer. Como havia casado muito jovem, ela estava agora, aos vinte e cinco anos, no apogeu de sua beleza.
Os parentes do duque insistiam para que casasse, e era de fato um milagre que até agora, aos vinte e sete anos, ainda não tivesse sido empurrado para o altar por alguma mãe calculista.
Ele havia escapado a todas as ciladas, a todos os engodos, tendo desde cedo resolvido que não deixaria que o levassem ao casamento, a não ser quando estivesse disposto a isso.
As mulheres o adulavam e, como seu nome era antigo e respeitado, sua companhia era procurada não só pela gente da sua idade, como também por estadistas, políticos e homens importantes mais velhos do que ele. Era amigo do príncipe de Gales, antes que este se tornasse rei, e um visitante sempre bem-vindo ao Palácio de Buckingham.
Durante muito tempo tinha se perguntado se Imogen, sua amante há mais de um ano, seria o tipo de esposa que lhe convinha. Admirava a beleza da moça, tinham os mesmos interesses e o mesmo círculo social.
Era muito importante, na opinião do duque, que combinassem nas coisas do dia-a-dia e, além do mais, achava-a muito desejável.
Um grande grupo de amigos tinha vindo com eles de Londres para Monte Carlo, mas partira naquele dia e outro devia chegar amanhã. Isso significava que naquela noite, quando voltasse para o iate, o duque teria Imogen só para ele e a pediria em casamento.
Sabia que era isso que ela mais desejava e tinha também certeza de que o amava como homem. Ao mesmo tempo, um traço de cinismo nele lhe dizia que Imogen não estaria tão interessada em casamento, se a posição do futuro marido fosse menos importante.
Em todo caso, pensou, poderia um homem ou uma mulher serem considerados separadamente de seu ambiente, de sua família?
Era impossível perguntar: ”Você me amaria, se eu não fosse um duque?” Ou então: ”Eu a amaria, se ela não fosse bonita?”
O importante era serem, ambos bem-nascidos, pertencendo a famílias que apareciam em livros históricos.
Histórias de Cinderela eram apenas para criadas e colegiais que liam romancecos e, por conseguinte, imaginavam que um príncipe encantado cairia do céu para torná-las suas esposas.
— Imogen e eu vamos combinar bem — disse o duque a si mesmo. — E minha mãe e a sociedade ficarão contentes.
Resolveu que uma das primeiras pessoas a quem daria a notícia, quando voltassem para casa, seria o rei. Sua Majestade gostava de imogen porque era bonita, e algumas vezes chegou a insinuar que ela seria uma esposa adequada.
Falarei com ela hoje à noite, pensou o duque, quando se dirigiam para a vila do grão-duque.
Mas agora Imogen havia desaparecido, e achou estranho que ainda não tivesse voltado do jardim. Levantou, impaciente.
— Você não vai sair, vai? — perguntou o homem a seu lado. — Não, no meio de uma maré de sorte?
O duque não respondeu, mas, deixando o dinheiro na mesa, atravessou o salão e saiu para o jardim. Não se preocupava a mínima que seu comportamento fosse considerado estranho ou que comentassem. Em todo caso, sempre comentavam o que ele fazia, e, se queria parar de jogar, isso era assunto só dele.
O jardim da vila do grão-duque era muito florido e muito bonito. Na realidade, um dos mais famosos da Cote d’Azur. Havia no ar o perfume das flores, ouvia-se o murmúrio de uma cascata: pétalas caíam silenciosamente das árvores na grama aveludada.
Mas o duque não notou nada disso. Estava à procura do vestido vermelho que Imogen usava, combinando com o colar de rubis e brilhantes que ele lhe dera, antes de saírem da Inglaterra.
O jardim era um emaranhado de arbustos, caminhos sinuosos, tufos de flores e bancos confortáveis. O lugar parecia deserto… E, então, ele a viu.
Não poderia haver engano quanto à cor do vestido vermelho contra os pilares brancos de um pequeno templo grego, no fim de um gramado cercado de flores. O duque parou e viu o grão-duque passar os braços em volta da cintura da moça e puxá-la para mais perto.
Ela não resistiu. Pelo contrário, ergueu avidamente a boca para encontrar a dele e, quando o homem a beijou, pôs os braços em seu pescoço.
Era a imagem do casal apaixonado, e a expressão taciturna do duque se acentuou. Depois, com um último olhar para os dois, ele se afastou.
Não voltou para a vila, dirigindo-se através do jardim para um portão que dava para a estrada. Não levou mais do que alguns segundos para localizar sua carruagem.
Os criados pareceram surpresos ao vê-lo. Era ainda cedo, e estavam resignados a esperar por muito tempo, talvez até que raiasse o dia, como era o costume em Monte Carlo.
O lacaio abriu a porta e o duque entrou na carruagem.
— Para o iate!
Os cavalos iniciaram a descida pelo caminho sinuoso que levava à baía.
Dentro da carruagem, o duque ainda continuava taciturno e com uma atitude ameaçadora.
Aqueles que o tinham ouvido falar na Câmara dos Lordes sabiam que, não só era inteligente, mas podia mostrar-se agressivo e determinado, quando estimulado por algum assunto.
Na realidade, foi graças a ele que vários projetos de lei que os lordes queriam’ derrubar haviam sido aprovados, e o primeiro ministro lhe agradeceu profusamente a cooperação.
Os que trabalhavam para ele o consideravam um patrão justo e generoso, mas, se achasse que estava sendo lesado ou que um de seus empregados era negligente ou desleal, podia mostrar-se implacável.
Quando a carruagem chegou ao ponto onde estava ancorado o iate, ao lado de vários outros, o duque desceu, dizendo ao lacaio:
— Não preciso mais de vocês, hoje à noite.
Havia um imediato a bordo, e, assim como os empregados da carruagem, ficou admirado por ver o patrão voltar tão cedo.
— Boa noite, senhor.
— Diga ao capitão Barnett para zarpar imediatamente.
— Imediatamente, Vossa Graça? —— Foi o que eu disse!
O duque dirigiu-se para a proa, ainda taciturno, sem se interessar pelos movimentos dos marinheiros que corriam pelo tombadilho.
Imaginavam que alguns estivessem dormindo, mas a tripulação estava habituada com suas decisões intempestivas. Eram ordens explícitas do duque que o iate estivesse sempre pronto a zarpar, mesmo sem aviso prévio.
Sabia, portanto, que o capitão Barnett não ficaria surpreso com a determinação de saírem imediatamente de Monte Carlo e que estaria apenas esperando ordens para onde deveria dirigir o barco.
O duque não esperava por perguntas, mas, mesmo assim, foram feitas por seu criado de quarto, Dalton, que estava com ele desde sua infância.
— Peço desculpas a Vossa Graça, mas sabe que lady Moreton não se acha a bordo?
— Sei.
Foi uma resposta seca; ainda assim, o criado insistiu:
— As roupas da senhora também estão aqui.
— Sei disso.
O homem inclinou-se e partiu. Os lábios do duque eram uma linha fina, quando ele olhou para a cidade, na direção da vila do grão-duque.
Imogen levaria um choque, ele bem o sabia, quando descobrisse que o iate tinha zarpado, levando não apenas suas roupas, como as jóias às quais dava tanto valor.
O grão-duque pode lhe dar outras, pensou, raivoso.
Depois, achou que havia escapado de boa!
Já era bastante mau que uma mulher que dizia que o amava como ”jamais amara outro homem na vida” andasse de namoro com um conhecido ”pirata” como o grão-duque, mas teria sido muito pior se ela e o duque já estivessem casados.
Pensou agora como foi tolo em acreditar que uma mulher festejada e mimada como Imogen quisesse levar uma vida tranqüila e ser fiel a um homem.
Reconhecia, entretanto, que havia sido um golpe para seu orgulho e seu amor-próprio.
Estava habituado a ter qualquer mulher pela qual manifestasse o mínimo interesse, vendo-a cair em seus braços, extasiada.
