Capítulo 1



1903
O trem parou na estação de Monte Carlo. Salena desceu para a plataforma e olhou em volta, com olhos bem abertos.
A estação parecia muito comum, nada exótica ou ameaçadora, como foi levada a crer.
Quando a irmã superiora soube que Salena devia se reunir ao pai em Monte Carlo, ficou francamente escandalizada. Mostrou a tal ponto a desaprovação, que a moça ficara admirada; em geral, a superiora era tolerante e de idéias largas.
A escola, anexa a um convento, para onde tinha sido mandada dois anos antes, não era exclusivamente católica. Aceitava moças de todas as religiões, mas Salena sabia que foi devido à influência da madrasta do pai, que conseguiu estudar lá.
— O Colégio de St. Marie é muito seleto e só aceita um número limitado de alunas — disse a velha lady Cardenham. — Mas creio que a educação é do mais alto nível e, mais importante ainda, você aprenderá a falar várias línguas. Se há uma coisa essencial para uma moça, hoje, é falar fluentemente o francês e, se possível, o italiano e o alemão.
Salena tinha a impressão de que a avó havia escolhido um convento para ela porque desaprovava o comportamento do pai de Salena após a morte da esposa.
Não era segredo que a velha lady Cardenham não se dava bem com o enteado e que foi apenas por uma noção de dever, mais do que por afeição, que assumiu a responsabilidade da educação de Salena.
— É a única coisa pela qual ela vai pagar — disse o pai da moça, com amargura.
— Então, não faça economia quando chegar a hora de comprar livros caros ou de ter aulas extras, se é que há essas coisas, lá.
Houve muitas aulas extras, e Salena ficou constrangida ao saber que, no fim do período escolar, a avó ia receber uma conta enorme.
A velha lady Cardenham podia perfeitamente arcar com as despesas, pois era muito rica; foi, portanto, uma infelicidade ter morrido seis meses antes de Salena debutar.
As outras meninas da escola falavam constantemente do que iam fazer quando crescessem, dos bailes e das reuniões sociais das quais participariam.
Assim sendo, Salena esperava com ansiedade o dia em que faria sua reverência no Palácio de Buckingham e seria uma das debutantes naquilo que descrevia como um ”brilhante cenário londrino”.
Foi uma sorte a avó ter pago a escola um ano adiantado, mas Salena ficava imaginando, apreensiva, o que fazer quando as aulas terminassem, pois nenhuma providência havia sido tomada para suas férias.
Depois da morte da mãe, nunca mais voltou a seu lar, na Inglaterra. Em vez disso, a irmã superiora sempre providenciava para que, em companhia de outras meninas cujos pais estavam no exterior, Salena fosse com duas freiras para uma fazenda, no campo, onde passavam algumas semanas num ambiente calmo, embora primitivo.
Salena adorava cada momento, mas no último ano achou um pouco frustrante ter tão pouca coisa para contar às amigas, ao voltar para a escola.
Apesar de tudo, tinha sido feliz. A notícia da morte da avó foi uma bomba e o susto, maior, quando recebeu uma carta do pai, dizendo que ela não devia ir encontrá-lo em Londres, mas em Monte Carlo.
Monte Carlo!
Só o nome já era sinônimo de má fama e de iniqüidade, apesar de os jornais noticiarem que todas as cabeças coroadas da Europa lá se reuniam numa ou noutra ocasião, inclusive o rei George e sua linda esposa dinamarquesa, a rainha Alexandra!
Mas as freiras consideravam Monte Carlo como o lugar mais próximo do inferno na terra, e Salena quase esperou ver os carregadores parecerem diabos e o trem se transformar num dragão a expelir fogo.
Em vez disso, enquanto olhava em volta, surgiu um lacaio de libré correndo para ela.
— M’mselle Cardenham?
— Oui, je suis mademoiselle Cardenham.
— Monsieur a espera na carruagem, m’mselle.
Salena virou-se e saiu da estação, enquanto o lacaio ia apanhar sua bagagem.
Lá fora, numa vitória aberta, reclinado no banco e fumando um charuto, estava seu pai.
— Papai!
Correu para ele, subindo para a carruagem e sentou a seu lado, erguendo o rosto.
Percebeu que o pai a examinava, antes de beijá-la. Depois, com sua habitual maneira jovial e bem-humorada, ele disse:
— Como vai, minha boneca? Pensei que você tivesse crescido, mas ainda é a mesma baixinha.
— Na realidade, cresci dez centímetros, desde a última vez que me viu.
Lorde Cardenham jogou fora o charuto, colocou as mãos nos ombros da filha e afastou-a um pouco.
— Deixe-me olhar para você. Sim… eu tinha razão!
— Razão sobre o quê?
— Apostei comigo mesmo que você ia ser uma beleza.
Salena corou.
— Eu tinha esperança, papai… de que me achasse… bonita.
— Você é mais do que bonita. Para dizer a verdade, é linda. Tanto quanto sua mãe foi, mas de um modo diferente.
— Eu adoraria ser parecida com mamãe.
— Gosto de pensar que você tem alguma coisa de mim — disse ele, animado. — Onde está a bagagem?
A pergunta foi endereçada ao lacaio que esperava Salena na plataforma e estava agora ao lado da carruagem.
— Um carregador vai trazê-la, monsieur.
— Há muita coisa?
— Não, monsieur.
— Então, a bagagem pode vir aqui conosco.
— Sim, monsieur. O carregador apareceu trazendo a mala de Salena sem dificuldade, assim como uma valise que continha pouca coisa além de livros.
— É só isso que você tem?
— Infelizmente tenho muito pouca roupa, papai. Os vestidos que eu usava antes do luto de vovó ficaram pequenos, e não adiantava comprar outros que sabia que não iam servir, depois que eu saísse da escola.
— Não. Claro que não.
O pai tirou do bolso uma bela cigarreira com cantos de ouro e abriu-a lentamente, de um jeito que fez Salena acreditar que ele estava pensando mais no que ia dizer do que concentrado em escolher um charuto.
A bagagem foi colocada na parte de trás da vitória. O lacaio sentou ao lado do cocheiro e a carruagem partiu.
— Creio que tem alguma coisa para me dizer, papai.
— Tenho muita coisa para lhe dizer, minha querida. Mas, primeiro, deixe-me contar onde ficaremos hospedados.
— Vamos ficar com amigos? — perguntou a moça, com uma nota de decepção na voz. — Eu esperava poder ficar sozinha com você.
— Eu também, mas, para falar a verdade, tenho que contar com a generosidade dos amigos.
— Quer dizer que está em má situação financeira?
— Não só em má situação, Salena. Falido! Não possuo um níquel!
— Oh, não!
Foi mais tristeza do que surpresa porque Salena sabia, havia muito tempo, como o pai era descuidado com dinheiro. Sua mãe e ela própria tinham tido que se esforçar e economizar para eles se agüentarem.
— Suponho que vovó não lhe deixou nada, no testamento? — perguntou, com uma leve esperança.
— Deixar alguma coisa para mim? Era mais fácil ela deixar para o diabo! Mas o que me surpreendeu foi não ter deixado nada para você.
Salena não disse nada, e ele continuou:
— Sei qual o motivo. Ela me detestava e achou que, se você tivesse dinheiro, eu o gastaria. Foi a mesma coisa… maldição!… que o pai de sua mãe fez, querida. — Tragou o charuto, com raiva. — Isso quer dizer, minha boneca, que estamos na miséria! Temos que pensar no que vamos fazer, e pensar depressa.
Salena fez um gesto de desamparo.
— Que é que podemos fazer, papai?
— Estive pensando em muitas coisas — disse lorde Cardenham, evasivo. — Mas falaremos sobre isso mais tarde. Nesse meio tempo, procure ser agradável com o nosso anfitrião.
— Ainda não me disse quem é ele, papai.
— É o príncipe Serge Petrovsky.
— Um russo!
— Sim, um russo e danado de rico! Monte Carlo está cheio deles, todos ricos como Creso e, folgo em dizer, generosos com seu dinheiro.
— Mas o príncipe é seu amigo, papai. Espero que não se importe de me incluir na lista de seus convidados.
— Expliquei-lhe francamente que não tinha para onde levá-la, minha filha, e imediatamente ele disse que você devia ir para a vila. Era o que eu esperava, mas nós dois precisamos de muito mais, por parte dele, do que isso.
Salena virou-se para o pai, atônita.
— Mais?
— Até mesmo a mais linda das mulheres precisa de uma moldura.
— Papai, você não está sugerindo…
— Não estou sugerindo; estou dizendo. A não ser que o príncipe esteja disposto a lhe fornecer alguns vestidos, você terá que usar as roupas que tem, ou andar nua!
— M… mas… papai!
— Escute aqui, Salena, e escute com atenção. Quando digo que estou falido, quero dizer exatamente isso. Também tenho dívidas. Então, para falar sem rodeios, você e eu teremos que viver de expedientes.
— Você é tão inteligente e tão divertido, papai, que tenho certeza de que todo mundo tem prazer em lhe oferecer hospitalidade, mas é muito diferente quando se trata de mim! Pensar que o príncipe vai pagar também as minhas roupas é uma coisa horrível!
— Não há outro jeito.
— Tem… certeza, papai?
— Não pense que não analisei tudo! Mesmo morar com outras pessoas acarreta despesas, de um jeito ou de outro. Ultimamente, tive muito azar no jogo de cartas e me vi obrigado a pedir dinheiro emprestado até para dar gorjetas aos empregados.
Havia na voz do pai um tom que fez com que Salena compreendesse até que ponto ele estava perturbado. Embora ela achasse que, nesse caso, jogar era uma loucura, teve a sabedoria de ficar calada.
Pela primeira vez, desde que tinham saído da estação, deixou de olhar para o pai, para ver onde iam.
