CAPITULO II
Era um vestido azul-claro, sem mangas e decotado, bordado com pedras num tom mais forte. Sem dúvida alguma, tinha sido desenhado especial¬mente para Penela, mas, como Fenny tinha quase o mesmo corpo dela, serviu perfeitamente.
Parou diante do espelho e sentiu-se como uma estranha. Nunca havia usado roupas assim; mesmo porque, seu salário não lhe permitiria. Agora, com o coração batendo depressa, ela se via linda naquele vestido azul que realçava a pele clara, os olhos acinzentados e o cabelo dourado. Jamais fora atraente como Penela, mas estava contente com a imagem refletida no espelho. Lion não podia reclamar de sua aparência.
A aliança de esmeraldas brilhou na mão esquerda. Se alguém da imobiliária a visse agora, não reconheceria a eficiente e dedicada funcionária Fenny Odell.
De repente seu coração bateu mais forte, pois lembrou-se das implicações que aquele casamento teria. Seu tio devia ser avisado e os irmãos de Lion precisavam tomar conhecimento de que tinha havido uma troca de noiva Era tudo muito com¬plicado e os falatórios explodiriam como uma bomba.
— Está pronta? — Lion perguntou, entrando pela porta que comunicava os dois quartos.
— Quase.
— Dê uma volta.
Fenny obedeceu, sem protestar. Apesar do olhar de apro¬vação, sabia que ele a estava comparando com Penela, e por isso não esperou elogios.
— É um bonito vestido — ele disse finalmente. — Ficaria bem até numa mulher feia e deselegante.
— Por favor... — suplicou. — Será que não podemos ser amigos? Ao menos isso?
— Amizade está fora de cogitação, minha querida. Por¬tanto, esqueça.
Ela viu que ele se aproximava e teve que se controlar para não fugir. Mostrar coragem seria a única maneira de se fazer respeitada. Ergueu a cabeça e enfrentou o olhar de investigação que ele lhe dava.
— Como você vai sofrer, minha querida. — Parecia sa¬borear a idéia de maltratá-la, porque um brilho diferente apareceu em seus olhos.
— Você não é do tipo resistente. Sua pele é clara, sensível, como se a protegesse do sol e da sensualidade dos homens. Totalmente diferente de Penela e, ainda assim, tomou o lugar dela. Por acaso tem alguma coisa de feiticeira?
— Ainda há pouco você duvidou da minha virgindade e me chamou de vagabunda. Parecia muito certo do que dizia. Não entendo por que está em dúvida, agora.
— Que homem está completamente certo com relação às mulheres? Com esse vestido, você parece frágil como uma flor. — Aproximou-se mais e tocou o chiffon macio. — Está tremendo, minha querida. Tem medo de que eu a toque, ou isso desperta em você o instinto de mulher?
— Você me faz sentir medo.
— Medo de que eu a machuque?
— Não. Acho que estou apavorada com o seu ódio.
— O ódio é um sentimento terrível, não é? E nós, gregos, nunca somos moderados em nossos sentimentos. — Seus dedos fortes subiram até a garganta de Fenny. — O pescoço de uma mulher devia estar sempre enfeitado com pérolas, mas pérolas verdadeiras, formando uma corrente tão forte que se poderia estrangulá-la com ela. Não se mexa!
Fenny ficou paralisada enquanto ele tirava do bolso uma caixa preta e retangular: era um rico colar de pérolas, com um fecho de pequenos diamantes.
— Não posso usar isso. Pertence a Penela!
— Não vejo diferença alguma entre usar o vestido dela e usar este colar. Comprei para Penela, mas como ela não está aqui, e você está, seria uma pena deixá-lo guardado na caixa. Um grego gosta de que as pessoas vejam os enfeites que ele pode oferecer à esposa.
— Enfeites? As pérolas não são verdadeiras?
— Gostaria de usar pérolas falsas, para combinar com você, minha pequena Judas? Ia se sentir melhor assim?
O sarcasmo em sua voz era suficiente para Fenny en¬tender que as pérolas não só eram verdadeiras, como ca¬ríssimas. Embora Lion negasse já ter amado alguma mu¬lher, tinha desafiado a convenção grega, tornando-se noivo de Penela, uma garota inglesa que nem era mais virgem. O cabelo claro e as maneiras encantadoras de Penela o cativaram e amoleceram o seu coração de pedra, jamais compraria pérolas artificiais para a mulher que amava. Ape¬sar de negar seus sentimentos, Fenny tinha certeza de que Lion amara sua prima, e ainda amava.
Ele examinou, com ar de aprovação, a jóia em seu pescoço.
— São o que eu chamaria de pérolas virgens. Talvez você não as mereça, mesmo.
— Como se atreve? Tem absoluta certeza de que Penela era um poço de virtudes?
Seus olhos de tigre brilharam.
— Quando é que vai parar de fazer insinuações a respeito dela? Nem mesmo agora deixou de ter inveja? Talvez tenha razão: nem mesmo usando o vestido e as pérolas de Penela, você se compara a ela. Sua chama é de uma vela, e não de uma lâmpada. Você é inibida e apagada, ela é extrovertida e cheia de vida. Beijar você é o mesmo que beijar uma pedra de gelo: reage com frieza, não com a impulsividade de um coração quente.