Quando o iate atravessou a baía, rumo ao Mediterrâneo, havia em seus lábios um sorriso cínico.
Soprava agora uma brisa suave e agradável. Quando resolveu ir dizer ao capitão para onde queria ir, teve a súbita sensação de que era delicioso estar sozinho. Havia muito tempo que se via constantemente cercado por pessoas barulhentas, que riam e conversavam. Templecombe House, em Londres, estava sempre cheia não só de amigos, como também de parentes, pessoas que achavam que tinham o direito de se hospedar ali, quando vinham do campo.
E Combe, em Buckinghamshire, com seus inúmeros aposentos era grande demais para ficar vazia: havia sempre muitos hóspedes e festas.
Agora que estava sozinho, o duque achou que era uma situação muito agradável, que ia procurar aproveitar ao máximo. Havia muitos livros para ler, e teria chance de pensar em si mesmo e em seu futuro.
O iate estava agora suficientemente longe de Monte Carlo para que pudesse apreciar as luzes brilhantes da cidade, que se encontravam no cassino e subiam pelo morro atrás dele.
Era muito belo, mas o duque sabia que aqueles que visitavam o principado raramente erguiam os olhos das mesas de jogo. na realidade, só se levantavam no fim da tarde, quando a beleza da manhã e do dia desaparecera, dispostos a passar mais uma noite nas salas de jogo.
Tem um encanto falso; tão falso como Imogen, pensou. Quanto mais depressa a esquecesse, melhor. Não queria lembrar da repulsa e da cólera que sentira pelo comportamento da moça. Desde menino, jamais reconhecia uma derrota, fazendo um esforço para esquecer qualquer humilhação que tivesse sofrido na escola.
Era um orgulho enraizado nele, devido a uma larga linhagem de antepassados ilustres, que o ensinara a não permitir que outras pessoas abusassem dele, a não ser que isso fosse importante para sua felicidade.
Era uma idéia incutida pelo pai, que lhe contou que um amigo tinha escrito os nomes dos inimigos num papel e fechado a lista a chave, numa gaveta. Anos mais tarde, pegou de novo a lista e descobriu que, em quase todos os casos, não lembrava do que aquelas pessoas haviam feito, ou porque as considerava inimigas.
Este caso impressionou o duque, e foi isso que tentou fazer, a vida inteira.
Nunca dê a seus inimigos a importância de pensar neles, era uma das frases favoritas do duque. Agora, não tinha intenção de dedicar um pensamento a Imogen.
Diria a Dalton que empacotasse as roupas e as jóias dela e as guardasse no porão. Quando chegasse a Londres, faria com que fossem entregues em casa de Imogen, e estaria tudo terminado. Ponto final.
Foi agradável enquanto durou. Isso era inegável, e realmente chegou a pensar que Imogen fosse diferente das outras mulheres. Pensou que o amor significasse alguma coisa para ela, diferente das lisonjas vazias que faziam parte da vida social dos que viviam à volta do rei.
Quando Eduardo era príncipe de Gales, as beldades pelas quais se interessara tinham sido comentadas de uma ponta à outra do País. Não havia um homem na rua que não soubesse do interesse dele por Lily Langtry, pela condessa de Warnick e por meia dúzia de outras mulheres bonitas.
O duque sempre admirou o comportamento impecável da rainha Alexandra, dinamarquesa de nascimento. Ela nunca vacilou em sua lealdade e devoção ao marido, não demonstrando em público que estava perturbada ou irritada com as constantes infidelidades do rei.
O duque achava que, de certo modo, ele próprio sempre esperou que sua esposa fosse se comportar da mesma maneira, mas agora sabia que, com Imogen, isso teria sido impossível.
A moça tinha consciência exagerada de sua beleza, um desejo intenso de ser admirada, sendo fraca demais para ignorar a admiração de outro homem, mesmo que sua reputação fosse péssima, como a do grão-duque.
O duque imaginou-se no futuro, querendo saber se a esposa lhe era infiel, sempre tendo suspeitas e sentindo medo de confiar nela.
— Se é isso que me espera, então, que todas as mulheres se danem! Nunca casarei.
Resolveu ir para o salão e tomar um drinque. Sabia que uma garrafa de champanhe estaria à sua espera, assim como sanduíches de patê de fígado bem fininhos, preparados para o caso de alguém sentir fome ao regressar para bordo.
Quando voltou para o convés, ouviu alguém falar alto na ponte, num tom que indicava que alguma coisa anormal estava acontecendo.
O capitão olhava para o mar com um binóculo.
— Que aconteceu?
— Não estou certo, Vossa Graça. O vigia notou alguma coisa no mar que lhe pareceu um corpo. É branco… Puxa, é um corpo!
— Deixe-me olhar.
Não havia dúvida de que qualquer coisa boiava na água e era certo de que era branca. Teve quase certeza de distinguir um rosto.
— É melhor mandar descer um bote, para ver se a pessoa está viva.
Enquanto falava, ocorreu-lhe que podia ser alguém que se suicidara por ter perdido todo o dinheiro no jogo. Era este o tipo de história contada a respeito de Monte Carlo, embora com algum exagero.
O iate parou e os marinheiros desceram um bote.
No último momento, o duque resolveu acompanhar seus homens. Achou mais prudente, caso o corpo estivesse na água há muito tempo. Nesse caso, seria inútil e muito desagradável trazê-lo para bordo. Já tinha visto afogados, e os rostos inchados e os corpos decompostos podiam virar o estômago do mais duro dos marinheiros.
Não havia luar, mas as estrelas brilhavam no céu. Mesmo assim, era difícil ver claramente, até chegarem ao lado do corpo. Com surpresa, o duque percebeu que se tratava de uma criança, ou de uma mulher muito jovem, usando um traje branco. Os braços estavam abertos, a cabeça para trás, e não apenas estava viva, mas era uma nadadora experiente, para poder boiar com tanta facilidade.
O bote aproximou-se mais ainda. Os marinheiros levantaram os remos e aguardaram as instruções do patrão.
— Pegue a mão dela — disse o duque.
Sua voz devia ter despertado a atenção da moça, pois ela abriu os olhos e deu um grito. Depois, virou-se e tentou nadar para mais longe.
Mas foi tarde, porque o marinheiro já havia agarrado sua mão.
— Largue-me! Largue-me! Quero morrer!
Lutou desesperadamente e, tendo apanhado o marinheiro de surpresa, conseguiu se libertar.
Talvez pelo fato de estar muito fraca, afundou, e por um momento o duque pensou que a tivesse perdido.
Mas a moça subiu de novo à tona, e agora era ele que estava mais perto. Conseguiu segurar-lhe o braço e depois pegá-la pelos ombros.
A moça começou a protestar, mas desmaiou. Embora fosse frágil, foi difícil ser içada para o bote. Só então o duque percebeu que era na realidade uma mulher muito jovem.
Voltaram ao iate. Sem perda de tempo, o duque, seguido por Dalton, levou a moça para um dos camarotes vazios.
Rapidamente, Dalton estendeu uma porção de toalhas no chão.
— Posso cuidar disto, Vossa Graça — disse Dalton.
— Vá buscar conhaque e mais toalhas!
— Perfeitamente, Vossa Graça.
O duque examinou a mulher. Usava uma camisola muito enfeitada e cara. A renda dos enfeites era verdadeira. E tinha uma aliança no dedo.
Ficou imaginando se teria sido atirada de um iate por algum marido violento. Era inconcebível que tivesse nadado desde a costa. Muito poucas mulheres que conhecia sabiam nadar. Mas, viesse ela de onde viesse, havia ali um mistério.
Não só era muito jovem, mas também muito bonita, apesar dos cabelos molhados e da palidez.
Tirando o paletó do traje a rigor, justo demais para demonstrações de atletismo, o duque pegou uma toalha e achou que a primeira coisa a fazer era tirar a camisola ensopada. Era aberta na frente. Desabotoou vários botões de madrepérola. Depois, cobrindo o corpo da moça com um lençol, puxou a camisola para cima.