Tinham saído da cidade e estavam agora numa estrada que tinha o mar de um lado e rochedos altos do outro.
Buganvílias vermelhas subiam pelas rochas; havia uma profusão de gerânios cor-de-rosa e árvores de mimosas douradas que deram a Salena a impressão de reter o sol.
— É lindo! Oh, papai, é lindo! — Olhou para o mar. — Que iate maravilhoso! Veja só, papai!
Um iate branco com os mastros delineados contra o céu movia-se sobre a água azulada, deixando um rastro branco.
Com a bandeira branca na popa, tinha uma qualidade mágica, de modo que foi difícil imaginar porque lorde Cardenham franziu a testa, observando:
— É o Afrodite. Pertence ao duque de Templecombe, o maldito!
— Por que o está xingando, papai?
— Pura inveja, boneca! Templecombe é, depois da realeza, um dos homens mais importantes da Inglaterra. Possui casas, cavalos e a melhor caça! Todas as coisas que desejo e que não posso ter!
— Pobre papai!
— Não, exatamente. Tenho uma coisa que ele não tem.
— E o que é?
— Uma filha muito bonita e meiga!
Salena deu uma risadinha de felicidade e encostou a face no ombro do pai.
— Estou tão… tão feliz por estar com você!
— Vai gostar da vila do príncipe. É magnífica, embora não tenha sido construída por ele. Serge comprou-a de um pobre diabo que perdeu tudo no cassino e se suicidou, não tendo coragem de enfrentar a miséria.
Salena estremeceu. Era esse tipo de história que tinha ouvido a respeito de Monte Carlo. Passou-lhe pela cabeça a idéia de que detestaria morar numa casa cujo antigo dono se suicidara.
— É uma saída que eu mesmo cheguei a considerar — disse o pai, gravemente.
— Oh, não! Você não pode pensar numa coisa dessas! É errado! É… pecado! A vida é um dom precioso de Deus.
— É uma pena que Deus não seja mais generoso em outras coisas. — Lorde Cardenham olhou para ela e acrescentou: — Mas talvez tenha sido. Ele me deu uma filha muito bonita.
Salena aproximou-se um pouco mais e colocou a mão na dele.
— É maravilhoso ouvi-lo dizer isso, papai. As outras meninas na escola costumavam rir de mim e dizer que eu parecia um bebê e que ninguém ia acreditar que eu era adulta.
— Você parece de fato muito jovem.
De novo examinou a filha e, com uma surpreendente veia poética, comparou-a a uma flor.
O rosto miúdo, de queixinho pontudo, era completamente dominado pelos olhos enormes, cinzentos com reflexos verdes.
Eram bem separados e tinham a inocência de uma criança que ainda não conhecia o mundo.
Pela primeira vez, lorde Cardenham imaginou se não estaria cometendo um crime contra a natureza ao trazer uma criatura tão inexperiente para Monte Carlo.
Depois disse a si mesmo que não havia remédio e que talvez o fato de ser tão ingênua a impedisse de compreender muita coisa do que fosse dito ou feito.
Em voz alta, comentou:
— Você vai achar uma miscelânea de pessoas hospedadas na vila, mas todas têm uma coisa em comum: vivem para o jogo.
— É tudo tão lindo — disse Salena, olhando para o mar. -— Deve haver outras coisas para fazer, aqui.
— Você verá que não são importantes.
— Serão importantes para mim. Sim, pois uma coisa é óbvia, papai: não posso arriscar nem mesmo um tostão, para não perdê-lo!
— Isso é um fato indiscutível! — concordou o pai, sorrindo. Os cavalos estavam saindo da estrada.
— Cá estamos. E deixe-me dizer-lhe que esta é uma das vilas mais atraentes de toda a Cote d’Azur.
Desceram lentamente por uma alameda sinuosa cercada de pinheiros e com muros cobertos de gerânios.
Um pouco abaixo da estrada por onde tinham vindo ficava a vila, num pequeno promontório que avançava para o mar. Branca, brilhando ao sol, era impressionante, e, quando Salena entrou no saguão fresco, teve a impressão de entrar num país encantado.
Era, sem dúvida, muito diferente da casa estreita e alta de Eaton Square, onde morara quando a mãe ainda estava viva e que sempre pareceu pequena demais para eles.
Aqui havia espaço, luxo, e os espelhos das paredes refletiam o sol que entrava pelas janelas, de modo que tudo parecia reluzente.
O pai caminhou à frente dela por um salão lindamente decorado e passou para um terraço onde se viam toldos azuis para proteger do sol.
Havia apenas duas pessoas ali, sentadas em cadeiras baixas e confortáveis. Uma era uma senhora que Salena achou extraordinariamente bela; a outra, um homem que levantou e se dirigiu para eles.
— Cá está você, Bertie — disse ele para lorde Cardenham. — Achei que o trem devia estar atrasado.
— Estava, mas acabou chegando. Alteza, permita que lhe apresente minha filha, Salena.
A moça fez uma reverência e olhou com interesse para o príncipe. Era um homem de uns quarenta anos, que, pensou ela, devia ter sido muito bonito, quando moço. Agora estava pesado, tanto nas feições, quanto de corpo.
Tinha olhos escuros, um tanto saltados, que a examinaram de um modo que a deixou constrangida.
Os cabelos grisalhos nas têmporas estavam penteados para trás e a testa era larga.
— Seja bem-vinda, Salena — disse, num inglês com um sotaque pronunciado. — Espero que seu pai lhe tenha dito que estou encantado por tê-la como hóspede.
— É muita amabilidade sua, alteza.
O pai estava beijando a mão da senhora reclinada na cadeira sob o toldo azul.
— Madame Versonne, quero que conheça minha filhinha Salena.
— Mas, naturalmente… estou encantada!
Mas a francesa não parecia assim tão encantada, e Salena percebeu que ela a examinava de um modo depreciativo.
Fez uma reverência e ficou esperando que lhe dissessem o que fazer em seguida.
Madame Versonne levantou, dirigindo-se a lorde Cardenham.
— Agora que chegou, vou repousar um pouco. Está muito quente aqui, mas eu estava divertindo Serge. Pelo menos, assim o espero.
Olhou de um modo provocante para o príncipe, e ele respondeu com o elogio que ela obviamente esperava.
Depois, com as saias de seda farfalhando de modo provocante e deixando atrás de si um perfume exótico, madame Versonne caminhou ao longo do terraço, entrando no salão por uma porta-janela aberta.
— Faça o favor de sentar — disse o príncipe. — Garanto, Bertie, que você está precisando de um drinque, depois de ter esperado pelo trem nesse calor insuportável. Nunca vi tanto calor em abril.
Salena teve vontade de dizer que era delicioso, mas estava ocupada demais em olhar à volta, sem parecer demasiadamente curiosa.
Havia uma escada de mármore branco levando do terraço ao jardim lá embaixo, e percebeu que a vila era construída em três planos diferentes.
O jardim, no promontório de rocha que avançava para o mar, ficava apenas um pouco acima do nível da água. No centro, havia uma fonte de pedra; árvores grandes e frondosas cercavam um gramado verde, e os canteiros estavam cheios de flores exóticas, das quais ela apenas reconhecia algumas.
Além do jardim, através das árvores, podia ver a curva da costa em direção a Monte Carlo e, do outro lado, se é que estava bem lembrada, em direção aos rochedos de Eze.
— Que maravilha estar aqui, pensou. Mais bonito ainda do que imaginava.
O mar era de um azul vivo, exceto na linha do horizonte, onde adquiria uma tonalidade verde-esmeralda.
Tinha ouvido muitas vezes as colegas falarem sobre a Cote d’Azur, mas elas sempre ficavam em casa de amigos em Nice ou em Cannes. Embora falassem sobre Monte Carlo com curiosidade, de respiração suspensa, nenhuma havia visitado o principado.
Mas eu estou aqui, pensou Salena.
Desejou por um momento poder voltar à escola no ano seguinte, só para ter mais o que contar do que as outras.
— Em que está pensando? — perguntou o príncipe, em voz profunda.
Ela se virou para ele, com olhos brilhantes.
— É lindo! Já tinha lido alguma coisa sobre o azul da França e estudado um pouco de sua história, mas não sabia que era tão bonito.
O príncipe sorriu.
— Foi o que também senti, quando vim pela primeira vez. Mas meu país também é muito bonito.
— Foi o que ouvi contar.
Ouvira falar também das crueldades perpetradas na Rússia e do sofrimento da maioria da população, mas não julgou que fosse o tipo de observação apropriada.
Em vez disto, achou que devia perguntar ao príncipe sobre a corte russa e a magnificência do palácio de São Petersburgo.
Mas, antes que pudesse falar, seu pai, que estava sentado do outro lado do príncipe, disse, inesperadamente:
— Tire esse chapéu feio, Salena. Quero que Sua Alteza veja seus cabelos.
Olhou para ele, admirada, mas, como estava habituada a obedecer, tirou imediatamente o chapéu, temendo que os cabelos estivessem em desordem.
Tinha se penteado de maneira muito simples, com um coque na nuca, mas quando se viram livres do chapéu os cabelos dourados caíram sobre a testa com uma onda natural que reteve os raios do sol.
— Não há ninguém mais experiente do que você, Serge, quando se trata do sexo feminino. Diga-me, então: como é que ela deve se vestir e que cores usar?
— Há apenas uma pessoa em Monte Carlo que poderá fazer justiça à sua filha. É Yvette. É uma artista no ramo e jamais comete o erro de arruinar a personalidade de uma mulher com uma ostentação exagerada, como acontece com muitas costureiras.
— Continue, Serge, estou ouvindo — disse lorde Cardenham. — Mas, no que me diz respeito, posso tanto pagar pelos vestidos de Yvette quanto andar sobre as águas do mar!
Falou sem o menor constrangimento, mas Salena sentiu que ficava vermelha.
