CAPÍTULO IV



Descendo na direção do mar, ao entardecer, Fenny desejou ter uma máquina para fazer uma foto daquela maravilha.
O helicóptero sobrevoava a ilha, aproximando-se do pla¬nalto que ficava entre os pomares e o próprio castelo.
— Estamos em casa! — Lion disse, num tom de voz des¬conhecido para Fenny, cheio de vida e com uma alegria ardente. — Lar!
Fenny olhou para Lion e viu que sorria, debochado. Sus¬tentou seu olhar, com orgulho. Não devia mostrar àquele homem, seu marido, a facilidade que ele possuía para des¬truir as suas ilusões. A mesma facilidade com que as hélices do helicóptero cortavam o ar, antes de pousar.
Agora, as estrelas brilhavam no céu de um azul mara¬vilhoso. Pensativa, Fenny calculou a quantos quilómetros estariam de Mon Repos, a casa de seu tio, com aquele gra¬mado sedoso e muito bem cuidado, os canteiros de flores tão bem distribuídos.
Petaloudes... a ilha grega selvagem, um pedaço de rocha habitado pelos irmãos Mavrakis. Altos penhascos e planta¬ções aromáticas, exalando um perfume agradável após um longo dia de calor intenso. O canto das cigarras na escuridão.
A casa, branca como o templo do soi, ficava entre oliveiras, ciprestes muito altos e laranjais. As paredes eram como glacê duro, as janelas curvas estavam dispostas no fundo das pedras. Tinha a mesma grandeza de seu dono, e luzes coloridas brilhavam através das vidraças.
— Bem-vinda à Galazia Kastro.
Foi Zonar quem acompanhou Fenny ao Castelo Azul, e o nome a intrigou, até que percebeu que a fortaleza dos Mavrakis se erguia como um ninho de águia bem acima do mar. Tanto que, de qualquer ângulo, a água podia ser vista, ondulada e murmurante, quando o sol brilhava ou mesmo quando estava escuro, só com o brilho da noite.
Gim com gelo e tônica esperava pelos irmãos, numa bandeja com copos de cristal, servido por um criado que usava uma jaqueta branca impecável. Para Fenny, havia uma bebida ge¬lada de cor semelhante à de suco de laranja e que tinha sabor de mistura de frutas e vinho. Estava simplesmente deliciosa.
Uma comprida e larga escada atravessava o hall, um imenso mosaico de azulejos lustrosos formando um antigo padrão oriental. Fenny foi levada pela escada por uma mu¬lher usando um vestido escuro. Levada para longe dos ho¬mens, para o santuário de um apartamento onde o silêncio era uma graça divina depois de um dia cansativo, de uma viagem longa e cheia de surpresas.
A mulher olhou a esposa do patrão com curiosos olhos escuros num rosto queimado pelo sol. Não falava inglês, mas murmurou algumas palavras que soaram bem amigá¬veis a Fenny. Ela sorriu e tentou dizer uma ou duas palavras gregas que aprendera para a sua viagem de férias a Creta.
Sua tentativa foi inútil. A mulher balançou a cabeça, e então surpreendeu Fenny ao pegar sua mão e virar a palma para cima. Por alguns momentos, observou a palma da mão de Fenny, que parecia ainda mais pálida junto à pele morena da governanta. Depois, olhou para os olhos de Fenny e le¬vantou um dedo, mas o que disse foi um mistério:
— Den katalaveno — Fenny tentou dizer, em grego sofrível, já que não tinha entendido o que a outra vira em sua mão.
A mulher passou a mão em seu rosto e cabelos e repetiu o gesto, mostrando um dedo. De repente, Fenny compreendeu. Ela era uma noiva e, para os gregos, uma mulher recém-casada tem um único objetivo na vida: produzir para o marido, o mais rápido possível, um filho, que prove sua virilidade.
Uma criança! A mulher de tipo cigano vira na palma de sua mão um único nascimento... Oh, mas devia ser uma simples superstição boba. Como é que alguém podia saber o que aconteceria no futuro?
Fenny sorriu e balançou a cabeça. Havia insistência nos olhos gregos, mas depois a mulher indicou as malas e os grandes armários, querendo dizer que iria desfazer as malas para a senhora. Fenny retirou as chaves da bolsa e abriu as malas. Uma vez mais tentou dizer algumas palavras em grego, perguntando à mulher o nome dela.