Não havia dúvida de que tinha um corpo muito bonito. Poderia ter sido Afrodite surgindo das ondas.
— Estou sendo poético — disse o duque, quase com raiva. Estava detestando todas as mulheres, até aquilo acontecer. Agora não podia deixar de sentir curiosidade.
Puxou a camisola para cima da cabeça da moça para tirá-la completamente, e notou que estava rasgada nos ombros. Então, viu as costas da desconhecida…
Ficou olhando incrédulo, achando difícil acreditar que aquilo não era uma ilusão de ótica. Ali estava, então, uma explicação para ela ter se atirado no mar. Havia marcas de chicote, golpes cruzados rasgando a pele em vários pontos que sangravam.
O duque tirou a camisola molhada e, ouvindo os passos de Dalton, deitou a moça no chão e cobriu-a apressadamente com outro lençol.
— Aqui está o conhaque, Vossa Graça. E duas toalhas. Vou buscar mais algumas.
— Faça isto.
Delicadamente, o duque esfregou os cabelos de Salena. Viu que não estavam totalmente soltos, como a princípio pensou, mas com alguns grampos, como se estivessem presos quando ela entrou na água.
Foi uma coisa que o deixou perplexo. À medida que os cabelos ficavam mais secos, percebeu que era loira e ficou imaginando qual seria a cor dos olhos.
— Azuis, creio eu — disse, baixinho.
Salena ainda estava inconsciente, quando Dalton voltou.
— Acho melhor colocarmos a jovem na cama, antes de tentarmos reanimá-la.
— Boa idéia, Vossa Graça.
— Sugiro que você estenda uma das toalhas de banho na cama e vá buscar algumas bolsas de água quente. Ela está muito fria.
Dalton saiu apressadamente. Só então o duque pegou Salena nos braços. Achava que a nudez da moça não devia ser vista por mais ninguém, e, ao carregá-la para a cama, ficou impressionado com sua leveza.
— Como é que um homem pôde bater numa coisinha tão linda? Depois ficou imaginando se o marido a teria apanhado cometendo uma infidelidade.
Mesmo assim, castigá-la de maneira tão cruel e tão brutal era coisa que nenhum homem decente faria.
Colocou-a na cama, cobriu-a com uma toalha e depois com um lençol e cobertores.
O rosto da moça estava tão branco como o lençol. Seria um erro permitir que continuasse assim. Talvez entrasse em estado de coma.
Passando o braço sob a cabeça dela, ergueu-a e disse, em tom firme:
— Acorde! Acorde e beba isto!
Tinha a impressão, embora não pudesse ter certeza, de que ela estava fazendo um esforço para ficar desligada de tudo.
As pálpebras da moça estremeceram. Depois, quando sentiu o copo em seus lábios, ela virou a cabeça para o lado.
— Beba!
Como se estivesse fraca demais para desobedecer, Salena engoliu algumas gotas de conhaque.
Prendeu a respiração… o duque pensou que ela o estivesse desafiando e forçou-a a tomar mais algumas gotas. A moça tentou lutar, movendo os braços.
— Fique quieta e beba!
— Não…
O duque conseguiu fazer com que tomasse mais algumas gotas. Depois, como que contra a vontade, Salena abriu os olhos.
Olhou para o homem com expressão de horror. Ele sentiu que ficava tensa e soube que era de medo.
— Está tudo certo. Você está sã e salva.
— N…ão. Não… Deixe-me… morrer!
— É tarde demais para isso.
Delicadamente, colocou de novo a cabeça de Salena no travesseiro. Ela ainda o olhava apavorada. Mas o duque não tinha certeza se o estava vendo, ou vendo alguma coisa que a assustava antes de entrar na água.
— Você está em absoluta segurança. Agora, precisa me dizer de onde veio e para onde quer que a leve.
Achou que ela não tinha entendido e perguntou:
— Suponho que comece me dizendo o seu nome?
— Sa…le…na…
— E seu sobrenome?
Ela deu um gemido tão fraco que parecia o de uma gatinha recém-nascida.
Fechou os olhos e ficou de respiração suspensa, como se quisesse voltar à inconsciência. O duque percebeu que ela tremia. Ficou imaginando como deveria tratar de alguém numa situação daquelas.
Nunca pensou que fosse possível uma mulher ficar tão assustada, tão apavorada.
Não era de espantar, levando-se em consideração a maneira como havia sido tratada, embora ele pensasse que talvez não fosse só a surra que a amedrontava, mas alguma outra coisa.
O duque estava em silêncio. Como se estivesse curiosa para saber se ele havia partido, Salena abriu os olhos. Viu-o então, e de novo pareceu se encolher, afundar na cama e tentar desaparecer.
— Ninguém vai machucá-la. Não há do que ter medo, aqui. Não soube se ela entendeu. Havia em seus olhos uma expressão de horror e as pupilas estavam tão dilatadas que ficaram negras.
Dalton apareceu com duas bolsas de água quente.
— Vou colocar uma nos pés da moça, Vossa Graça — disse, dando a outra ao duque.
Ele segurou as cobertas, delicadamente, e colocou a bolsa ao lado do corpo de Salena, mas em cima da toalha que a cobria.
— Vai se sentir mais quente com isso. Devia estar muito frio, lá no mar.
Notou que ela se contraiu, quando a tocou. Fosse lá o que tivesse acontecido, certamente fez com que ficasse com medo dos homens.
Era um pensamento interessante, e ficou observando-a, notando o corpo infantil, os olhos enormes e bem separados, a curva perfeita da boca trêmula.
— Seja quem for o homem que a surrou, é um animal, pensou. Seria um prazer pagar na mesma moeda!
Dalton estava apanhando as toalhas e a camisola do chão. Dirigiu-se para a porta, mas parou, de repente, dizendo:
— Vossa Graça acha que devo trazer uma das camisolas de lady Moreton? Vai ficar folgada demais, mas tenho certeza de que a mocinha se sentirá mais confortável.
— Boa idéia, Dalton. Mas não vestirei a moça. Deixarei a camisola aqui na cama. Traga também um robe e um par de chinelos.
Notou, com certo cinismo, que não tinha remorsos de dispor das roupas de Imogen, uma vez que a maior parte tinha sido paga por ele.
Salena estava de pálpebras semicerradas, mas o duque tinha certeza de que o observava.
Era como se fosse um animal feroz que pudesse atacá-la e ela tivesse medo de fechar os olhos, não querendo ser apanhada de surpresa.
Afastou-se da cama o mais possível e disse, calmamente:
— Precisa me dizer o que quer fazer. Meu iate voltou para socorrer você, mas preciso dizer ao capitão para onde deve ir.
Falou lentamente, como que a uma criança. Esperou um pouco e Perguntou:
— Quer voltar para Monte Carlo?
— Não! Não!
Não havia dúvida quanto ao terror nessas palavras.
— Então, para onde devemos ir?
— Para… longe.
— Está certo. Vamos para longe de Monte Carlo. Como você não parece ter nenhuma preferência, vou levá-la comigo para Tânger, onde possuo uma vila. Levaremos alguns dias para chegar lá. Talvez, antes disso, possa me contar alguma coisa a seu respeito.
Salena não respondeu, e o duque se dirigiu para a porta.
— Procure dormir. Tudo parecerá melhor, quando amanhecer.
A moça não respondeu, mas o observava. Quando saiu do camarote, ele apagou as luzes, com exceção da que ficava junto da cama.
Dirigiu-se para seu camarote, pegado ao dela, quando lhe ocorreu uma idéia. Depois de recuperar totalmente a consciência, era bem possível que a moça, que parecia querer morrer, tentasse de novo se afogar.
Em seu atual estado de fraqueza, isso não seria difícil.
O duque voltou e, de mansinho, puxou o trinco que fechava a cabine por fora. Os trincos haviam sido colocados como precaução contra ladrões e tinham um mecanismo especial, que impossibilitava que a porta fosse aberta, a não ser por alguém que os conhecesse.