Sabia perfeitamente por que motivo o pai estava chamando a atenção para ela e achou que seria preferível fugir e se esconder, a vê-lo dar indiretas tão óbvias e dirigir a conversa para o assunto de seu interesse.
Percebeu que o príncipe também compreendia aonde seu pai queria chegar. Com uma leve nota de cinismo na voz, o russo disse:
— Na minha opinião, Bertie, para uma pessoa tão linda como sua filha, só se pode exigir o que há de melhor!
— Está falando sério?
— Claro. Mande um criado a Monte Carlo dizer a Yvette que venha cá, assim que for possível. Acho que ela conhece o caminho até de olhos vendados.
— Fico-lhe muito grato e sei que o mesmo se dá com Salena. Você precisa agradecer ao príncipe, querida, por tanta generosidade.
— Obrigada… muito obrigada.
Sentia-se tão constrangida que não pôde encarar o príncipe. Era degradante que seu pai pedisse tão abertamente a alguém que pagasse pelas roupas da filha.
O príncipe, é claro, estava em condições de fazer isso, mas Salena sabia que tal situação teria escandalizado sua mãe e, certamente, horrorizado a irmã superiora.
Felizmente, apareceu um criado com um balde de gelo de prata e uma garrafa de champanhe.
Três taças foram colocadas na mesa, mas, quando foram servir Salena, ela fez um gesto negativo.
— Não, obrigada..
— Não gosta de champanhe? — perguntou o príncipe.
— Não tenho bebido champanhe muitas vezes. Só no Natal e no aniversário de papai.
— Prefere uma limonada?
— Sim, por favor.
O príncipe deu uma ordem ao empregado e depois disse, pensativo:
— Você causa inveja, Salena, por estar começando a vida, quando tudo é novo e interessante. Fico imaginando como nos sentiríamos, Bertie, se voltássemos aos nossos dezoito anos!
— Faz muito tempo — disse lorde Cardenham. — Mas lembro que fiquei muito excitado, quando fiz minha primeira conquista.
— E eu me lembro muito bem de um caso de amor que tive nessa idade — contou o príncipe. — Claro que não foi o primeiro, mas eu estava apaixonadíssimo. Vi o mesmo balé, uma noite atrás da outra, e sempre o achei interessante.
Os dois homens riram, e Salena achou que, nos anos futuros, quando olhasse para trás, sempre lembraria a primeira vez em que tinha visto o sul da França, o iate branco sobre o azul do Mediterrâneo’…
Depois que terminou a limonada, o príncipe sugeriu que ela fosse ver seu quarto.
— Yvette não deve tardar — disse ele. — Então, escolheremos o vestido que deverá usar hoje à noite e outros que usará até que eu lhe forneça tudo que for necessário.
— Tenho certeza… de que… não precisarei de muita coisa — disse, constrangida.
Notou o ar taciturno do pai e compreendeu que ele pretendia tirar do príncipe tudo que fosse possível. De novo, ficou envergonhada.
Ao chegar no quarto, suas malas tinham sido desfeitas. Olhou para o retrato da mãe, agora sobre a penteadeira, e ficou imaginando o que ela teria pensado de tudo aquilo.
Era apenas um esboço, feito por um amador, porque a mãe nunca pôde ser retratada por um profissional. Mas o artista captou bem a semelhança, e agora Salena achou que a mãe a fitava com ar de censura.
— Como é que posso evitar? — murmurou. — Papai está errado, mas não posso ficar aqui com ele, nesta vila elegante, a não ser que tenha roupas decentes.
Decentes não era, certamente, a palavra exata para descrever os vestidos que Yvette trouxe de Monte Carlo.
A modista não chegou tão depressa como o príncipe imaginava. Achando que o pai esperava que ela aguardasse no andar de cima, Salena deitou na cama e ficou apreciando a vista, pela janela aberta.
Aquilo atiçava sua imaginação. Estava tão absorta que não percebeu a passagem do tempo, até ouvir uma batida na porta. Voltou a si, com um sobressalto.
A costureira entrou com uma porção de caixas e uma ajudante para abri-las.
Madame Yvette era uma francesa morena, viva, feia, mas extremamente chic.
— Falei com seu pai e com Sua Alteza. Disseram-me para vesti-la com minhas criações especiais e mandá-la depois ao salão, onde estarão esperando para examiná-las.
— Eles me farão ficar… constrangida.
— Não vai ficar constrangida depois que eu a tiver vestido, mademoiselle. Oh, meu Deus! Não compreendo como é que uma senhora pode se vestir dessa forma!
Salena explicou que acabava de sair da escola e Yvette aceitou a explicação, mas atirou no chão, com ar enojado, o vestido simples, mal talhado, com o qual a moça tinha viajado.
Quando já estava com o traje de noite, Salena olhou-se no espelho e julgou ver uma estranha.
Madame Yvette começou apresentando um colete justo, para afinar a cintura.
— Está apertado demais, madame! — queixou-se Salena. Mas a francesa não lhe deu atenção.
— Seu corpo é muito bonito, mademoiselle. Seria um crime escondê-lo!
— Mas mal posso respirar.
— Isso porque deixou seus músculos ficarem flácidos. É errado, muito errado. O corpo deve sempre ser contido e controlado.
O vestido de tule branco, que revelava não apenas a cinturinha de Salena, como também a curva dos seios e a brancura da pele, parecia muito ousado. Apesar disso, tinha um ar etéreo que acentuava a mocidade de Salena e seu rosto lindo.
Yvette observou-a, atentamente.
— Cest bien. Precisa de algumas jóias, mas…
— Não, não! Por favor, não… fale nisso.
Desconfiava de que o pai não hesitaria em pedir também jóias ao príncipe, se achasse que era necessário.
— Vá até o salão e exiba-se — disse Yvette. — Depois, arranjarei um vestido para você usar amanhã.
Salena obedeceu, mas, quando entrou no salão, estava muito envergonhada.
O pai e o príncipe fumavam e bebiam, sentados num sofá. As persianas abaixadas tornavam a sala fresca, tirando-lhe o brilho da luz lá de fora. Mas Salena sentia-se muito exposta.
— Deixe-me vê-la — ordenou o príncipe.
— Você tinha razão, Serge. Aquela mulher é um gênio! Eu não poderia imaginar um vestido mais apropriado para uma mocinha.
Salena adiantou-se, lentamente.
Sabia que era tolice, mas desejou que o vestido não fosse tão justo nem tão revelador.
Sentia-se quase como se os olhos escuros do príncipe a vissem nua. Quis estar usando o vestido feio e disforme, com o qual tinha chegado ali.
— Está muito bonita! — declarou o dono da casa. — E, naturalmente, muitos homens lhe dirão isso, antes do fim da noite.
— Eu… espero que não.
O príncipe ergueu as sobrancelhas, e ela explicou, hesitante:
— Fico… envergonhada… quando as pessoas me olham. Mas talvez o senhor esteja apenas sendo… amável.
— Claro que estou sendo amável. E estou pronto a ser muito mais.
— Sim, eu sei… e estou muito… grata. — Salena gaguejava, sentindo que não se expressava com coerência.
Desejou ardentemente estar de volta à escola, onde ninguém a olhava daquele jeito. Quando percebeu que não agüentava mais, virou-se em direção à porta.
— Madame tem outro vestido para eu vir mostrar — disse, saindo apressada.
Dali a algumas horas, quando enfiava o vestido de noite, já com os cabelos penteados por uma cabeleireira de Monte Carlo, Salena disse a si mesma que precisava agir como adulta, e não como uma colegial amedrontada.
Tinha ido quatro vezes ao salão mostrar ao pai e ao príncipe as roupas de madame Yvette e, a cada vez, ficou mais encabulada. Provavelmente, por causa da maneira como o russo a olhava e das coisas que disse.
Suas palavras sempre pareciam ter um duplo sentido e muitas vezes provocaram o riso de lorde Cardenham, embora Salena não achasse a mínima graça.
— Preciso não fazer papel de tola, para não envergonhar papai — murmurou, diante do espelho.
A criada que a ajudava a se vestir não lhe poupou elogios.
— M’mselle est ravissante! Assim como os lírios que cultivamos para o mercado de Nice.
— O mercado de flores? Ouvi falar dele e gostaria de visitá-lo. As flores devem ser lindas.
— Os cravos vêm de toda a costa para serem vendidos lá. E também os lírios… lírios para as igrejas. — Sorriu. — Desse jeito, ´m’mselle devia estar numa redoma, numa de nossas igrejas; não nas salas de jogo de Monte Carlo.
— Vamos a Monte Carlo hoje à noite?
— Mais oui, mmselle. Todas as noites, todas as tardes… às vezes até de manhã… todo mundo vai ao cassino. Quanto a mim, acho que é jogar dinheiro fora.
— Também acho.
Ao mesmo tempo, tendo ouvido falar tanto dele, não podia deixar de achar que seria excitante conhecer o cassino, mesmo que não jogasse.
Bateram na porta, e Salena soube que era o pai, que tinha prometido vir buscá-la para acompanhá-la até embaixo.
Lorde Cardenham parecia muito próspero com um alfinete de pérola brilhando na gravata, camisa alva e engomada, um cravo vermelho na lapela. Sempre tinha sido um homem bonito, e Salena achou impossível alguém imaginar que fosse pobre como realmente era.
— Pronto, querida?
— Estou bem, papai?
— Acho que o príncipe já lhe fez elogios suficientes para tornar os meus desnecessários.
Havia na voz dele uma nota de satisfação que não passou despercebida a Salena.
— Como é que podemos dizer ao príncipe como estamos gratos por sua generosidade? — perguntou a moça.
A empregada já tinha saído, e aquela era uma pergunta que Salena pretendia fazer ao pai, assim que ficassem a sós.
— Deixo isso por sua conta, querida.
— Por minha conta? Mas eu não… sei… o que mais dizer.