— Kassandra — a outra respondeu, e Fenny apenas sor¬riu do absurdo absoluto de tudo aquilo. Teria que acreditar que aquela mulher era uma profetisa dos tempos modernos? Uma mulher que tinha o poder de dizer-lhe que ia ter apenas um filho?
As ilhas eram lugares estranhos e misteriosos, e as pessoas que viviam lá acreditavam em todos os tipos de magia, mas ela viera da Inglaterra e tinha que manter os seus próprios pontos de vista. Não ousava acreditar que Kassandra pudesse prever o futuro, porque, nesse caso, veria também outras coisas ainda mais perturbadoras: a falta de amor e, finalmente, sua partida daquela casa branca no alto do mar de Afrodite.
Fez com que a mulher entendesse que desejava ficar sozinha e a porta da suíte foi fechada atrás daquela figura escura, com certeza uma viúva, porque as gregas não cos¬tumavam tirar o luto de seus maridos, querendo mostrar a todos que o sol de sua vida tinha perdido o brilho. Então a jovem e indesejável senhora do Castelo Azul começou a explorar o amplo e lindo quarto que ficava no alto de uma das torres da casa.
Olhou em redor e viu biombos feitos de madeira tão bem entalhada que parecia renda escura. A colcha da grande cama era bordada com fios de seda. Havia muitos tapetes persas no chão. Tudo lembrava um harém; nunca um ninho de amor. Imaginou que Lion devia achar muito divertida conservá-la naquele apartamento, onde tudo era ostentação e riqueza. Aquele sutil aroma do Oriente com certeza indicava que ela seria considerada concubina e não uma verdadeira esposa.
Os aposentos eram ligados por largos arcos com lindas portas grossas de ferro. O quarto ao lado tinha o teto pintado à mão, janelas de madeira e uma grande cadeira de palha com assento acolchoado. Era um quarto fascinante, com uma tocha acesa, iluminando muito pouco; havia também uma lareira. Num outro aposento, encontrou um baú pintado de preto e branco com figuras estranhas de deuses antigos e cabras.
Pegou uma uva do cacho que estava numa fruteira de prata. Ao lado, havia um jarro antigo, provavelmente turco. Serviu-se de um pouco mais daquele refresco de frutas com vinho com o qual fora recebida na casa, da maneira tradicional grega.
O que teriam colocado naquela bebida, para que se sen¬tisse tão calma? Aquilo fazia um efeito incrível! Não estava nem um pouco preocupada ou cansada. Poderia esperar tranquilamente por Lion, sentada naquela cadeira macia daquele quarto que ia dividir com ele.
Respirou fundo o aroma da noite que entrava pelas ja¬nelas. Era um cheiro de terra, agradável, vital, poderoso. Vinha dos pátios de oliveiras. Os galhos das árvores estavam pesados com tantos frutos, quase se quebrando. Os limoeiros também estavam carregados, desprendendo um aroma de¬licioso, que impregnava toda a casa.
O Castelo Azul poderia ter sido o céu na terra para ela, mas, em vez disso, seria o paraíso no qual seria castigada e do qual a baniriam por ter comido do fruto proibido.
Merecia tudo o que acontecesse: tinha mentido e nunca poderia confessar a Lion que fizera aquelas coisas por amá-lo demais. Ele zombaria de seu amor. Era um homem forjado numa terra onde, muito tempo atrás, mulheres tinham sido apedrejadas em praça pública por crimes bem menores do que o que ela cometera.
Já havia percebido nele aquela raiva primitiva. Por exemplo, o momento, no helicóptero, quando exigiu que comesse do bolo que ele tanto queria ter repartido com Penela, Aqueles pequenos sinos de prata verdadeira que encimavam o bolo denotavam prazer, alegria, mas agora seriam usados para chamar a escrava.
Ela não tinha escolha. O pior era que, agora que estava no Castelo Azul, sabia quanto desejava ficar lá. O lugar já conseguira conquistar o seu coração. Tinha um fascínio de passado. Por mais que se esforçasse para não pensar, sen¬tia-se como uma mulher arrebatada de casa para propor¬cionar divertimento ao paxá.
No entanto, mesmo que ele a tratasse como outra propriedade qualquer, ela não trocaria nenhuma das horas tris¬tes que a esperavam por aqueles dias e noites vazios de sua vida na Inglaterra.