Quando o iate estava ancorado numa baía, embora sempre houvesse alguém vigiando, o duque sabia que era fácil para um ladrão experiente subir a bordo e levar o que pudesse encontrar.
Esses trincos, que ele próprio havia inventado, tornavam os roubos quase impossíveis.
Havia inúmeros dispositivos engenhosos no novo iate, fabricado especialmente para ele, com suas especificações.
O duque teve prazer em construir o Afrodite e ficou satisfeito com a apreciação dos amigos. Lembrou então que um novo grupo] de convidados deveria chegar a Monte Carlo no dia seguinte, vindo de Londres. Certamente, todos achariam extraordinário ele não estar lá para recebê-los.
Resolveu que a única compensação que lhes podia dar seria mandar um cabograma de manhã cedinho, dizendo que, devido a circunstâncias imprevistas, tinha sido obrigado a se ausentar, mas todos seriam seus convidados, como hóspedes do Hotel de Paris.
Eram pessoas que tinham hábitos sociais e que não tardariam a descobrir o motivo de sua partida e porque Imogen não o acompanhou.
— Que falem! — resmungou, com raiva.
Ocorreu-lhe, de repente, que, se soubessem o que estava acontecendo no Afrodite, teriam mais um motivo saboroso para fofocar.
O fato de salvar do mar uma jovem seminua, surrada brutalmente, despertaria a imaginação desses amigos que ficariam especulando, até descobrir a identidade da inesperada passageira.
Tinha certeza de que nunca a havia visto antes. Se tivesse visto uma criatura tão jovem e tão bela em Monte Carlo, certamente a teria notado.
Obviamente, não era pobre; podia ver isso pela camisola cara que usara. Tinha uma aliança no dedo, mas era tão jovem que não poderia estar casada há muito tempo. Era muito bonita e, entretanto, ou talvez por causa disso, algum homem a aterrorizou a ponto de ficar com medo de todos os homens.
Temos, certamente, uma coisa em comum, pensou o duque. Atualmente, odeio as mulheres e ela detesta os homens. Sua conversa, se é que conseguirei fazer com que fale, será, sem dúvida, muito esclarecedora.
Foi Dalton quem, no dia seguinte, informou o duque de que sua passageira estava acordada.
— Levei uma xícara de chá para a moça e perguntei-lhe o que ela desejava para o desjejum, mas pareceu tão assustada como ontem à noite.
— Ela disse alguma coisa?
— Disse: ”Qualquer coisa!” Desse jeito, Vossa Graça! ”Qualquer coisa”. E tremia, ao falar. Creio que é devido ao choque de ter caído na água.
— Sim, creio que sim — concordou o duque, com naturalidade.
— Leve o desjejum e depois venha falar comigo, Dalton.
— Muito bem, Vossa Graça.
Quando Dalton voltou, o duque estava terminando a segunda xícara de café.
— Precisamos encontrar alguma coisa para a moça vestir, Dalton.
— Já pensei nisto, Vossa Graça.
— Pensou?
— Sim, pensei. Levando-se em consideração que é muito pequena, não poderia usar as roupas de lady Moreton, a não ser com algumas alterações.
— Exatamente. Foi o que também pensei.
— Mas lembrei de que o capitão tem uma filha de quatorze anos e sei que ele comprou para ela dois vestidos, em Marselha. Bonitos e exatamente do tamanho da moça, creio eu.
— Boa idéia, Dalton. Sugira à nossa passageira que, quando se sentir melhor, experimente os vestidos. Qualquer outra coisa de que ela precise, você pode tirar do guarda-roupa de lady Moreton. E diga ao capitão que, naturalmente, o reembolsarei. Creio que ele encontrará para a filha roupas igualmente adequadas, em Tânger, ou quando voltarmos a Marselha.
— Direi, Vossa Graça.
Quando foi até a ponte de comando, o duque agradeceu ao capitão.
— Estive pensando que foi uma sorte termos encontrado a moça — disse o homem. — Eu estava me afastando da costa. Mais alguns minutos, e não a teríamos visto.
— Não tinha chegado a vez da moça morrer, capitão.
— É estranho que ela tenha querido morrer.
Lembrando das marcas de chicote nas costas de Salena, o duque achou que conhecia uma boa razão para ela não se apegar à vida, mas não tinha intenção de contar isso ao capitão ou a quem quer que fosse.
Quando foi para o salão, antes do almoço, admirou-se por encontrar Salena ali. Não pôde deixar de notar que, quando ele entrou, a jovem fez um movimento, como se fosse fugir. Mas, como ele estava à porta e não havia outra saída, ela apenas se encolheu no canto do sofá.
— Bom dia. Espero que esteja melhor. Esse vestido lhe vai muito bem.
Era de fato um vestido muito atraente: branco, enfeitado de bordado inglês.
— Obrigada… por toda a sua… bondade — disse, Salena, hesitante. — Mas eu queria morrer. Só que…
Interrompeu-se, e o duque a animou a continuar:
— Que está querendo dizer?
— Como sei nadar bem, achei difícil me afogar…
Salena aprendera a nadar em Bath, nos famosos banhos romanos, quando foi para lá com a mãe, que convalescia de uma pneumonia.
Salena era muito criança na ocasião, e o pai riu ao ver como logo gostou da água. Feito sapinho, dissera ele.
Depois disso, sempre tomava banho com os primos, no lago do parque da casa de campo do avô, o pai de lady Cardenham. Durante o verão, organizavam competições, atravessando o lago a nado, virando de propósito as canoas e fazendo exercícios de salvamento para o caso de algum dia naufragarem no mar.
Quando fugiu da casa do príncipe, na noite anterior, e começou a nadar mar adentro, pretendera fazer isso até não agüentar mais. Depois, afundaria como uma pedra.
Teria sido o fim. Ninguém jamais a encontraria e não haveria acusações a respeito de seu crime. Nem teria que enfrentar julgamento, prisão e, talvez, até a morte.
Não podia suportar a lembrança do grito do príncipe, ao dizer que ela o matara, nem a lembrança do sangue jorrando do ferimento no estômago e manchando a cama.
Não queria recordar, não queria pensar, mas sabia que seu corpo estava dominado pelo medo.
Mesmo o fato de olhar para o duque, apenas por ser um homem, fazia com que sentisse uma onda de terror, como a que sentiu quando o príncipe a chicoteou. O duque sentou numa cadeira, um pouco afastado de Salena.
— Ontem à noite, você me disse o seu primeiro nome. Agora, acho que devemos nos apresentar formalmente. Sou o duque de Templecombe.
A expressão da moça indicou o que acontecia.
— Já tinha ouvido falar de mim?
— Então… este barco é… o Afrodite?
— Sim, é o nome do iate.
— É muito bonito.
Lembrou-se de como o iate lhe pareceu lindo, quando o viu da estrada por onde passava de carruagem, com o pai.
Naquela ocasião, nem de longe suspeitava do que a esperava. Ao pensar de novo no príncipe, ficou trêmula de medo.
O duque notou a mudança. Nunca tinha conhecido uma mulher com olhos tão expressivos, ou que parecesse tão frágil e patética.
— Espero que goste do meu iate. É novo. Eu mesmo o desenhei, e tenho muito orgulho disso. Tem muitas características que nenhum outro barco tem. Quando se sentir melhor, vou lhe mostrar.
A expressão amedrontada desapareceu do olhar de Salena, e ela perguntou:
— Nós vamos voltar para Monte Carlo?
— Você disse que não queria voltar, de modo que vou levá-la comigo para Tânger. Eu lhe contei isso ontem à noite, mas acho que estava perturbada demais para compreender.
— Achei que tinha dito isso, mas temi não ter entendido bem.
— Vamos para Tânger. Tenho uma vila lá. Espero que você a ache tão bonita como o Afrodite.
— Eu… não tenho… dinheiro.
— Como é minha hóspede, isso não tem importância. Quando chegarmos a Tânger, se quiser ir para algum lugar, posso lhe emprestar o dinheiro necessário.