— Então, torne-se o mais agradável possível. Poucos homens ricos seriam tão generosos com alguém que nunca tivessem visto antes e de quem soubessem pouca coisa.
— Desconfio de que você falou a ele a meu respeito, papai.
— Claro que descrevi as circunstâncias em que você se encontra. Os russos são muito sentimentais e, com uma jovem sem mãe para aconselhá-la, e com um pai de bolso furado, você é mais do que patética!
Salena suspirou.
— O príncipe foi muito amável, mas eu gostaria que você não tivesse pedido nada.
— Ele ofereceu — disse o pai, na defensiva.
Salena queria dizer que ele tinha tornado difícil para o príncipe agir de outra forma, mas sabia que qualquer protesto que fizesse seria perda de tempo. O pai sempre estava de olho na oportunidade melhor que surgisse e era difícil censurá-lo, pois também estava sempre à beira da falência.
Ele passou o braço em volta da cintura de Salena, puxou-a e beijou-a na face.
— Agora, procure expressar sua gratidão ao príncipe. E, pelo amor de Deus, não haja como se tivesse perdido a língua! O mal das inglesas é que não têm nem a metade da vivacidade das mulheres de outras raças.
— Vou procurar dizer a coisa certa.
— Isso mesmo. Agora, vamos descer. Quero ver a cara de madame Versonne, quando a vir. Tenha cuidado com ela: é uma fera!
— De que maneira? Não compreendo.
Lorde Cardenham esteve a ponto de explicar, mas mudou de idéia.
— Ficará sabendo, mais cedo do que pensa. Seja apenas você mesma e cruze os dedos!
— Para ter sorte, papai?
— Para ter sorte. Foi isso que achei que você ia me trazer, quando a vi na estação, boneca.
Levou Salena para baixo, em direção ao salão. Quando entraram, já parecia repleto de gente.
Havia som de risos e de conversas. Salena viu então o príncipe sair de um grupo de pessoas, entre elas madame Versonne.
Tinha achado a francesa bonita, ao vê-la no terraço, mas de vestido de noite estava sensacional! Havia plumas de avestruz na barra do vestido e também nos ombros, parecendo que ela acabava de sair das ondas do mar. Tudo que usava era verde, complementado por um rico colar de esmeraldas.
O penteado era sofisticado, com um arranjo no alto da cabeça: uma pluma de avestruz presa por um enorme broche de esmeraldas e brilhantes.
Salena olhou-a com tanta admiração, que não percebeu que o príncipe estava a seu lado. Quando o viu, fez uma reverência.
— Você está exatamente como eu esperava.
— Obrigada. Não sei como dizer o quanto me sinto grata à Vossa Alteza.’
— Vamos deixar o que temos a nos dizer para depois, quando estivermos a sós.
— Sim… naturalmente — respondeu a moça, percebendo que ele não queria que os outros convidados soubessem de sua generosidade.
— Agora, quero apresentá-la a meus amigos.
Segurou o cotovelo de Salena e conduziu-a pela sala. Havia tantos rostos desconhecidos, tantos nomes difíceis de pronunciar, tantos títulos, que, no fim, ela não sabia mais a respeito dos convidados do que sabia a princípio.
O príncipe afastou-se, quando outra pessoa foi anunciada, e Salena ficou contente por poder se aproximar do pai.
Ele conversava com madame Versonne, e a moça teve a impressão de que o olhar da mulher endureceu, ao vê-la.
— Sua filha devia estar num baile de debutantes, em vez de fazer sua estréia num salão de jogo.
— Salena não vai fazer isso — respondeu lorde Cardenham. — Além do mais, acho que o número de debutantes é pequeno, aqui em Monte Carlo.
Madame Versonne deu uma risada desagradável.
— Elas não duram muito em lugar algum; menos ainda quando há águias imperiais prontas a bicá-las.
Parecia haver um duplo sentido no que dizia, que Salena não entendeu. Quando a mulher os deixou, indo na direção do príncipe, lorde Cardenham disse:
— Eu a avisei a respeito dessa mulher. Fique longe de suas garras!
— Parece que não gosta de mim. Não compreendo porque, se só me conheceu hoje.
O pai sorriu.
— Não precisa procurar o motivo muito longe.
— Diga-me… — começou Salena, mas alguém veio falar com seu pai e ele não pôde responder.
A mesa de jantar, ela se viu sentada entre um russo idoso, que só queria falar dos diferentes sistemas que testava nas mesas de jogo, e um francês que lhe fez elogios tão extravagantes que ela os achou ridículos.
A comida era deliciosa, e a mesa não apenas estava cheia de enfeites de ouro, como decorada com orquídeas.
Salena estava atônita. Sabia que eram as flores mais caras que havia e achou incrível que fossem usadas com tanta profusão, só para enfeitar a mesa.
Verdade que tudo a respeito do príncipe parecia extravagante: a comida, o vinho, as jóias das senhoras, a opulência dos homens.
Era um mundo no qual Salena imaginava que o pai se movimentava à vontade, mas que ela jamais conheceu.
Não pôde deixar de pensar que era estranho que ela e o pai, que não possuíam um níquel e não sabiam de onde viria o próximo, estivessem no meio daquela gente.
Creio que papai poderia trabalhar para ganhar dinheiro, pensou. Mas, e eu, que poderia eu fazer?
Não tinha nenhuma aptidão rendosa. Sabia desenhar e pintar; como amadora, tocava piano, mas não era nenhuma artista; e a única carreira para uma moça de boa família era a de governanta ou dama de companhia.
Deu um suspirozinho.
Detestaria ser uma dessas coisas, pensou, tentando imaginar, ansiosamente, o que o futuro lhe reservava.
Não podia deixar de se preocupar, pois, quando saíssem da vila, não teriam para onde ir.
Para seu pai, o problema não seria grande. Sempre havia pessoas dispostas a convidá-lo, oferecendo-lhe o que ele chamava de ”uma cama onde dormir e um teto sobre a cabeça”, porque era encantador e fazia sucesso em qualquer reunião social.
Salena lembrava de ter ouvido a mãe dizer que o marido recebia muitos convites nos quais não a incluíam.
— Sabe, querida? Todo o mundo quer um homem avulso. Principalmente, um homem como seu pai. Um casal é mais difícil; ainda mais, quando nada tem a oferecer.
— Que é que vocês poderiam oferecer?
— Hospitalidade — respondeu a mãe. — Se tivéssemos uma casa no campo, ou pudéssemos dar um baile em Londres, ou mesmo jantares divertidos, poderíamos fazer o que seu pai chama de ”pagar” os convites. Mas não estamos em condição de retribuir nenhum deles.
Salena era muito jovem na ocasião. Mas, à medida que crescia, foi percebendo que havia muitas ocasiões nas quais nem mesmo os amigos mais íntimos dos pais os convidavam.
A mãe achava aquilo natural, mas o pai blasfemava, e Salena sabia que se sentia frustrado por ser deixado de lado.
Era uma questão de ”pagar”, pensou agora. Mas como poderia ela ”pagar” pelo que alguém lhe fizesse de bom?
Olhou para a mesa comprida, para o lugar onde estava sentado o príncipe, tendo de um lado madame Versonne e do outro uma senhora muito atraente.
Elas o faziam rir.
Havia qualquer coisa na atenção que as duas lhe davam, na maneira com que se inclinavam para ele, que Salena pensou que era essa a maneira de demonstrarem sua gratidão e, talvez, sua afeição pelo príncipe.
— É isso que ele… espera de mim, disse a si mesma.
Sem saber porque, tal pensamento fez com que sentisse um calafrio.
— Não, papai! Não posso! Não posso!
Lorde Cardenham foi até a janela do quarto de Salena e ficou olhando o mar. Não disse nada, e ela continuou, nervosa:
— Quero satisfazê-lo, papai, mas detesto o príncipe. Não sei explicar. Ele me dá medo. Há qualquer coisa na maneira com que olha para mim…
Não era apenas a maneira de olhar; Quando a tocava, ela sentia repulsa, como se uma cobra deslizasse por seu corpo.
O príncipe parecia estar sempre junto dela, de modo que sua mão tocava a de Salena, ou os ombros de ambos se roçavam.

Na última semana, teve a sensação de que aquele homem cada vez se agarrava mais a ela; À noite, muitas vezes acordava com um sobressalto, porque ele a fazia ter pesadelos.
Percebia que madame Versonne a olhava com ódio e se dirigia a ela de maneira cada vez mais agressiva, fazendo com que se encolhesse toda e procurasse ficar o mais apagada possível.
E agora, o pai lhe dizia que o príncipe queria casar com ela. Era inacreditável! Absurdo!
— Ele é velho, papai. Claro que gostaria de me casar, um dia. Mas quero casar por amor… e com um moço.
— Os moços não têm dinheiro!
Disse isso com dureza. Virou-se depois, tendo nos olhos uma expressão que a filha nunca tinha visto antes.
— Não pense que não refleti sobre o assunto. Muitas vezes, fiquei acordado à noite, procurando outra solução. Mas. francamente, querida, não há o que possamos fazer.
Salena fitou-o com olhos sombrios e amedrontados no rosto pálido.
— Quer dizer que tenho que casar com o príncipe… porque ele é rico?
— Ele fez hoje uma doação a você de duas mil libras por ano. É bastante inteligente para saber o que isso significa para nós dois.
Salena deixou escapar um pequeno gemido, mas não disse nada. O pai continuou:
— Duas mil libras por ano é uma quantia considerável. Além do mais…
Interrompeu-se, parecendo constrangido, e Salena perguntou:
— Ele está dando alguma coisa para você também, papai?
— Está me dando o bastante para eu pagar minhas dívidas e não ficar desesperado a respeito do futuro, como tenho me sentido há muito tempo.