Sentiu um arrepio pelo corpo todo. Seus sentidos deviam estar muito aguçados, pois pressentiu a presença de Lion mesmo antes de vê-lo, parado à porta de ferro. À luz suave, parecia mais alto e mais bonito.
Quando ele entrou no quarto, a fumaça do cigarro turco chegou até ela.
— O castelo já foi propriedade de um paxá turco, sabia? Esta é uma parte do velho harém. Telegrafei para que os quartos fossem preparados para você. Gosta deles?
— Achei-os fascinantes. O que há por trás daquela ta¬peçaria de seda?
Ele foi até lá, andando daquela forma macia e silenciosa de uma fera na selva. Comprimiu os olhos saltados de um cavalo selvagem, esculpido na madeira, e então uma porta se abriu. No fundo, havia luzes e mobílias de estilo colonial, que provavelmente estavam lá desde a invasão dos árabes. Era uma sala enorme. Fenny se perguntava como um ho¬mem podia possuir tantas coisas maravilhosas, e logo aquele homem, que parecia não se interessar por nada.
— Esta é a porta secreta do apartamento do paxá — ele disse, com um tom divertido. — Aqui vivia a sua escrava favorita. Imagino que o segredo aumentava o prazer de sua aventura. Os homens daqueles tempos consideravam as mu¬lheres como nada mais que uma forma de divertimento, e a garota ficava trancada como um passarinho na gaiola. Se ela se atrevesse a entrar nos aposentos do paxá pela porta secreta, seria severamente punida. As portas externas do harém eram sempre mantidas trancadas por uma grande chave que ficava em poder do eunuco que as vigiava.
— Nunca permitiam que tomasse um pouco de ar, que saísse aos jardins?
— Claro que sim, mas só na companhia do eunuco, e tam¬bém ia ao moussandra particular. Venha, vou lhe mostrar.
Fenny levantou-se da cadeira e seguiu-o através das por¬tas de madeira. Estava encantada com tudo aquilo, nunca imaginara que pudesse existir um lugar como aquele, a não ser em sonhos. O brilho das estrelas encheu o lugar e ela se viu numa varanda que dava frente para a plantação de limões e para o mar. A voz de Lion veio despertá-la.
— Moussandra — ele repetiu. — Um pequeno quarto, exclusivo para a ocupante do harém, não importando se ela ficasse uma noite... ou um ano.
As mãos de Fenny agarraram as grades de ferro e seus dedos esmagaram algumas florezinhas amarelas que cresciam por elas. As batidas de seu coração se aceleraram quando Lion foi para trás dela, tão alto, tão bonito e forte, e tão inatingível para seu amor, aquele amor que queimava suas veias.
A luz fraca das estrelas, só conseguia avistar os troncos escuros das árvores. Centenas de vagalumes tremeluziam no ar, voando alto e baixo, e Fenny continuou muda, encostada no parapeito de ferro, sentindo o poderoso e energético corpo de Lion tão próximo. Ouviu os bichos noturnos por entre as árvores altas, depois, uma vacilante chama vermelha uniu-se à dos vagalumes, quando Lion atirou o cigarro lá embaixo.
Ele colocou os braços ao redor de Fenny e virou-a.
— Você devia se sentir à vontade neste apartamento, kyria. Esta casa também lhe pertence. Além do mais, este lugar parece muito adequado a você, não concorda?
— Sendo esposa de um grego, devo sempre concordar com o meu marido?
— Esposa! Marido! No nosso caso, essas palavras não significam nada.
— O paxá com a sua escrava — ela disse. — Mas fique certo de que não pretendo me arrastar de joelhos para você. Teria que me atirar no chão para me manter nesse nível, tão baixa como já acha que sou.
— Tenho todos os direitos do mundo de pensar que você... Ora, admita: você se rebaixou para vencer, não foi?
— Duvido muito que alguém possa vencê-lo, Lion... muito menos uma mulher.
— Exato. — Deu uma risada e segurou-a com força pelo pescoço claro. Virou seu rosto para o lado das estrelas e ob¬servou suas feições. — Zonar disse que você é linda, e eu nem notei. Isso deve significar muito para você, não é mesmo?
— Você estava muito ocupado com Pen... —Fenny engoliu em seco, porque, de repente, pareceu-lhe terrivelmente di¬fícil dizer o nome de Penela. — Com minha prima. Por que iria notar a presença do patinho feio da família?