Fez uma pausa e depois disse, cuidadosamente:
— Talvez, queira se comunicar com sua família?
— Não! Não!
Ele já tinha ouvido esse grito antes e notou que ela estava de novo trêmula de medo.
Salena pensou, desesperada, que o pai jamais a perdoaria pelo que fez ao príncipe e que era preciso que ele a julgasse morta.
Só desejava que o pai pudesse guardar o dinheiro que o príncipe lhe dera. Depois pensou que não havia perigo de perdê-lo, porque o russo estava morto e não poderia reclamar coisa alguma.
Papai estará bem, mas é preciso que nunca saiba que continuo viva.
De repente, ocorreu-lhe a idéia de que seria impossível viver não tendo dinheiro e nem para onde ir.
Sem a mínima intenção de comover o duque, olhou-o com ar súplice, juntando as mãos como uma criança que pede ajuda.
— Vejo que ainda está perturbada. Que tal se eu não fizer mais perguntas e você apenas procurar se divertir? Afinal, é um dia bonito, estamos sozinhos no Mediterrâneo e ninguém sabe que nos encontramos aqui.
Julgou ver um brilho no olhar dela e continuou:
— Eu mesmo muitas vezes pensei como seria divertido sumir e começar uma vida nova. Seria como começar um livro novo a respeito de nós mesmos. — Percebeu que estava no caminho certo. — Se alguém pensou que você caiu no mar e está à sua procura, vai ficar decepcionado. E deixe-me dizer-lhe que ninguém em Monte Carlo tem a mínima idéia de para onde vou, de modo que não poderão me relacionar a você.
Sorriu e acrescentou:
— Está livre. Livre de tudo. Até mesmo das coisas que a assustam. Ninguém sabe onde está nem o que fez!
— Isto é mesmo verdade?
— Tenho certeza que sim.
— Mas… Deus sabe!
As palavras foram apenas um murmúrio, mas o duque as ouviu.
— Sim, Deus sabe, mas sempre nos ensinaram que Deus é misericordioso e compreensivo, de modo que lhe asseguro, Salena, que não precisa ter medo.
Era uma estranha maneira dele falar, pensou. Mas, vendo a tensão abandonar Salena, teve certeza de ter dito a coisa certa. O que aquela criança podia ter feito para temer o castigo de Deus, assim como o castigo dos homens?
O comissário de bordo veio dizer que o almoço estava pronto e o duque notou que Salena teve um sobressalto quando o viu entrar, fitando-o como se esperasse que fosse outra pessoa.
Fingindo nada ter percebido, levantou, dizendo:
— Como está um dia quente, achei que podíamos almoçar no convés.
Salena acompanhou-o até onde havia duas cadeiras de vime, grandes, cheias de almofadas macias. Fez uma careta ao sentar, por causa dos ferimentos nas costas, e olhou para o anfitrião com um arzinho comovente, como se tivesse medo do que ia acontecer em seguida.
Ele cobriu-a com uma manta e o comissário colocou na cadeira uma espécie de bandeja com suportes de metal. O duque sentou ao lado dela e riu de sua surpresa.
— É uma invenção minha. Achei que seria agradável comer ao ar livre, quando estivesse sozinho, ou apenas com mais uma pessoa para me fazer companhia. Você está estreando a minha criação: é a primeira vez que a vejo em funcionamento.
— É muito inteligente da sua parte.
O comissário colocou sobre a bandeja uma outra, já preparada, com uma toalhinha branca, copos e talheres. Outros empregados trouxeram uma porção de pratos deliciosos. Salena achou que era uma maneira original e confortável de comer.
Havia um toldo sobre eles, o mar estava azul e muito calmo, ouvindo-se o suave pulsar das máquinas e o grito das gaivotas. Muito diferente, pensou a moça, dos almoços barulhentos da vila do príncipe, com os hóspedes falando em francês ou em russo. As vozes pareciam tornar-se mais altas, à medida que os copos de cristal eram enchidos e reenchidos de vinhos de diferentes qualidades.
— Vou tentar convencê-la a tomar uma taça de champanhe — disse o duque. — Acho que vai fazer com que fique novamente corada e feliz.
Salena queria dizer que isso era impossível, mas achou que seria indelicado. Quando o champanhe chegou, tomou um golinho. Mas o duque não percebeu, pois olhava para o mar.
— Acho que ali há algumas toninhas. Espero que se aproximem do iate. Sempre achei divertido observar seus malabarismos.
— Toninhas? Sempre ouvi falar delas, mas ainda não vi nenhuma.
— São encontradas freqüentemente no Mediterrâneo.
— Uma das freiras do convento disse que, em sua terra, no sul da Itália, os camponeses acreditam que, quando um marinheiro morre afogado, sua alma se transforma numa toninha.
O duque teve certeza de que ela estava pensando que isso teria acontecido com sua alma, se morresse afogada, como pretendia.
— Muitos povos primitivos que vivem à beira-mar têm essa crença. Nas ilhas Orkneys e Shetland, por exemplo, os habitantes acreditam que as almas dos pescadores se transformam em focas, e é por isso que nunca matam esses animais.
O duque descobriu, então, outra peça do mistério da vida de Salena: ela havia estudado num convento.
Sentiu-se como um arquipélago à cata de vestígios de uma antiga civilização, ou um ornitólogo atrás de alguma espécie desconhecida de pássaro.
Nunca, em toda sua vida, esteve sozinho com uma mulher sem que ela se mostrasse interessada por ele como homem, nem que, como Salena, se encolhesse em sua presença. Era uma experiência nova e interessante, e percebeu que estava cada vez mais curioso a respeito de Salena.
Jurou que, cedo ou tarde, descobriria o que a perturbava tanto e quem era. Enquanto isso, falou tranqüilamente de coisas impessoais. Terminado o último prato, virou-se para dizer qualquer coisa a Salena e viu que a moça tinha adormecido.
O comissário apareceu e o duque pôs a mão nos lábios, recomendando silêncio. O homem retirou a bandeja com cuidado e em silêncio, afastando-se em seguida.
Outro empregado tirou a bandeja do duque, oferecendo-lhe conhaque, que recusou. Queria aproveitar a oportunidade de observar Salena à vontade.
O rosto da moça estava virado para ele, a face apoiada numa almofada azul, que lhe acentuava a palidez e o loiro dos cabelos. Assim, de olhos fechados, parecia muito jovem e muito vulnerável. Depois, fez um movimento e o duque percebeu que a aliança não estava mais em seu dedo.
Ficou imaginando se ela a teria tirado e jogado pela vigia, enjoada pelo que havia sofrido, ou se queria apenas dar a impressão de que não era casada.
Depois, fitando-a, achou que era impossível ela querer enganar alguém. Havia nela alguma coisa de tanta pureza e bondade que seria impossível acreditar que não fosse inocente como parecia.
Apesar de tudo, quem era ele para julgar? Tinha sido enganado por mulheres antes e, por mais ingênua que parecesse, a verdade era que um homem a havia surrado; provavelmente, o mesmo homem que pagara suas roupas.
Era uma situação extraordinária, esta em que se achava. Teria que refletir seriamente, para resolver como acabar com o medo de Salena e o que fazer a respeito do futuro da moça.
Ela era um animal selvagem preso numa armadilha: havia sido tão maltratada, que não sabia mais quem era amigo ou inimigo. Precisava primeiro ganhar a confiança da moça, antes de poder ajudá-la realmente.
Salena dormia tão profundamente que, pelo menos no momento, seus receios tinham sido esquecidos.
O duque sorriu, pensando que nenhuma das pessoas que estariam fofocando a respeito de sua partida precipitada podia, nem de longe, imaginar o que ele fazia, agora.
Se Imogen ou qualquer outra mulher pela qual havia se interessado no passado estivessem no lugar de Salena, certamente estariam flertando com ele, tentando provocá-lo.
Imaginava que, se demonstrasse até mesmo um mínimo de interesse por Salena, ela ficaria ainda mais apavorada.