Houve um momento de silêncio. O pai continuou:
— Sou obrigado a lhe pedir isso, Salena. Ou então, terei que meter uma bala na cabeça e acabar com tudo.
— Que quer dizer com isso?
— Quero dizer que, se eu não puder pagar minhas dívidas, serei processado e a inevitável publicidade me obrigará a pedir demissão de meus clubes.
Salena sabia bem o que esse sacrifício significaria. A vida do pai, quando não estava hospedado em casa de amigos, se concentrava nos dois mais exclusivos e mais elegantes clubes de Londres, dos quais era sócio.
— Você fez alguma coisa errada, papai?
— Você e, provavelmente, sua mãe considerariam errado. Devo dizer que arrisquei, quase obtive sucesso, mas perdi.
— Quer dizer que, se eu não casar com o príncipe, você se verá em sérios apuros?
— Muito sérios!
Salena suspirou. Devia ter adivinhado, quando o pai lhe falou que o príncipe a pedira em casamento, que não haveria escapatória possível. Como a idéia a horrorizava, fazendo-a sentir que não poderia suportar o que a esperava, correu para o pai como uma criança amedrontada.
Lorde Cardenham apertou-a nos braços. Disse, com voz embargada:
— Sou um péssimo pai, boneca, mas, pelo menos, você terá o futuro garantido.
A moça teve vontade de responder que nada de pior lhe podia acontecer do que ser esposa do príncipe. Mas sabia que o pai estava sofrendo e, porque o amava, conseguiu dizer, com uma coragem que estava longe de sentir:
— Vou procurar fazer como você quer… que eu faça.
O pai segurou-lhe o queixo e fitou-a por um longo momento. Depois, quase que falando consigo mesmo, observou:
— Se ao menos houvesse mais tempo, se pudéssemos esperar… talvez aparecesse um outro.
Salena não pôde deixar de pensar que muitos homens lhe tinham feito elogios, desde que chegara a Monte Carlo. Todas as noites em que tinham ido ao cassino, sempre alguns cavalheiros se aproximavam, obviamente com desejo de conhecê-la.
Embora isso a tivesse deixado constrangida e ela nem sempre soubesse o que lhes dizer, aqueles homens não a faziam sentir repulsa, como acontecia com o príncipe.
Um dos motivos de Salena gostar de ir ao cassino era que, assim que chegavam, seu anfitrião era logo levado por madame Versonne para a mesa de bacará.
A francesa sentava ao lado dele, enquanto o príncipe, a exemplo de outros homens imensamente ricos, tentava quebrar a banca.
O pai lhe contou quem eram os outros jogadores. Quando, inocentemente, ela perguntou porque homens tão ricos queriam ganhar mais dinheiro, ele respondeu:
— Não há muito sentido em jogar, mas isso dá a esses milionários uma emoção à qual são incapazes de resistir.
Salena sabia que ele próprio estava louco para jogar, mas não tinha dinheiro para isto. De vez em quando, arriscava alguns francos na roleta ou no trente-et-quarante.
Ficava tão aflita, com tanto medo de que perdesse, que era um sofrimento observar a virada de uma carta ou a parada da bola na roleta.
Depois, inevitavelmente, chegava a hora em que o príncipe se juntava a eles, com os olhos fixos no rosto dela, a mão procurando tocá-la.
Salena desejava correr e se esconder, mas depois lembrava, com desespero, que ele tinha pago o vestido que estava usando e, portanto, era preciso ser cortês e mostrar-lhe sua gratidão.
Como todos os hóspedes da vila eram estrangeiros, Salena desejava ardentemente ver o rosto de um inglês e poder falar com alguém compatriota. Certa noite, um homem, que obviamente era inglês, cumprimentou o pai dela, quando passava por um dos salões.
Era alto, de ombros largos, pele clara, embora os cabelos fossem castanho-escuros.
Assim como todos os freqüentadores do cassino, estava alegremente vestido, mas dava a impressão de usar suas roupas com naturalidade, como se fizessem parte dele.
— Boa noite, Cardenham.
— Espero que seja. Mas ainda é cedo para se saber.
O inglês percebeu que ele se referia ao jogo e deu uma risada.
— Quem é? — perguntou Salena.
Ficou olhando o homem alto e de ombros largos caminhar por entre as mulheres de vestidos brilhantes e os homens que, de certo modo, pareciam estufados em seus trajes de noite.
— É o duque de Templecombe.
— Foi o iate dele que vimos quando eu cheguei — disse ela, com um ligeiro tremor na voz.
— Sim, o Afrodite. Eu gostaria de visitá-lo, se tivesse oportunidade, pois dizem que é um dos barcos mais modernos, em seu gênero, em toda a Inglaterra:
— Eu também gostaria.
Nas noites seguintes, ela procurou pelo duque, na esperança que conversasse com o pai, mas ele não apareceu. Certa noite, lorde Cardenham chamou-a a um canto.
— Há uma coisa que preciso lhe dizer.
Pelo tom de voz, Salena percebeu que ele estava constrangido.
— Que é, papai?
— O príncipe quer que case com ele imediatamente!
— Imediatamente? Oh, não! Impossível!
— Ele insiste. E, francamente, estou precisando do dinheiro que me prometeu.
— Como é possível? Como é que podemos casar tão depressa? Que é que… madame Versonne vai dizer?
Mesmo para uma pessoa inexperiente como Salena, era óbvio que a francesa considerava o príncipe sua propriedade particular.
Estava sempre ao lado dele, e seu ar de proprietária e a maneira com que se arvorara em anfitriã na vila tinham feito Salena sentir que estava certa de que era com ela que o príncipe casaria.
— O príncipe pensou em tudo — disse lorde Cardenham. — Neste momento, está informando seus hóspedes de que seu criado particular foi atacado por uma forma virulenta de escarlatina. Providenciará para que todos se mudem para o Hotel de Paris. Alugou dois andares, e eu devo fazer o papel de anfitrião, até vocês estarem casados e terem partido para a lua-de-mel.
— Mas, papai…
Compreendeu, então, que nada do que dissesse adiantaria.
— O príncipe está dizendo que, como teve contato diário com seu criado particular, ele próprio precisa ficar isolado durante algumas semanas. A vila vai ser supostamente desinfetada, e os convidados deverão voltar dentro de alguns dias, mas até lá vocês dois já terão partido.
Dirigiu-se para a janela e acrescentou:
— Só Deus sabe como é que vou dar a notícia a madame Versonne. Vai ficar furiosa! O príncipe lhe dará uma generosa compensação, disso não há dúvida.
— Mas… o que vou fazer? E para onde é que o príncipe me levará?
— Vocês casarão hoje à noite, aqui na vila, para que ninguém fique sabendo de nada. Precisa compreender, Salena, que o príncipe deveria pedir licença ao czar, mas disse que seria uma viagem muito longa daqui até a Rússia, para voltar de novo para cá.
— Certamente, seria muito melhor se ele fizesse isso.
— Não seria melhor para mim!
— Não. Claro que não, papai. Eu tinha esquecido.
— Compreende a necessidade de ficar tudo em segredo? Além do mais, seria extremamente desagradável para você ter que enfrentar madame Versonne e ouvir os comentários dos outros hóspedes da vila.
— Sim, naturalmente. Não tenho o menor desejo de ouvir isso.
Estava de fato com medo de madame Versonne. A natureza sensível de Salena fazia com que desejasse fugir à cólera e à inveja da francesa.
Todas as mulheres daquele grupo eram do tipo que sua mãe teria desaprovado e a quem teria tratado friamente. A mãe jamais havia criticado os amigos do marido, mas nas raras vezes que apareceram em sua casa, houve uma indisfarçável atmosfera de hostilidade. Nessas ocasiões, lady Cardenham ficava fria e quieta, muito diferente da sua maneira sorridente.
Comparando as mulheres da vila com sua mãe, Salena achava-as vulgares, ou talvez a palavra certa fosse ”levianas”. Certa vez, ouviu a mãe dizer, a respeito de certa senhora que não merecia a sua aprovação:
— Pode ser que os homens gostem dela, mas é uma leviana e, no que me diz respeito, espero nunca mais tornar a vê-la.
Salena tinha certeza de que teria dito a mesma coisa de todas as pessoas que conheceu em Monte Carlo e, principalmente, de madame Versonne.
Agora, talvez tivesse que conviver com esse tipo de mulher a vida inteira, o que seria muito desagradável.
Não que todas fossem maldosas e desdenhosas como a francesa. O mal estava na hipocrisia e na maneira como procuravam agarrar o príncipe e os outros homens, inclusive seu pai. Era como se representassem um papel. Mas, sob a dissimulação, Salena sentiu que elas estavam apenas agarrando tudo que pudessem, sem sentir afeição por ninguém.
— Não, papai. Eu detestaria que alguém, aqui na vila, ficasse sabendo do meu casamento. Mas… será que precisa ser tão cedo? Hoje à noite?
— De que adianta esperar? O príncipe providenciou tudo para que não haja tempo para perguntas curiosas.
— Você ficará comigo?
— Creio que isso é impossível. O príncipe está dizendo que as pessoas que não tiveram contato com o doente não correm perigo, contanto que saiam daqui imediatamente.
— Mas, papai, não posso ficar sozinha!
— Ficarei com você o máximo que puder. Partiremos em várias carruagens, e serei o último a sair daqui.
— Mas todo o mundo vai esperar que eu vá com você.
— O príncipe pensou nisso, também. Teoricamente, você foi convidada por colegas a se hospedar em outra vila e achei que seria bom para você ficar na companhia de gente moça.
Era justamente isso que ela gostaria: estar na companhia de gente jovem em vez de ficar sozinha com o repulsivo homem idoso que ia ser seu marido.
— Sinto muito, querida. Sei que foi um choque para você. Mas acredite em mim: se o príncipe não tivesse sugerido esse casamento, não tenho a mínima idéia do que poderia fazer para nos livrar da miséria!