— Tem razão. — Acariciou a pele suave do pescoço de Fenny. — Como suas pulsações estão rápidas! Sente assim tanto medo de que eu a toque?
— Senti bem mais, na vez em que ameaçou quebrar o meu pescoço. Você não faz ameaças que não cumpre, não é mesmo?
— Geralmente, não. Mas sou um homem que muito cedo aprendeu o valor das vantagens. Não me desfaço de uma coisa, até tirar todo proveito dela. Além do mais, minha querida, achei-a muito mais divertida do que esperava. Por outro lado, tenho algo a resolver com você ainda, a respeito de certo pacto que fizemos. Se por acaso eu quebrar este seu adorável pescoço, estarei matando o cisne que deverá pôr um ovo de ouro para mim.
— Como você é encantador! Por falar em nossa maravi¬lhosa vida conjugal, nós vamos jantar com a sua família?
— Somos um casal em lua-de-mel, meu amor, e para o povo grego isso significa apenas uma coisa: que queremos ficar sozi¬nhos. Portanto, não vamos descer para jantar com a minha fa¬mília. A comida será servida aqui. Isto é, quando eu tocar a campainha, avisando que queremos jantar. Mas neste exato mo¬mento meu apetite é por você, minha esposa, e não preciso tocar nenhum sino para você vir: tenho apenas que estalar os dedos.
Deu uma risada cínica e seus braços de repente torna¬ram-se tão fortes como aço, esmagando o corpo de Fenny contra o seu, sem se importar se a machucava. Beijou-a com raiva e desejo.
Depois, com grande facilidade, levantou-a nos braços e levou-a da moussandra para o quarto onde havia aquele divã, à luz de um abajur.
Tudo de que Fenny tinha consciência eram as mãos e a boca de Lion, a presença dele a seu lado na cama. Seu coração batia descompassadamente e ela não conseguia pensar em mais nada, a não ser naquele momento em que o sentia tão próximo. Deixou-se invadir por aquela onda de prazer.
O roupão se abriu um pouco, mostrando seu corpo jovem, sua pele branca e macia, suas curvas bem-feitas. Imedia¬tamente Fenny o fechou.
Estava com as pernas cruzadas por baixo da mesa, sen¬tada diante de Lion. O aroma do café confundiu-se com o da carne preparada com ervas, e Fenny comeu com apetite.
— Estranho — murmurou Lion. — Um homem e uma mulher fazem amor e mais tarde a mulher volta a ser uma pequena garota novamente, faminta como uma criança num piquenique, de olhar inocente como se estivesse num con¬vento sob a proteção de uma boa freira. Mais do que estra¬nho... realmente, incrível. Quem é que acreditaria ao olhar para você, kyria, que tem tanta resistência para o amor e tanto calor nesse corpo claro e inglês? Pensei que as inglesas fossem frias, com água nas veias.
— Com certeza você não se refere a Penela — Fenny comentou, partindo um tomate deliciosamente recheado com carne e arroz.
— Nunca tive momentos tão íntimos com Penela como tenho com você — ele respondeu, e o coração dela disparou: era óbvio que não estava mentindo, pois não havia motivo para isso. Olhou-o de relance e sentiu o sangue subir ao rosto, quando percebeu que Lion sorria com ironia, uma vez mais, havia naqueles olhos um brilho dourado e estranho.
— Você achou que eu tinha pulado o muro antes de o portão ser aberto? — ele perguntou. — Os gregos gostam de que a mulher seja virgem, quando vão para o altar. Agrada-lhes pensar que a noiva é tão pura como um raio de sol, como um floco de neve caindo do céu, inocente como as águas cristalinas de um riacho no meio de uma floresta.
— E não faz diferença se o noivo é versado na arte da sedução?
— Que garota iria gostar de um homem virgem e desa¬jeitado em sua noite de núpcias? Já é uma experiência bas¬tante traumática para uma noiva quando ele é experiente... — Seus dentes brilharam quando ele mordeu um pedaço de tomate recheado. Mastigou lentamente, sempre encaran¬do Fenny. — Admita, querida, que eu não a destruí nem ontem a noite e nem há poucos instantes.
Fenny ficou vermelha e teve que lutar para não baixar os olhos, como uma tonta. Sacudiu a cabeça.