Quase uma hora depois, a moça acordou, com um sobressalto. Olhou para o duque, envergonhada.
— Desculpe. Peguei no sono. Foi muito indelicado de minha parte.
— Mas compreensível. Estava exausta. Devia passar o dia na cama.
— Seu criado sugeriu isso, mas eu quis me levantar. Achou que estava com medo de ficar sozinha com seus pensamentos.
— No Afrodite você pode fazer o que quiser.
A moça não respondeu. Ficou olhando para o mar iluminado pelo sol, e o duque pensou que uma das coisas estranhas a respeito de Salena era ela ser tão natural. Qualquer outra mulher, tendo dormido em sua presença, estaria agora arrumando os cabelos, preocupada com a aparência. Mas Salena estava quieta, com as mãos no colo.
— Você só me disse seu primeiro nome. É difícil saber como os criados devem chamá-la: senhorita ou senhora?
As mãos dela estremeceram sobre a manta.
— Eu… não sou casada.
O duque ergueu as sobrancelhas. Então, por isso ela havia tirado a aliança? Mas, por que a usava antes? Teria fingido ser a esposa de um homem para poder passar um fim de semana ilícito com ele?
Tal idéia combinava tão pouco com a aparência de Salena que o duque a afastou imediatamente.
Em tom indiferente, disse:
— Direi aos empregados que você é a srta. Salena. A não ser que queira me contar o seu sobrenome.
— F… esqueci.
As pálpebras da moça estremeceram, e o duque soube que não era verdade. Era uma mentira tão flagrante, que percebeu que Salena não apenas achava difícil mentir, mas considerava isso errado ou, talvez, um pecado. Provavelmente, o resultado de ter sido educada num convento.
— Já esteve em Tânger?
— Não, nunca.
— É muito bonito. E nessa época do ano, o clima é perfeito. Houve silêncio. Depois, em voz amedrontada, ela perguntou:
— Não pertence aos… franceses?
Não havia dúvida de que essa hipótese a apavorava, e o duque a tranqüilizou.
— Não. Embora os franceses estejam sempre querendo ocupar algumas partes de Marrocos.
— Mas, não Tânger?
— Não. E é muito provável que a Alemanha ou a Inglaterra permitam que a França se instale ainda mais na África do Norte.
Disse isso para tranqüilizá-la, mas estava perplexo por notar que a idéia dos franceses dominarem Tânger a deixava tão assustada.
Depois, achou que o homem que a agrediu talvez fosse francês. Ou então que ela tivesse infringido alguma lei francesa que a envolveria com a polícia.
Parecia impossível que aquela criança — pois era difícil pensar nela de outra forma — tivesse feito qualquer espécie de crime, mas não havia dúvida quanto ao medo que sentia.
— Não quero parecer presunçoso, mas tenho uma certa influência tanto no meu país quanto no estrangeiro e posso lhe assegurar que, enquanto estiver na minha companhia, estará segura.
Teve a impressão de ver nos olhos dela um brilho de esperança. Mas, depois, Salena sacudiu a cabeça.
— Não deve se envolver em nada que prejudique a sua reputação.
O duque fitou-a atônito.
— Minha reputação?
— Pap…
Ela mordeu o lábio e continuou, apressada, com medo de que ele tivesse notado sua hesitação:
— Alguém me disse o quanto o senhor é… importante.
Então, ela tem um pai, pensou o duque, imaginando se ela teria sido agredida pelo pai. Nesse caso, por que a aliança? E que homem, por mais bestial que fosse, iria jogar no mar a própria filha, depois de maltratá-la como Salena havia sido maltratada?
— Se é verdade que sou importante, como diz, então, tenho o poder de ajudar as pessoas que estão em dificuldade. É por isso que quero ajudá-la, Salena.
— É muita bondade sua, mas teria sido melhor que me tivesse deixado… morrer.
— Melhor para você, ou melhor para mim? — perguntou, em tom despreocupado.
— Acho que para nós dois.
— Pois bem, no que me diz respeito, estou muito contente por tê-la salvo. E não posso deixar de pensar que foi o destino que fez o Afrodite passar por ali naquele momento exato. O capitão disse que, mais alguns momentos, você teria desaparecido de nossa vista! Então, você vê, Salena, que foi o destino. Ou, como se costuma dizer, o dedo de Deus.
— É muito errado uma pessoa atentar contra a própria vida. Mas me pareceu não haver outra saída.
— Foi o que você pensou, mas, provavelmente, seu anjo da guarda tinha outras idéias.
Salena deu um suspirozinho.
— Eu devia lhe ser muito grata, mas não sei o que fazer, agora.
— É muito simples: procure apenas aproveitar a viagem no Afrodite. Posso lhe garantir que muita gente gostaria de estar no seu lugar.
— Sei disso. E tenho vergonha de impor minha presença…
— Acho que fui eu que a forcei a aceitar minha hospitalidade. Para ser exato, foi com relutância que você aceitou ser minha hóspede.
Julgou ver um leve sorriso nos lábios da moça e continuou:
— Embora isso seja uma pretensão, sempre achei que as pessoas aceitavam meus convites avidamente. Portanto, é uma mudança eu praticamente raptar alguém para poder gozar de sua companhia.
— É muita bondade sua. Sei que eu deveria procurar diverti-lo, fazer com que risse… mas isso é uma coisa que nunca mais poderei fazer.
Disse isso com convicção, lembrando que seu pai lhe havia recomendado ser boazinha com o príncipe. Tinha tentado e o resultado foi o homem querê-la de uma maneira que a deixava enojada, só de pensar.
O duque levantou e foi até a mureta do tombadilho. Percebia a perturbação de Salena e, por isso, mudou de assunto:
— Estou à procura de toninhas. Fique onde está; eu a chamarei, quando as vir.
Ele tem sido tão bom para mim, pensou Salena. E deve me achar uma companheira muito monótona.
Lembrava da inveja no tom da voz do pai quando o duque o cumprimentou no cassino. Naquela noite, ele pareceu estar sozinho, mas era evidente que não estava.
Quando Dalton levou para Salena uma porção de roupas de baixo tão finas como as que madame Yvette lhe havia feito, a moça olhou para elas com surpresa.
— O duque disse que a senhora pode pegar o que achar necessário. São roupas de uma hóspede que ficou em Monte Carlo.
— Será que ela não vai se importar? — Achava que não era direito usar roupas tão bonitas que pertenciam a outra mulher.
— Ela não saberá e, se souber, não é provável que se importe. Estava claro que a tal hóspede tinha feito alguma coisa que deixou o duque tão enfurecido que ele resolveu zarpar, deixando-a em Monte Carlo!
A tripulação, naturalmente, estava curiosa a respeito do que poderia ter acontecido.
Tinham apostado que o duque não tardaria a anunciar seu noivado com lady Moreton. Na realidade, apenas Dalton duvidava disso. Viu muitas das favoritas do patrão aparecerem e depois sumirem.
Embora o caso com a viúva tivesse durado mais do que os outros, havia nela qualquer coisa que fazia com que Dalton sentisse que não era a esposa apropriada para o duque, por quem tinha uma admiração sem limites. E ninguém melhor do que Dalton sabia que Templecombe nunca tinha estado seriamente apaixonado.
Algumas vezes, pareceu entusiasmado por algumas moças da sociedade que o haviam perseguido e capturado com o ar de um’ pele-vermelha que acrescentasse mais um escalpo à coleção. Mas o duque sempre conseguia escapar, no último momento.
Não havia dúvida de que tinha estado muito ligado a lady Moreton. Vendo-os juntos, Dalton às vezes pensava que, finalmente, ia haver uma patroa nas casas magníficas do duque.
Mas certas atitudes de lady Moreton ou comentários tinham feito] com que o criado achasse que ela gostava demais de si mesma para estar realmente apaixonada pelo duque, por mais fascinante que ele fosse.
Apesar de tudo, quando chegaram a Monte Carlo, lady Moreton parecia muito segura de sua conquista.