Lorde Cardenham olhou para o armário aberto e viu as dezenas de vestidos que Yvette tinha feito para Salena. Novos vestidos chegavam todos os dias, e, com eles, caixas de camisolas enfeitadas de renda, saias de baixo, meias de seda, sapatos da cor dos vestidos e agasalhos enfeitados de pele.
A princípio, Salena tentou protestar, dizendo que não precisava de tanta coisa. Mas o pai ficou zangado e, então, ela procurou aceitar de bom-grado o que lhe davam a expressar timidamente sua gratidão.
Como se adivinhasse seus pensamentos, lorde Cardenham tirou do bolso um estojinho de jóia.
— Sua Alteza me pediu que lhe entregasse isso. Achou que você ia gostar e que diminuiria o choque por as coisas terem acontecido tão depressa.
Salena fez um esforço para abrir o estojo. Adivinhava o que conti¬nha: um elo da corrente que ia prendê-la ao homem que odiava.
Lentamente, com dedos trêmulos, abriu a caixinha. Dentro havia um anel com um enorme rubi cercado de brilhantes.
Era uma gravação antiga. Lorde Cardenham explicou:
— Pertence, creio eu, à coleção de família do príncipe. Posso lhe garantir uma coisa, Salena: ele a cobrirá de jóias, porque está completamente apaixonado por você.
A moça não respondeu. Olhava para o rubi, achando que tinha um brilho malévolo. E ela o detestou.
— Para dizer a verdade, o príncipe me falou que nunca na vida ficou tão encantado por uma mulher, como por você — continuou o pai. E, em tom mais baixo, como se falasse para si mesmo: — Creio que pagaria qualquer preço por você.
Salena olhou para o pai.
— Ele está me comprando. E sinto vergonha por já ter pago tanto.
— Não há motivo para ter vergonha. Você é bonita, jovem, pura. Qualquer homem ficaria orgulhoso por possuí-la. — Olhou para a filha e suspirou: — Se ao menos tivéssemos mais tempo!
Salena colocou o anel na penteadeira e fechou o estojo.
— Quando é que devo ficar pronta?
— Como o príncipe quer ter certeza de que todos tenham saído da vila, vocês só casarão depois do jantar. As senhoras precisam de tempo para fazer as malas, e o príncipe ainda tem que tomar algumas providências.
— Quais são elas?
— Acho que pretende levá-la em seu iate, amanhã. Sugeri que você gostaria de conhecer as ilhas gregas. São muito bonitas nesta época do ano.
Salena ergueu os olhos por um momento. Sempre tinha desejado conhecer as ilhas gregas. Mas, ao lembrar em companhia de quem estaria, tudo lhe pareceu sombrio.
— O príncipe vai lhe explicar tudo, ele mesmo, mas acho melhor você ficar aqui no quarto até a hora de jantar. Até lá, todos já terão partido.
— Papai, não vá até ser preciso. Por favor!
— Não, claro que não. Mas eu gostaria de tomar um drinque, e sugiro que você vá se sentar no balcão do quarto pegado, pois sei que está desocupado.
Abriu a porta para olhar o corredor, com ar de conspirador, depois fez a Salena sinal de que podia sair.
Foram para o outro quarto que dava para o jardim de frente para o mar. Era bem maior do que o que ela ocupava e havia ali uma sacada, com o toldo abaixado para manter o ambiente fresco.
Lorde Cardenham tocou a campainha e, quando um criado apareceu, ordenou que lhe trouxesse champanhe. Depois foi para a sacada. A filha o acompanhou.
— Uma bebida lhe fará bem, querida. Sei que isso foi um choque, mas não há nada como champanhe para fazer que as coisas não pareçam tão negras.
Salena não respondeu. Lutava contra o impulso de implorar mais uma vez, de pedir ao pai que a salvasse, que a deixasse fugir para se esconder.
Mas sabia que não podia arruiná-lo, só por egoísmo.

A mãe lhe havia dito muitas vezes:
— Os homens são como crianças, Salena, e temos que tomar conta deles, embora pensem que estão tomando conta de nós.
— Você toma conta de papai? — perguntou a menina, curiosa.
— De uma centena de modos, dos quais ele não tem a mínima idéia. Para dizer a verdade, querida, ele se veria metido em encrencas, se eu não estivesse aqui.
Foi exatamente o que aconteceu, pensou Salena. A mãe morreu e o pai, sozinho, não soube cuidar de si mesmo.

Preciso salvá-lo, pensou. Por mais duro que seja, preciso salvá-lo, por causa da mamãe.
Sabendo que o pai estava constrangido e talvez até infeliz, Salena segurou-lhe a mão.
— Tenho certeza de que tudo acabará bem.
— Estou rezando para que dê certo, por sua causa. Lembre-se, querida, de que terá seu próprio dinheiro, e jóias. É isso que todas as mulheres desejam e é o que todas deveriam ter.
— Onde é que vou morar?
De repente, teve medo de que o príncipe a levasse para a Rússia e que não visse mais o pai.
— Não sei quais os planos dele, mas suponho que, quando terminar a lua-de-mel, vocês irão para Paris,. Ele possui lá uma casa magnífica.
— Quero estar perto de você.
— Creio que isso pode ser arranjado. Sempre me dei bem com Serge. Para dizer a verdade, ele me considera um de seus melhores amigos.
— Então, pergunte a ele se você pode ir se juntar a nós o mais depressa possível?
— Precisarei de tato. Tenho a impressão de que o príncipe vai querer ter você só para ele.
Salena estremeceu.
— Quanto tempo a lua-de-mel geralmente dura, papai?
— Depende.
Salena achou que ia depender de ela divertir ou não o príncipe. Se a achasse enfadonha, ia querer voltar para a companhia dos amigos alegres.
— Talvez eu possa vê-lo depois de uma semana, papai.
— Espero que sim. Mas, naturalmente, você não poderá voltar para cá.
Salena imaginou que isso devia ser pelo fato de madame Versonne ainda ser hóspede do príncipe.
Achava estranho que a outra quisesse ficar ali depois do príncipe estar casado, mas não quis fazer muitas perguntas, pois o pai estava contrafeito.
— Tivemos tão pouco tempo juntos. Eu estava com esperança de podermos morar juntos e tomar conta de você… como mamãe fazia.
— Era o que eu também queria. Se não tivesse sido tão tolo, talvez fosse possível. Mas não ter dinheiro é o diabo! Não adianta fingir que a gente pode viver sem ele, Salena, porque não pode!
— Não, papai.
— E é porque o príncipe solucionou nossos problemas imediatos que vamos ter que organizar o futuro de maneira diferente do que eu pretendia.
— Que é que você pretendia, papai?
— Não adianta falar nisso agora. Você estará garantida, e, como eu disse, é a única coisa que importa.
Não pôde deixar de pensar que estaria bem pouco segura com o príncipe, fosse qual fosse sua posição financeira. Mas sabia que não adiantava falar nisso. Já estava tudo arranjado e, porque amava seu pai, podia apenas concordar e fingir que não estava morta de medo e enojada por saber que dali a algumas horas seria esposa do príncipe. Aí, então, ele a tocaria e a beijaria!
Olhou para o azul do Mediterrâneo e desejou poder nadar só e parar em direção ao horizonte enevoado. Todos os seus ideais e todos os seus sonhos a respeito de amor e casamento desapareciam.
Tinha sonhado em um dia encontrar um homem bonito como o pai, por quem se apaixonaria e que também se apaixonaria por ela. Teria sido maravilhoso, e eles seriam felizes para sempre, como nos contos de fadas.
Em vez disso…
Sentiu aumentar dentro do peito a dor que a atormentava desde que o pai lhe disse que deveria casar com o príncipe, apunhalando-a com um sofrimento físico que parecia piorar a cada momento que passava.
O champanhe chegou e o pai fez com que Salena bebesse um pouco; mas, em vez de afastar seus receios, a bebida pareceu multiplicá-los.
Para onde quer que olhasse, via os olhos do príncipe, com uma expressão aterradora.
Finalmente, voltou para o quarto e examinou de novo o anel de rubi. Achou ”que também ele tinha a mesma aparência assustadora…
O pai mostrou-se quase despreocupado, quando se despediu, mas a moça sabia que era porque estava com medo de que ela fizesse uma cena.
— Cuide-se bem, boneca. Lembre que é desagradável e degradante viver sem dinheiro. Vestidos bonitos e jóias cintilantes compensam muita coisa.
Salena compreendeu que ele se referia aos sentimentos dela pelo noivo.
Depois que o pai saiu, fechando a porta, teve que morder o lábio para não gritar, pedindo-lhe que voltasse.
Foi preciso um controle enorme para impedir que abrisse a porta e dissesse que, afinal de contas, aquilo era impossível; que estava pronta a fazer qualquer coisa, ir onde ele quisesse, mas que não podia casar com um velho nojento.
Em vez disso, correu para a cama, atirou-se nela e enterrou a cabeça no travesseiro.
Com um esforço tremendo, conseguiu não chorar, embora seus olhos ardessem de lágrimas contidas. Depois, ficou à escuta, querendo distinguir o som da última carruagem a partir, que levaria o pai para longe dela…
Tinha a impressão de que ele estaria dizendo a si mesmo que nada importava, a não ser o fato de que a filha teria duas mil libras por ano, pelo resto da vida.
Por que iria o pai se importar, se o príncipe era tão rico e ela ia ser sua esposa?
Era compreensível, pensou Salena, que o pai a estivesse protegendo do dia em que o marido se cansasse e talvez não se mostrasse tão generoso.
Para ela, era difícil não esperar e até mesmo não rezar para que tal dia chegasse depressa.
— Talvez, afinal de contas, ele não me queira e prefira casar com alguém como madame Versonne — disse a si mesma.