— Ninguém poderia acusá-lo de ser um bruto. Mas você é muito convencido de sua superioridade masculina, não é?
— Acha? Fisicamente, os homens são mais fortes do que as mulheres, e algumas vezes são mais inteligentes também. Mas nós, gregos, respeitamos o fato de que uma mulher possa criar com o seu delicado corpo uma réplica viva dos homens que a possuíram. Isto faz com que eu me tome um porco-chauvinista aos seus olhos? Não é assim que vocês, mulheres, nos chamam?
Fenny teve que sorrir. Na Inglaterra, poucas vezes en¬contrara homens que concordassem com aquela idéia de que a mulher era um milagre do qual um abraço de paixão fazia nascer uma criança. Os homens em sua terra pareciam preferir que as garotas tomassem pílulas ou usassem outros métodos, menos que ficassem grávidas e tivessem filhos.
— Às vezes você me surpreende, Lion. Há algumas coisas em você que me encantam. Pelo jeito, estamos aprendendo um pouco um com o outro.
— Isso é inevitável, minha querida. — Cortou uma fatia de bolo de uvas e mel e entregou a ela. — Você vai comer isto das minhas mãos, sem olhar se coloquei veneno?
— Obrigada. — Aceitou o bolo e, uma vez mais, veio-lhe à mente o ocorrido no avião com o bolo de casamento e de como ele ficara bravo. Mordeu o bolo e achou-o delicado. — Tem uma excelente cozinheira, Lion. Gosta de coisas boas, não é?
— Gosto de tudo o que é bom e, graças à divina Providência e ao suor de meu trabalho, agora posso fazer e comer o que quiser. Um homem deve ganhar as coisas boas da vida tra¬balhando, lutando, e não recebê-las de mão beijada, pois só assim se dá valor ao que se tem. O melhor mel do mundo é o das abelhas selvagens das colinas da Grécia. Lá, na prima¬vera, a terra é coberta com pequenas orquídeas, as fodéleas e gramas floridas. Cada passo que um homem dá esmaga as ervas e delas se desprende uma fragrância selvagem. É ver¬dade que há partes áridas no país, mas mesmo onde os templos e os frontões desmoronaram, e onde as cabeças dos leões estão caídas, cheias de poeira, há uma certa beleza. É a minha pátria. — Recostou-se na cadeira com uma xícara de café e seu roupão se abriu. — Não tenho nenhuma outra.
— Conte-me alguns costumes gregos — ela pediu, porque sentiu que, se soubesse um pouco mais de seu país, desco¬briria mais coisas sobre o marido. Não era suficiente ter ficado em seus braços: queria tentar alcançar o coração e a alma que existiam naquele corpo forte que ficara tão pró¬ximo ao dela. Mais perto do que alguém já estivera.
Lion olhou-a, interrogativamente, e seus dedos brincaram com a tampa da garrafa de conhaque antes de abri-la e servir-se da bebida.
— Então, está curiosa a respeito do meu povo? — Levou o copo à boca, dizendo: — Stin iyia sou!
Fenny imitou-o, mas sem a entonação que tornava as palavras gregas tão significativas. Viu os lábios de Lion se contraírem quando engoliu a bebida, depois ele jogou a ca¬beça para trás, como que para sentir o prazer da bebida descendo pela garganta. Cada um de seus atos parecia-lhe vital, movimentos sensuais de um leão.
— Muitos dos nossos costumes vêm de tempos antigos e sobreviveram principalmente porque nós quisemos que sobre¬vivessem, porque somos um povo que ama a sua terra. O primogênito de uma família grega sabe que seu destino será sempre mais difícil do que o de seus irmãos e irmãs, pois deve ajudar no sustento deles. As mulheres gregas já nascem com a idéia de que devem se casar, ter um lar, e seu maior prazer será ter filhos. Nós não temos respeito por títulos e esnobismos, só pelo sucesso. Nossos sentimentos são profundos e eu acredito que mais sinceros do que sofisticados, ao contrário das raças orientais. Não choramos com facilidade, porque nun¬ca somos tocados pela tristeza fundamental da alma humana.
Brincou com os dedos sobre a garrafa de conhaque e seus olhos sorriram. Fenny o ouvia, absorta, num silêncio respeitoso, como uma criança que ouve uma explicação do pai. Seus cabelos e sua pele alva eram destacados pelo caftã colorido e comprido.