Certa vez, num momento de descuido, ao se referir a Combe House, ela disse a Dalton:
— Vou mudar tudo por lá.
Dalton sabia que se referia à época em que já fosse a duquesa, e foi com dificuldade que se conteve e não a avisou para não contar vitória antes do tempo.
Devo ter pressentido que isto ia acontecer, pensou ele na noite anterior, quando o duque apareceu no iate de cara fechada e o Afrodite zarpou sem levar lady Moreton.
Dalton, um homenzinho muito curioso, achava exasperante não saber exatamente o que havia acontecido. De uma coisa, entretanto, não tinha dúvida: lady Moreton jamais seria a duquesa de Templecombe e, no que lhe dizia respeito, achava isso ótimo.
Assim sendo, entregou a Salena as roupas mais finas e mais caras de Imogen. Com certa pena, pensou que por ser muito pequena, a moça não poderia usar nenhum dos sofisticados vestidos de baile, nem os trajes de passeio. Os sapatos também eram grandes demais; foi só enfiando um pouco de algodão na parte da frente que Salena pôde usá-los com o vestido de algodão que o capitão havia comprado para a filha.
Infelizmente, o vestido era comprido demais, e Dalton resolveu que, quando chegasse a Gibraltar, ia pedir licença ao duque para ir à terra e procurar alguma coisa que servisse melhor para a nova passageira.
Também ele estava intrigado e ficou imaginando o que a deixava tão apavorada e porque estava nadando tão longe da costa. Todos a bordo comentavam que a moça queria se matar. Ela é jovem demais para já ter sofrido tanto, pensou Dalton, revoltado. Tentou manifestar sua simpatia por ela fornecendo-lhe tudo que era necessário ao seu conforto.
Não havia sinal de toninhas, mas começou a soprar uma brisa suave e o duque disse a Salena:
— Acho que você deve descer. Afinal, depois de tudo por que passou, seria fácil apanhar um resfriado. Embora Dalton fosse gostar de tratar de você, eu não teria com quem conversar às refeições.
— Mas não disse que queria ficar sozinho?
— Eu queria ficar livre de reuniões barulhentas e de gente fofocando. Como você não se encaixa em nenhuma dessas categorias, estou encantado por ter sua companhia.
Era um elogio muito discreto, mas ele teve receio de que ela ficasse amedrontada. No entanto, Salena não parecia estar ouvindo.
Realmente não estava. Pensava nas festas da vila e como as conversas lhe tinham parecido estranhas e incompreensíveis.
O príncipe devia achar que ninguém falaria de sua legítima esposa. Com certeza, era por isso, que Versonne parecia tão segura.
Pela primeira vez, lhe ocorreu que aquela francesa havia sido amante do príncipe.
Embora Salena tivesse percebido que a outra tinha muito ciúme de quem se aproximava dele, jamais tinha imaginado que a francesa fosse outra coisa, além de hóspede da vila.
Amante!
Parecia horrível que, tendo uma amante, além de uma esposa na Rússia, o príncipe também a quisesse possuir, pagando a seu pai uma grande quantia em dinheiro.
Salena teve vontade de gritar, tal a dor que tais pensamentos lhe causavam.
Amava o pai e parecia inacreditável e degradante que ele se rebaixasse a ponto de vendê-la.
Agora compreendia o que ele queria dizer, ao repetir: ”Se ao menos houvesse tempo…” Tempo, talvez, de encontrar para a filha um marido legítimo; não um homem que encenasse uma cerimônia de casamento para enganá-la.
A verdade surgiu à sua frente, ao lembrar da insistência de lorde Cardenham em que era um mau pai, mas que a amava. Era vergonhoso ele ter entrado em conluio com o príncipe para enganá-la, simplesmente porque não ousavam contar-lhe a verdade.
O duque havia dado as costas ao mar e estava apoiado na grade, de frente para Salena. Ficou intrigado com o silêncio e a expressão da moça: parecia se sentir humilhada e degradada. Achou que qualquer coisa que dissesse naquele momento só ia piorar a situação.
Ao mesmo tempo, sua curiosidade aumentou e teve que se dominar para não fazer perguntas, para não chegar a suplicar a ela que lhe fizesse confidências.
Foram para o salão. Salena estava tão pálida que o duque sugeriu que ela fosse se deitar. A moça concordou e ele tocou a campainha, para dizer a Dalton que preparasse uma bolsa de água quente.
Ficando sozinho, o duque pegou um livro que estava ansioso para ler, mas achou impossível se concentrar. Só o que via era um rosto angelical, com olhos enormes e uma expressão de sofrimento de cortar o coração.
Que diabo podia ter acontecido? Para ele, Salena era mais misteriosa do que qualquer coisa que ele pudesse encontrar num livro. Sabia que não descansaria enquanto não descobrisse a história e as aventuras de sua passageira.
Não houve sinal dela na hora do jantar. O duque ficou decepcionado quando Dalton entrou no salão e disse:
— A moça está dormindo, Vossa Graça, e achei que não devia acordá-la.
— Tem toda razão, Dalton. A melhor coisa para ela é dormir o mais possível.
— É melhor do que qualquer fortificante que um médico pudesse receitar.
— Então, deixe que durma. Ela se sentirá muito melhor amanhã, quando acordar.
Dalton concordou plenamente.
Assim, o duque teve um jantar solitário. Quando terminou, foi andar pelo tombadilho, até que também sentiu sono.
Enquanto se despia, disse a si mesmo que tinha gostado daquele dia. Foi diferente de qualquer outro de sua vida.
Dalton estava recolhendo as roupas do patrão. O duque perguntou:
— A srta. Salena não acordou?
— Ainda não. Espiei na cabine agora há pouco e ela estava num sono profundo. Coloquei uma bolsa de água quente na cama, mas não a incomodei.
— Está certo, Dalton. Sei que posso confiar em você, quando alguém não está passando bem.
— É mais fácil tratar do corpo do que da mente, senhor.
O duque deitou, decidido a ler. Mas logo largou o livro e apagou a luz, pensando em Salena.
Devia ter dormido uma hora ou mais, quando qualquer coisa o despertou.
Ficou subitamente alerta, mas só o que ouviu foi o ruído das máquinas. Depois, um som…
Sem dúvida, era um grito.
Acendeu a luz da cabeceira. Ao ouvir novos gritos de Salena, pulou da cama e correu para a cabine ao lado.
Assim que abriu a porta, a moça correu para ele. Estava usando uma das camisolas de Imogen e, como era muito comprida, Salena tropeçou. O duque amparou-a e ela gritou de novo:
— Eles estão atrás de mim! Vão me pegar! Salve-me! Salve-me!
Agarrou-se a ele, freneticamente.
— Está tudo bem. Você estava sonhando. Ninguém vai pegá-la. Você está em segurança.
— Eles estão ali! Eu os vi!
Deu mais um grito, que pareceu ficar preso na garganta. Tremendo violentamente, escondeu o rosto no ombro do duque.
— Você está em perfeita segurança aqui no Afrodite, Salena.
Achou que o nome do iate a traria de volta à realidade. De repente, como uma criança que chegou ao fim das forças, começou a chorar.
Chorou muito, os soluços sacudindo-lhe o corpo, o rosto escondido no ombro do duque.
Compreendendo que a moça não sabia onde estava, nem o que lhe acontecera, ele a carregou nos braços.
Por um momento, pensou em colocá-la na cama, mas depois percebeu que Salena se agarrava a ele convulsivamente, como se fosse uma tábua de salvação da qual não podia se separar.
Carregando-a no colo, levou-a para o seu camarote.
Era muito grande, na popa, com vigias de cada lado. Contra uma das paredes havia um sofá confortável, de veludo, combinando com a cabeceira da cama.
O duque sentou, com Salena no colo, segurando-a como se fosse uma criança.
Ela continuou chorando e ele chegou a sentir que a seda fina no ombro de seu camisolão estava úmida de lágrimas.