Depois soube que estava apenas sonhando, tentando se enganar com histórias encantadas, como fazia desde menina, quando imaginava que estava tomando parte em aventuras estranhas e excitantes. Sempre uma fada boa ou um príncipe encantado a salvavam, no último momento, do perigo dos gnomos, do dragão ou do gigante malvado.
Mas, dessa vez, não havia salvação.
Uma empregada entrou no quarto, dizendo que o jantar seria às nove horas e que ia preparar o banho de Salena.
Dali a pouco, chegou uma caixa de madame Yvette, com um vestido de noiva. Era ainda mais bonito do que todos os outros, mas Salena sentiu como se fosse uma mortalha.
Na caixa havia também um véu de renda e uma grinalda de flores de laranjeira artificiais.
Em seus sonhos, sempre usava uma grinalda de flores naturais.
Mas, nos sonhos, seu casamento era por amor. Aquele era errado e falso! Tão falso como os botões de laranjeira que pareciam vulgares e vistosos demais, comparados com as flores do jardim lá fora.
Deixou que a empregada a vestisse, quase como se fosse uma boneca sem sentimentos.
— Devo colocar o véu agora? — perguntou, achando que sua voz tinha um som estranho, até mesmo para ela.
— Acho que Sua Alteza espera isso, m’mselle.
A empregada estava excitada com a idéia de vestir uma noiva e tagarelou o tempo todo. Mas Salena tinha a impressão de que sua voz vinha de muito longe.
— No princípio do ano, antes de eu vir trabalhar para Sua Alteza, minha irmã casou. Não foi uma cerimônia grandiosa, mas tão feliz! Todo o pessoal da redondeza compareceu à igreja e, como não podíamos receber, todos contribuíram para a festa, i Rimos, cantamos, dançamos. Foi o dia mais feliz de minha vida.
E este é o meu mais infeliz, foi o que Salena teve vontade de dizer.
Em vez disso, ficou se olhando no espelho, enquanto a criada arrumava o véu em seus bonitos cabelos loiros, fixando-o com a grinalda.
— M’mselle est trés belle! Salena levantou.
— Devem ser quase nove horas. Vou descer. Ia sair do quarto, quando a empregada disse:
— Um momento, mmselle. Esqueceu o anel de noivado! Sua Alteza ficará desapontado se a senhora não o usar no jantar.
— Sim, claro — disse, sem grande entusiasmo. Deixou que a empregada colocasse o anel em seu dedo.
Achou que, contra a brancura do vestido, parecia uma gota de sangue. Desceu rapidamente as escadas.
O príncipe a esperava no salão e Salena percebeu que havia uma profusão de flores, todas brancas.
Ele estava vestido a rigor, e dois enormes brilhantes cintilavam no peito de sua camisa.
Fitou-a por um longo momento; depois, quando a moça abaixou os olhos, adiantou-se e pegou-lhe a mão.
— Estive esperando por este momento.
Beijou as costas da mão da noiva, virando-a depois e beijando a palma.
Havia naqueles lábios qualquer coisa dura e ávida, algo que fez com que Salena desejasse retirar a mão.
— Preciso me dominar, pensou. Preciso agir como papai gostaria que eu agisse.
O príncipe devia ter percebido seu medo, pois estava trêmula.
Salena percebeu que não iam jantar na sala enorme que tinham usado desde sua chegada à vila e, sim, na sala onde costumava tomar o café da manhã. Só que agora, estava repleta de flores de um branco imaculado.
Na mesa havia orquídeas brancas, e o perfume dos lírios era quase insuportável.
— Nossa primeira refeição a sós. Não sei como lhe dizer, minha adorável Salena, como achei maçantes as pessoas que nos mantinham separados.
Se ele tinha estado aborrecido, certamente não demonstrou, pensou a moça, lembrando das conversas e dos risos que o tinham cercado em todos aqueles dias.
— Pedi a seu pai que providenciasse para que nosso casamento fosse secreto, porque achei que não íamos querer ouvir os parabéns de todo mundo, preferindo ficar a sós.
Fez uma pausa e continuou:
— Não sei como lhe dizer como queria conversar com você.
— Sobre… o quê?
— Só pode haver um assunto: o amor, naturalmente!
A maneira como disse isso fez Salena tomar, apressada, um gole de champanhe, como se achasse que a fortaleceria.
Ele falava em inglês e, como os empregados eram franceses, a moça esperou que não entendessem. Mas não havia dúvida quanto à nota apaixonada da voz e à expressão nos olhos do príncipe.
— Apaixonei-me por você assim que a vi, e disse a mim mesmo que seria minha. — Seus olhos estavam fixos no rosto dela. — Você era tão jovem, tão inocente, tão desejável, mas jurei que ninguém e nada se colocaria entre nós. E, deixe-me dizer-lhe uma coisa, Salena: sempre consigo o que quero.
Havia agora um fogo ardente naqueles olhos e a voz tinha um tom profundo, que pareceu a ela quase que o rosnado de um animal.
— Jamais conheci um russo, antes. Espero que me fale da Rússia e de seu lar.
— A Rússia está longe, e nós estamos perto um do outro. Isso é mais importante, agora.
— Mas é claro que estou interessada em seu país e, naturalmente, em seu povo.
Salena hesitou por um momento e continuou:
— Ouvi dizer que há muito sofrimento na Rússia. E pobreza.
— É este o tipo de história ridícula espalhada por pessoas que não conhecem o nosso grande país. Talvez, um dia, você possa ver por si mesma. Por enquanto, temos coisas mais interessantes para conversar.
Salena sentiu alívio, quando ele disse ”talvez”. Significava que não pretendia levá-la para a Rússia; pelo menos, no momento. Significava também que ela não perderia contato com o pai, e já era um consolo saber que ele não ficaria muito distante.
Salena tinha visto o Hotel de Paris, quando visitou o cassino, e sabia que o pai ia gostar de fazer o papel de anfitrião, quando não era ele que pagava a conta.
— Em que está pensando? — perguntou o príncipe.
— Em papai.
— Não precisa se preocupar com ele. Espero que seu pai lhe tenha dito que cuidei dele.
— O senhor foi muito bom.
— Acha mesmo? E também fui bom para você?
— Muito bom. Estou muito… grata. Ainda não lhe agradeci o anel.
Estendeu a mão ao dizer isso, e o rubi brilhou mais ainda.
À luz dos candelabros, parecia o ”olho maligno” sobre o qual tinha lido em livros a respeito do Oriente, pensou Salena, absurdamente.
— Tenho outras jóias para lhe dar. Colares que prenderei à volta do seu pescoço, broches que colocarei no vestido, entre seus seios macios.
Salena sentiu um calafrio de horror percorrer-lhe a espinha.
— O senhor é muito… bom — murmurou, novamente.
— É difícil para mim ser outra coisa com você. Mas também precisa ser boa para mim.
— Sim… é claro.
— Vai ser muito excitante ensinar-lhe o amor. Para dizer a verdade, será a coisa mais excitante dos últimos tempos.
A refeição pareceu interminável a Salena, mas, finalmente, acabou. Então, o príncipe fez uma pergunta brusca a um dos criados.
— Ele está esperando, Alteza — respondeu o homem.
O príncipe ofereceu o braço a Salena, que aceitou como se fosse para a guilhotina. Pensou que era assim que deviam ter se sentido os aristocratas que iam ser executados na Place de la Revolution, quando não havia mais esperança de escapar.
Mas tinham morrido com dignidade e orgulho.
Salena ergueu o queixo e deixou-se conduzir pelo saguão e ao longo do corredor que ela sabia que levava aos aposentos particulares do dono da casa.
Ao contrário dos hóspedes, o príncipe dormia no mesmo andar do salão, e o pai de Salena lhe havia dito que os aposentos davam para o terraço.
No fim do corredor, um empregado abriu uma porta. Entraram, e depois o príncipe fez Salena passar por outra porta.
A moça viu-se num quarto preparado como uma capela. Havia sete lâmpadas de prata que ela sabia que faziam parte do ritual da igreja ortodoxa russa. Diante do altar, estava um padre de barba comprida, com um enorme crucifixo sobre as vestes pretas.
A capela estava iluminada apenas por velas. Havia no ar um pesado cheiro de incenso e via-se também uma profusão de flores, todas brancas.
O príncipe e Salena se ajoelharam em duas almofadas de cetim branco. O padre começou o que pareceu uma longa oração, mas, como falava em russo, ela não tinha noção do que dizia. Quando terminou a oração, o príncipe pegou a mão da noiva e tirou o anel de rubi para colocar em seu lugar uma aliança de ouro.
Depois, o padre colocou a mão sobre as dos noivos, abençoando-os. O príncipe levantou.
— Agora, estamos casados, Salena — disse, levando-a embora, com impaciência.
Andaram pelo corredor, e ele abriu uma porta que dava para uma saleta espaçosa e bonita.
— Você agora é minha mulher. Finalmente, posso lhe falar de meu amor, sem sermos interrompidos.
— Posso primeiro ver… o seu quarto? Nunca… estive lá. Percebendo que ela queria escapar, o marido disse, com um sorriso:
— Deixe-me mostrar-lhe o seu quarto. Neste momento, é mais importante para nós do que qualquer outro.
Como nada tinha a dizer, Salena acompanhou-o, passando por outra porta e entrando num aposento grande, com largas portas-janelas que davam para o terraço.
Podia ver, lá fora, no jardim, a fonte brilhando através das luzes habilmente escondidas no meio das flores.
As estrelas brilhavam no céu, mas ela achou difícil olhar para outra coisa além da cama grande que, em sua imaginação, parecia encher o quarto.
Tinha um dossel de seda, a parte de cima do lençol estava virada, e a moça não ousava pensar no que isso significava.
— Para que esperar mais? — disse o príncipe. — Vou tocar a campainha para chamar sua criada. Depois, quando você já estiver na cama, voltarei e ficaremos a sós.