— Você me causa espanto — ele disse. — Conhece a lenda de Afrodite? Sabe que ela tinha o poder de renovar sua castidade no mar? Olho para você e pareço ver a prova dessa ilusão.
— Nada fará você mudar de idéia a meu respeito, não é? Tudo para os gregos é preto ou branco, sem meio-termo?
— Houve tanto feiticeiras quanto mártires que ficaram nas chamas e declararam-se inocentes no momento da ago¬nia suprema. Você poderia ser uma ou outra, e eu iria me divertir muito, tentando descobrir. — Inclinou-se, e seus olhos dourados tinham um brilho sensual. — Você não é a garota que lutou com o leão? Pensou, pequena falsaria, que seria uma coisa fácil de fazer, morar com um grego e fazê-lo de bobo com o seus cabelos dourados e o seu corpo bonito? Mas já percebeu que não é assim tão fácil, não é?
— Nunca me passou pela cabeça que fosse fácil conviver com você. — Encolheu-se na cadeira quando o olhar dele pou¬sou no decote de seu roupão. Era o olhar declaradamente insolente de um homem que a procuraria quando quer que lhe conviesse, como o faria com um figo ou um limão do pomar.
— Uma coisa eu lhe digo, minha garota: você não treme diante de mim. Muito pelo contrário, você me enfrenta sem medo. É a coragem criada pela esperança ou pelo desespero, agora que descobriu que seu rico grego não tem nada de flexível?
— Flexível? — Ela deu uma risada. — Só mesmo um idiota para pensar que você é fácil de ser influenciado. Você é flexível de corpo, mas inflexível de coração. Como uma cimitarra turca, eu acho, que corta com tanta rapidez que só depois de alguns segundos é que a agonia é sentida.
— Agonia? — Ele ergueu a sobrancelha, enquanto apa¬nhava um charuto numa caixa de madeira. — Você se im¬porta se eu fumar?
— Faria alguma diferença se eu me importasse? Por acaso você deixaria de fumar?
— Você não é tão melindrosa assim — ele disse, soltando uma baforada e se recostando confortávelmente na cadeira. — Eu achava que era, mas, desde que descobri que seu ar de recato não passava de uma máscara, deixei de tratá-la com escrúpulos. Acredito que estou começando a conhecer a verdadeira Fenella que se esconde por trás desses olhos azuis tristes. Como você representou bem o papel de prima solteirona, mostrando-se desinteressada pelos homens.
— Mas era verdade! — Um pouco da agonia a que Lion se referira surgiu no rosto dela. Ninguém conseguia magoá-la tanto quanto Lion, porque nunca alguém significara tanto para ela. Santo Deus! Todos tinham sido sombras em sua vida, sem sentido, indesejáveis. E então, finalmente, despertara para o amor, o que era mais um tormento do que um êxtase.
— Bem, no fundo você era mesmo uma solteirona. Os homens não a achavam tão atraente como Penela?
— Nunca dei importância a isso. Nunca achei os homens bastante importantes para correr atrás deles. Deixei esse tipo de coisa para... para Penela fazer. E ela se divertia muito.
— Você quer dizer que ela gostava de flertar? — A fumaça do charuto cobriu seu rosto e deu-lhe ao olhar um ar sinistro. — Então, imagina que eu não sabia que dezenas de homens a achavam desejável? Eu seria um tolo se pensasse que ela não chamava a atenção: um cabelo maravilhoso, um corpo atraente e uma personalidade fascinante. Os homens não iriam mesmo prestar atenção em você com Penela por perto.
— E, honestamente, acredita que eu me importava com isso? — Tinha sido tolerada na casa do tio, e, por sua vez, suportara as histórias sem fim de Penela sobre as batalhas nos assentos traseiros dos carros dos namorados. Algumas vezes, Fenny pensara em alugar um pequeno apartamento, mas os aluguéis eram muito caros e as acomodações muito ruins, nada que valesse tamanho sacrifício. Então, continuara ouvindo as histórias de Penela. O quarto que ocupava na casa de tio Dominic era pequeno, mas de frente para os canteiros de rosas, e ela ficava sozinha a maior parte do tempo.
Sua própria companhia tinha sido suficiente. E, até o dia em que Mavrakis entrou pela primeira vez em Mon Repos, não imaginava que seus sentimentos pudessem ser tão perturbados, e seus sonhos interrompidos por um ho¬mem que quase não olhava para ela, que só tinha olhos para a cintilante Penela.