Era tão pequena e delicada que o duque achou que era realmente uma criança precisando de proteção. Foi em voz suave que disse:
— Não precisa chorar. Basta confiar em mim para que eu a ajude, e ninguém a machucará enquanto estiver comigo.
— Eles… me… levarão para a guilhotina.
As palavras foram apenas sussurradas, e o duque pensou que não tivesse entendido bem.
— Eu… o matei! — continuou Salena, ainda num murmúrio. — Eu não pretendia fazer isso… mas peguei o cortador de papéis quando estava tentando escapar… e ele caiu em cima da ponta…
Essa recordação fez com que desse um grito abafado.
— Havia sangue na cama… e ele disse que eu o tinha matado… e depois morreu.
O duque afagou os cabelos dela, que caíam até os ombros, e percebeu que a camisola de Imogen, muito ousada e reveladora, mal lhe cobria os seios.
— Escute, Salena, sei que, seja o que for que tenha feito, foi um acidente. Prometo que, mesmo que eles descubram onde você está, o que é pouco provável, não será executada.
— Mas eu… eu o matei.
— Se foi o homem que bateu em você, então, mereceu isso.
A firmeza da voz do duque fez com que as lágrimas cessassem.
— Ele me bateu… porque eu estava tentando fugir.
— Por quê?
Tinha medo de fazer perguntas ou de fazer qualquer outra coisa, a não ser consolá-la. Era essa a revelação que esperava ouvir e teve cuidado para não assustá-la, com medo de que se calasse novamente.
Após alguns segundos, Salena respondeu:
— Ele tinha uma esposa e filhos.
— Mas você achou que o amava?
Ela ergueu o rosto e fitou-o, incrédula.
À luz da lâmpada de cabeceira, o duque viu o rosto manchado de lágrimas. Apesar disto, ela estava muito bonita, mas ao mesmo tempo era patética, criatura perdida, quase levada à loucura pelo pavor.
— Ele era mau, velho e horrível! Mas pagou a meu pai para me possuir… e eu não pude fazer nada.
Agora, ela chorava mansamente, e o duque achou que o terror já estava desaparecendo.
Começava a ter uma idéia do que acontecera. Embora desejasse fazer ainda inúmeras perguntas, achou que não era oportuno. Apenas continuou apertando-a contra o peito…
Ocorreu-lhe que era a primeira vez que tinha nos braços uma mulher que não pensava nele como homem e, sim, como um refúgio.
— Você passou por muita coisa. Sugiro que volte para a cama e tente dormir.
Ela estremeceu.
— Vou sonhar e achar que estão querendo me pegar. Sei que estão atrás de mim.
— Não pode ter certeza disso. E, mesmo que estejam atrás de você, não a encontrarão. A chance de eu apanhá-la no mar era uma em um milhão. Quem é que poderia desconfiar do que aconteceu?
— Acha que eles vão pensar que eu me afoguei?
— Tenho certeza disso.
— E não deixará que ninguém saiba que estou aqui?
— Ninguém saberá. Quando estiver disposta a me contar tudo, farei umas investigações discretas. Afinal, é muito frágil, e seria difícil você matar um homem. Talvez ele não tenha morrido.
— Ele disse: ”Você me matou! Estou morrendo!” E fechou os olhos.
— Deve ter sido assustador! Mas confie em mim para descobrir a verdade.
— Não é direito eu envolvê-lo.
— Não me envolverei. — Percebeu que Salena estava exausta de tanta emoção e a ponto de desmaiar. — Vou levá-la para a cama, e acho que seria uma boa idéia pedir a Dalton que lhe traga um leite quente.
— Não! Não! — murmurou Salena, agarrando-se a ele. — Não quero que ele me veja. Quero só… ficar com você.
Percebeu que a moça não sabia o que tais palavras podiam significar e que se agarrava a ele apenas por se sentir segura.
— Vou levá-la para a cama e deixar uma luz acesa. Assim, se acordar, não terá medo. Sabe que estou na cabine ao lado e se me chamar eu a ouvirei.
— Você… vai deixar a porta aberta?
— Deixarei as duas abertas: a sua e a minha. E garanto que tenho sono muito leve. Eu a ouvirei; mesmo que seja apenas um murmúrio.
Levou-a para a outra cabine e colocou-a na cama. Teve a impressão de que Salena estremecia, no escuro, e acendeu imediatamente a luz. Viu-a olhar em volta.
— Como vê, não há ninguém aqui e nenhum lugar onde alguém possa se esconder. Está em segurança, Salena. Continue dizendo para você mesma: ”Estou segura!” E lembre que estou na cabine ao lado.
Ela descansou a cabeça no travesseiro e o duque puxou as cobertas para cima.
Salena fitou-o, e ele teve o impulso quase irresistível de inclinar-se e beijá-la. Mas achou que isso não só poderia assustá-la, como destruir a confiança que depositava nele.
Sorriu.
— Durma, Salena. E não esqueça: basta um murmúrio e estarei a seu lado.
— Tem certeza? —— Tirou uma das mãos de sob as cobertas e segurou a dele. — Você não vai embora?
— Estamos no meio do Mediterrâneo. Eu teria que nadar muito, até poder chegar à Espanha. — Riu e acrescentou: — Não se preocupe: estarei aqui amanhã cedo.:
Sentiu que os dedos da moça apertavam os dele. Depois, Salena relaxou e fechou os olhos.
O duque fitou-a por um longo momento e saiu, silenciosamente, deixando a porta aberta.
Nunca lhe acontecera uma coisa tão estranha! Ficou acordado, pensando no que Salena havia contado e procurando ajustar as peças. Parecia-lhe incrível que ela pudesse ter nadado até tão longe. Se não estava num iate, devia ter vindo de uma das vilas fora de Monte Carlo, à beira-mar.
O Afrodite passara pelo rochedo onde se erguia o palácio do príncipe Charles; depois, vieram as vilas abaixo e acima da estrada que ligava Monte Carlo a Nice.
O duque calculava que tinham apanhado Salena num ponto entre Monte Carlo e Nice e procurou lembrar os nomes de alguns dos proprietários das vilas ao longo daquele trecho da costa.
Fazia alguns anos que visitara Monte Carlo, mas geralmente ficava a bordo. Embora conhecesse aquela estrada, não estava tão acostumado com ela como estaria se possuísse uma vila lá ou se se hospedasse na de algum amigo.
O marquês de Salisbury tinha uma propriedade enorme na região, mas não ficava no nível do mar.
Era impossível imaginar que Salena, vestindo apenas uma camisola, pudesse ter descido para a estrada, atravessando-a e depois indo até a praia. Assim sendo, tinha certeza de que a vila onde estava hospedada ficava no litoral. Isso diminuía consideravelmente o raio de ação de suas futuras pesquisas. Mas não esclarecia nada, por enquanto.
Ela está começando a ter confiança em mim, pensou. Mais cedo ou mais tarde, me contará tudo, até mesmo seu nome.
Parecia incrível que a tivesse tão apertada nos braços, que a tivesse visto nua, que ela se tivesse agarrado a ele, desesperada, querendo ser salva de seus pesadelos e de seus receios, e ainda não soubesse quem ela era!
Não havia dúvida de que era uma dama: havia algo de aristocrático nas feições delicadas, perfeitas. Assim como havia algo maravilhoso em cada linha de seu corpo.
— Ela é única. Se eu não fosse um homem prático, poderia pensar que é a reencarnação de Afrodite chegando à terra com todas as complicações de amor e de traição, características da mitologia grega.
Sabia que devia procurar dormir, mas, virando a cabeça no travesseiro, percebeu que estava à escuta, caso Salena o chamasse.
Refletiu que ninguém, e muito menos Imogen, acreditaria que uma mulher bonita havia pedido que ficasse com ela e que ele tinha recusado.
Ficou imaginando se o homem que a agrediu e traiu tão cruelmente a teria beijado e ficou com raiva, ao imaginar tal coisa.
— Porco maldito! Se não estiver morto, gostaria de ter a chance de matá-lo, eu mesmo!
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