Tocou a campainha. Como se estivesse à espera da chamada, apareceu a empregada que tinha cuidado de Salena desde sua chegada à vila.
O príncipe beijou a mão da noiva, dizendo:
— Não me faça esperar muito, minha bela.
Voltou para a saleta, os brilhantes da camisa reluzindo com o movimento.
— Sua Alteza está impaciente — disse a empregada.
Tirou a grinalda e o véu de Salena, abrindo-lhe o vestido nas costas. Ela mal notou o que acontecia, até ver que estava usando uma camisola tão complicada que mais parecia um vestido de baile. Confeccionada com a mais delicada cambraia, tinha aplicações de renda valenciana verdadeira. A mesma renda, só que mais larga, enfeitava a barra e os punhos.
— Deixe-me escovar os cabelos de Vossa Alteza — disse a criada.
Salena dirigiu-se para a penteadeira, como se não conseguisse mais pensar e devesse fazer maquinalmente o que dela era esperado.
Quando sentou, viu uma carta apoiada em suas escovas e reconheceu a letra do pai.
Abriu e leu:
”Minha querida,
”Escrevo-lhe apenas algumas linhas para dizer o quanto a amo e o quanto desejo a sua felicidade. Mande-me um bilhete quando puder dizer que me perdoa e que ainda gosta de seu pai muito afetuoso e penitente.
Cardenham”.

Salena leu o bilhete duas vezes, sentindo um aperto no coração. Achou que compreendia o que o pai estava tentando dizer e como ele estava realmente preocupado, porque, para salvar ambos, ela teria que fazer uma coisa que detestava. Levantou e disse à empregada:
— Espere um pouco. Vou escrever um bilhete para meu pai. Talvez não seja muito tarde para alguém levá-lo a Monte Carlo.
— Sim, é claro, Alteza. Será muito fácil um dos empregados ir levar.
Num canto do quarto havia uma escrivaninha. Era uma peça bonita, com incrustações. Salena tentou abri-la.
— Está fechada — disse à empregada. — Preciso de papel de carta.
— Deve haver uma chave numa das gavetas. Se não houver, vou pedir papel à governanta.
— Deixe-me olhar primeiro.
Abriu uma das gavetinhas e descobriu a chave num dos cantos.
Abriu a escrivaninha e encontrou dentro um mata-borrão, papel de carta e envelopes.
Puxando o mata-borrão, viu duas fotografias emolduradas, encostadas no tinteiro. Pegou uma e examinou.
Era o retrato de uma mulher atraente, de vestido de noite, usando jóias magníficas.
Salena ficou imaginando quem seria, depois viu a dedicatória, em francês:
”Para Serge, de sua afetuosa esposa, Olga”.
Ficou olhando para o retrato, atônita.
Ninguém havia lhe contado que o príncipe era viúvo. Parecia estranho o pai não ter dito nada.
Havia outro retrato e, sem refletir muito, ela o pegou.
Era a mesma mulher; dessa vez, num grupo, com quatro crianças, a mais velha parecendo ter dezesseis anos.
A dedicatória era na mesma letra.
”Ao querido Serge, de Olga e de sua família afetuosa. Natal, 1902”
Salena ficou olhando o retrato durante o que pareceu um longo tempo. Depois, lentamente, como se ela tateasse num nevoeiro, a explicação surgiu como uma voz longínqua. O mistério sobre o casamento, a insistência do pai em que ela estaria garantida, acontecesse o que acontecesse no futuro, a maneira com que tinham impedido que falasse sobre o casamento a alguém que pudesse lhe revelar a verdade…
Lembrou vagamente de ter ouvido dizer que os aristocratas russos que vinham a Monte Carlo deixavam as esposas em casa, para poderem se divertir como solteiros. Lembrou também, de repente, que, na cerimônia dos casamentos russos, era costume segurarem coroas acima das cabeças dos noivos. Isso não tinha acontecido no casamento daquela noite, e desconfiou de que o padre era um impostor, ou que a cerimônia que tinha realizado não era um casamento verdadeiro.
Sem poder fazer um movimento, ficou olhando para o retrato das quatro crianças e da mulher de rosto atraente. Atrás dela, a empregada perguntou, assustada:
— Que aconteceu,

Alteza? Alguma coisa a perturbou?
— Estou… bem — respondeu Salena, após um momento. — Pode ir.
— Mas, Alteza, os seus cabelos!
— Faça o favor de sair!
— Ficarei esperando que me chame, Alteza.
Salena esperou que a empregada fechasse a porta e levantou, ainda olhando para o retrato.
Poderia ter sido muito tempo, poderiam ter sido apenas segundos, antes que a porta se abrisse e o príncipe entrasse no quarto.
Usava um roupão fino, em estilo oriental, muito em moda no sul da França. Sua elegância havia desaparecido. Era apenas um homem de meia-idade, pesadão. Só os olhos eram os mesmos, e o ardor da paixão neles surgiu, quando notaram o corpo de Salena, coberto apenas pela camisola transparente.
— Está pronta para mim, minha bela esposa?
— Sim, estou pronta para você. Quer fazer o favor de explicar isto?
Mostrou-lhe a fotografia e viu o príncipe ter um sobressalto. Depois, uma expressão taciturna substituiu a excitação.
— Onde é que encontrou isso? Quem lhe deu?
— Ninguém. Encontrei na escrivaninha.
— Os idiotas! Os imbecis! — Arrancou o retrato das mãos de Salena e atirou-o num canto. — Isso não nos diz respeito!
— Diz respeito a mim. Não estou casada com você. Sabe que não estou.
— Que importância tem isso? Eu a amo e vou ensiná-la a me amar.
— Acha realmente que eu permitiria que tocasse em mim, agora que sei que estava apenas fingindo tornar-me sua esposa?
— Já lhe disse que isso não tem importância. Vou tomar conta de você. Terá o dinheiro que quiser, mais jóias do que poderá usar…
— Não! Você tem uma esposa. Tem filhos. É pecado e é errado dizer tais coisas a mim, quando pertence a eles.
— Pertenço a você e você me pertence. Adiantou-se para Salena e ela gritou:
— Não me toque! Vou embora, agora! Vou procurar papai.
— Acha que seu pai quer saber de você? Ele está muito satisfeito com o que lhe paguei. E você também logo ficará satisfeita, minha pombinha.
— Não, não!
Tentou fugir, mas o homem a agarrou e puxou-a para mais perto. Lutou freneticamente. Era pequena e delicada, mas, mesmo assim, era impossível ao príncipe segurá-la. Salena o estava machucando e ele a soltou.
— Vejo que precisa ser tratada como uma camponesa russa. Saberá, então, quem é o senhor.
Virou as costas e dirigiu-se para a saleta.
Salena estava tão ofegante, tão grande tinha sido o esforço da luta, que por um momento não percebeu que ele a deixara.
Olhou, incrédula, para o outro lado do quarto; mas quando se dirigia para a porta que dava para o corredor, ele voltou.
Os lábios do homem tinham um sorriso cruel, sua expressão era tão ameaçadora que ela ficou paralisada. Depois, viu que tinha na mão um chicote comprido e fino.
Olhou para ele, em silêncio, vendo-o se aproximar, mas quando levantou o braço foi que Salena gritou e tentou fugir.
Tarde demais!
O príncipe atirou-a na cama e, no momento seguinte, sentiu o chicote ferir-lhe os ombros. Ela gritou, e, depois de ter sido atingida três vezes, conseguiu levantar e escapar.
Ele agarrou as costas da camisola e um pedaço do tecido ficou em suas mãos, enquanto Salena corria para a porta que dava para a saleta. Tropeçou, e só não caiu porque conseguiu se agarrar à escrivaninha. Sentiu então qualquer coisa dura sob os dedos. Mas, antes que percebesse o que era, o príncipe a agarrou, carregou-a até o quarto, atirando-a de novo na cama, de bruços.
O rosto de Salena estava enterrado no travesseiro e, quando ela procurou respirar, o chicote novamente golpeou suas costas. O príncipe batia sem piedade, cada golpe queimando a pele delicada, até quase reduzir a vítima à inconsciência.
Depois, quando os gritos dela cessaram, ele a virou, com um grunhido de satisfação, respirando pesadamente.
Estava completamente desamparada, quase inconsciente, na cama, de olhos fechados.
Na mão direita, escondida entre as dobras da camisola, segurava a faca de cortar papel, que, sem querer, tinha apanhado na escrivaninha. Com a dor, Salena apertava o cabo com força e, quando o príncipe a virou de costas, a ponta da lâmina ficou para cima.
O homem não viu a faca.
Com uma exclamação de triunfo, atirou-se sobre ela, e a faca furou-o no estômago.
Ele soltou um grito rouco, saindo de cima dela e agarrando a faca.
— Você me matou! Chame um médico! Salve-me… Oh, Deus, salve-me! Salena sentou na cama e viu o príncipe seminu a seu lado, agarrando o cabo da faca incrustado de pedrarias, o sangue jorrando do ferimento e manchando o lençol.
— Você me matou! Você… me matou! Socorro! Socorro!
O último grito foi sufocado. Diante dos olhos assustados de Salena, o homem estava morrendo.
Lentamente, como se não compreendesse que estava livre para agir, ela saiu da cama.
Com um grito apavorado, saiu para o terraço, pela porta-janela.
Viu a fonte brilhando lá embaixo e, sem saber o que fazia, desceu os degraus que levavam ao jardim.
Seus pés descalços não faziam nenhum som no mármore branco. Atravessou o gramado, passando pela fonte e correndo por entre as árvores, até chegar à ponta do promontório.
Hesitou apenas um momento, olhando para as ondas, lá embaixo, que batiam nas rochas cinzentas.
Atirou-se na água, sentiu o choque de espuma fria.
Depois começou a nadar desesperadamente, loucamente, mar adentro…

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