— Acho que você se importava, sim — Lion disse seca¬mente. — Não perdeu tempo em agarrar o que ela preferiu atirar pela janela. E isso será sempre um veneno em nosso copo de vinho, minha querida. O tempo que passarmos jun¬tos será sempre mais amargo do que doce.
Fenny não tinha palavras para responder, porque havia muito de verdade no que ele dissera. Levou o conhaque aos lábios, procurando encontrar um pouco de coragem.
Seus nervos estremeceram quando ele repentinamente lançou-lhe um olhar e, com ar desinteressado, apagou o charuto no cinzeiro.
— Até quando vou ter que suportar esse seu olhar de peixe morto?
— Não tem que suportar nada, Lion. Pode até me matar, se quiser.
— Pode ter certeza de que, às vezes, fico tentado. Quando penso no que você fez da minha vida, é difícil me controlar para não esganá-la. Mas, como já disse antes, você não me interessa morta: há muitas outras formas de fazê-la pagar por tudo.
Ele se levantou e dirigiu-se para ela. Sacudiu-a com força e ela sentiu a cabeça rodar.
— O conhaque já subiu à sua cabeça? — Riu e desamarrou o cordão do roupão dela, afastando a seda macia e encos¬tando o rosto naquela pele suave e agradável.
Fenny ouviu-o prender a respiração quando passou os lábios em seus ombros.
— Você é uma trapaceira, diabinha de pele branca, mas, Deus, como a desejo! Esta noite, vamos comemorar a minha volta à ilha. É só aqui que as estrelas brilham como chamas de fogo e o ar tem aroma de vinho. É aqui que o filho de um grego deve crescer. Aqui, onde tudo é puro, tudo é na¬tureza. Está entendendo o que quero dizer?
As palavras dele chegaram bem no fundo de seu coração. Santo Deus, ela que ousasse não ter o filho dele, a criança que iria pôr um fim em tudo, naqueles momentos amargos e às vezes maravilhosos durante sua estada na ilha de Lion.
Começou a se debater em seus braços.
— Não... — A palavra morreu em sua garganta. — Lion, por favor, deixe-me em paz! Eu imploro!
— Pode implorar, minha querida, mas fique certa de que não tenho intenção de ouvi-la.
Puxou-a para seus braços e sentou-se no divã. Com um desespero nascido de seu amor, Fenny lutou como se lutasse com o demônio, esmurrando-o com força, mas sem conseguir atingir seus ombros fortes.
— Quanto mais você resiste, mais aumenta o meu prazer. Nunca apreciei mulheres frias, passivas, e não me importo nem um pouco que esse seu excesso de emoção não seja paixão. O esforço apenas aumenta a sua atração e, inevi¬tavelmente, você se cansará muito mais depressa do que eu. Você mesma já reconheceu que sou mais forte.
— Você não tem coração — ela murmurou, empurrando-o quando ele colou os lábios em seu pescoço. Quanto tempo mais poderia tolerar aquele desejo irresistível de ceder e acabar dizendo tudo o que sentia por Lion? Era um verda¬deiro inferno fingir que não o desejava, quando todo o seu corpo pedia por ele.
— Como é que pode dizer que eu não tenho coração, quando, certamente, está ouvindo as batidas dele? Esta é a nossa lua-de-mel e vou fazer com que se lembre de cada momento dela. Agora, vai me beijar e parar de se agitar tanto?
— Você terá que me obrigar. — Fenny estava à mercê de suas emoções, tremia nos braços dele, e as lágrimas de sua miséria secreta escorriam-lhe pelas faces. Tinha pro¬metido a si mesma não dar a Lion a satisfação de vê-la derramar uma lágrima sequer, mas agora não conseguia se controlar. Era o choro do fundo de seu coração magoado pelo marido. Soluçou alto.
— Está se comportando como uma criança, você sabe. — Lion tomou o rosto dela entre as mãos e fez com que olhasse para ele por entre as lágrimas que a cegavam, — Você me acha tão repelente assim? Vamos, diga!
E foi então que ela se viu numa situação terrível. Poderia dizer, com sinceridade, que ele nunca lhe seria odioso, mes¬mo que batesse nela. Mas, se mostrasse que sentia repug¬nância, medo e aversão, ele talvez a deixasse em paz e não insistisse mais. Não só por uma noite, mas para sempre.
— Estou cansada — murmurou. — A única coisa que quero é dormir...
— Quer mesmo? — Ele afastou seu cabelo do rosto quente e molhado pelas lágrimas; à luz do abajur, Fenny parecia jovem e deprimida. — Talvez eu esteja sendo imprudente e muito cruel, mas você sabia o que estava fazendo e não pode culpar ninguém, a não ser você mesma.
— Eu sei. — Passou as mãos pelo rosto, para enxugar as lágrimas. — Não precisa ficar repetindo isso a todo ins¬tante. Sei que fiz uma besteira... e agora, terei que pagar.
— De uma forma ou de outra.
Olhou-a de cima a baixo. O rosto de Fenny ainda mostrava vestígios de lágrimas. Os cabelos estavam em desalinho sobre as almofadas e brilhavam com o reflexo das estrelas. Os cílios molhados tremiam e a boca jovem refletia sombras de dor.
— Desta vez você não está representando, não é mesmo? As lágrimas e o medo são verdadeiros, e eu nunca violentei ninguém.
Magra e frágil, ela se levantou do divã, amarrando o roupão.
— Durma sozinha hoje à noite. Kalinikta.
Fenny não conseguiu responder ao boa-noite, porque sua garganta estava seca. Ouviu-o apagar a luz e sair, desapa¬recendo na escuridão pela porta de comunicação entre os dois quartos.
Fenny recostou-se nas almofadas, com um gemido de dor.
O que podia ser mais penoso do que estar apaixonada e não passar de uma mercadoria para o homem que se ama? Tinha desejado de corpo e alma ficar nos braços dele, não se importando que não sentisse nada por ela. Tremia agora ao pensar que aquela paixão já podia ter produzido um fruto: e se ela já estivesse grávida? A maternidade repre¬sentaria a sua destruição, uma morte em vida.
Fenny gemeu e puxou o lençol de seda para os ombros.
— Lion... — murmurou, sentindo falta daquelas mãos fortes em sua pele, acariciando-a como se fosse de porcelana, depois, de repente, quase selvagens, mas nunca chegando a machucá-la.
Saltou da cama, calçou as chinelas bordadas de pequenas borboletas em fios de seda, apertou o botão que abria o painel secreto e saiu para a moussandra.
Foi até o parapeito. As estrelas pareciam jóias que nin¬guém podia roubar.
Sentiu o aroma de limão que vinha do pomar, o ruído do mar lá embaixo e, a distancia, o som de um bandolim tocando uma canção de ninar, típica da Grécia.
Quem estaria tocando? Seria para fazer dormir o filhinho órfão de Zonar?
Então a música mágica parou e Fenny sentiu-se completamente solitária outra vez, isolada da intimidade daquela família grega, impedida para sempre de tomar parte de suas alegrias ou de suas tristezas.
Seu coração bateu depressa quando pensou no futuro. Agora, no silêncio mortal daquele lugar, ouvia apenas o barulho do mar batendo contra pedras e as paredes dos penhascos. Era como se durante toda a sua vida ela estivesse esperando por um lugar como Petaloudes, mas lá não havia nada nem ninguém para protegê-la ou avisá-la do preço alto que teria que pagar por tornar seu sonho realidade.
"Não é assim tão fácil como você pensava", Lion tinha zombado dela, "fazer um marido grego de bobo."
Tinha ousado esperar que, com o tempo, ele a amasse! Mas toda a esperança morrera em seu coração. Nunca des¬pertaria nada nele além de desejo. Lion só queria o seu corpo e continuava amando Penela.
Oh, como fui idiota por não pensar duas vezes antes de tomar a decisão de subir ao altar e tornar-me sua esposa! Lion nunca esteve realmente a meu lado: todo o tempo, seu coração estava em Nova York... com Penela.
Fenny voltou ao quarto e se deitou entre os lençóis frios. Quis implorar a Deus por um pouco de felicidade, mas real¬mente não acreditava que merecesse. Usara as roupas de Penela, mas elas não lhe serviam. De qualquer forma, o conto de fadas tinha saído errado e o sapatinho de cristal não pertencia à Cinderela.
Escondeu o rosto no travesseiro que ainda conservava as marcas da cabeça de Lion e sentiu-se adormecer nos braços de uma ilusão.

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