Suas palavras feriram Fenny como punhaladas. Deslum¬brado por sua prima, como acontecia com muitos homens, ele estava cego de amor por aquela mulher adorável que, onde quer que estivesse, era sempre o centro das atenções. Não se lembrava de, algum dia, Penela não ter conseguido o que queria. Em primeiro lugar estavam ela e seus desejos, depois, os outros. Fora sempre assim, desde que a conhecera. No entanto, era a ela, Fenny, que Lion acusava de ter um coração de gelo e de ser calculista!
Mas não podia dizer isso, pois só aumentaria o desprezo dele. Tinha que aceitar as injustiças, engolir os insultos e rezar para que Deus a ajudasse a suportar tudo o que aquele homem diabólico — mas a quem ela amava — pudesse fazer.
— Coloque o xale. E é melhor começar a aceitar a idéia de que estas roupas e jóias lhe pertencem.
— Se é o que quer...
Virou-se e sentiu as pernas tremerem quando se dirigiu à cama, onde deixara o xale de seda pura. Ele a seguiu e colocou o abrigo sobre os seus ombros frágeis.
Desceram e foram direto para o Jasmine Room, o sofis¬ticado restaurante do hotel. O garçom conduziu-os a uma mesa central, nada apropriada para um casal recém-casado, e Fenny pôde jurar que Lion tinha reservado aquele lugar com antecedência: queria tornar público, o mais rápido pos¬sível, que, em vez da noiva deslumbrante, agora estava ca¬sado com uma mulher tímida e insignificante,
Fenny percebeu o olhar das pessoas e ouviu os cochichos. Deviam estar todos curiosos e sem entender nada. Lion segurou suas mãos por cima da mesa.
— Vamos dar corda para eles terem o que comentar. Por que não sorri para seu marido e permite que todos vejam como estamos felizes?
— Você precisa ser assim tão cruel?
— Minha querida, tenho que tirar algum proveito deste nosso casamento. — Levou as mãos dela aos lábios e, quando as beijou, apertou-lhe os dedos até machucar.
— Por favor, deixe-me ir embora!
— Só depois que pagar o que me deve, do jeito que combinamos.
— Como pode querer que eu seja a mãe de seu filho? Sei o que pensa de mim.
— Portanto, nunca viveremos em dúvida, boneca. Ao con¬trário de muitos que se casam cegos pelo amor, nós não teremos desilusões, pois sabemos muito bem o que somos.
Soltou suas mãos, que tremiam. Quanto mais a ofendia e humilhava, mais satisfeito ficava. Ele tinha a justiça a seu lado, mas era uma justiça cruel. À noite, quando esti¬vessem na cama e ele a procurasse, seria só para satisfazer seu desejo. Depois, quando tivesse a criança, ele a expul¬saria, pois já não precisaria mais dela.
— Sorria. Você está parecendo um peixe fora d'água. As pessoas estão olhando para nós.
— Estou... estou muito preocupada com o meu tio. Eu devia avisá-lo de onde estou.
— Ele já sabe, pode ficar descansada. Há pouco menos de uma hora, telefonei para ele e avisei que a filha está em Nova York, e a sobrinha, comigo.
— O que ele disse? Você contou que...
— Contei, minha querida. Parece um pouco confuso, mas isso é questão de tempo, logo ele se acostumará com a idéia.
— Você contou tudo? — Fenny torcia as mãos. — Ele deve ter ficado muito surpreso...
— Arrasado seria a palavra correta.
— Estava bravo?
— Que diferença faz? Você não precisa mais dar satisfação a seu tio, pois é minha esposa e não depende mais dele. Agora, é a sra. Mavrakis, dona de indústrias e ilhas, e seu dever é ajudar seu marido e cumprir com o prometido. É o que queria e é o que você tem. Devia estar radiante, embora eu compreenda que o pagamento não é dos mais agradáveis. — Fez uma pausa e seus olhos eram duros como aço. — O que você sente realmente não me interessa. Quem faz a cama deita, e você não vai ser uma exceção.
— Obrigada — ela disse calmamente. — Até que enfim, está sendo honesto.
— Um de nós vai ter que ser, e a sua honestidade não é coisa em que se possa confiar.
O maitre chegou com a carta de vinhos e Fenny escon¬deu-se atrás do grande cardápio. Estava sem fome e a lista de entradas e pratos deixou-a enjoada.
— Já resolveu o que vai querer? — Lion perguntou.
— Eu... eu não gosto de nada muito exótico. Quero melão, de entrada, e depois costeletas de vitela com batatas e feijão francês.
— Vou comer o mesmo — disse ao garçom. — Exceto que, como entrada, quero fatias de presunto defumado.
— Pois não, senhor.
O garçom recolheu os cardápios e pareceu um pouco sur¬preso por pedirem um jantar tão simples, especialmente sendo ele um homem tão rico.
— Aquele sujeito deve estar achando que nós estamos nos alimentando de amor — Lion comentou. — É uma ironia que essas pessoas nos olhem, imaginando que hoje é o dia mais feliz de nossas vidas. Muitos devem até nos invejar.
— Qual você acha que vai ser a reação de seus irmãos? Zonar e Demetre eram gêmeos e cerca de quatro anos
mais moços do que Lion. Demetre tinha uma esposa na Grécia, mas Zonar ficara viúvo logo depois do casamento. Os três irmãos eram muito unidos, e Fenny tinha medo de que ficassem contra ela.
— Os dois admiravam muito Penela — disse Lion. — Portanto prepare-se, porque não vão tratá-la como amiga. Vão querer saber por que eu não a mandei para o inferno. Tente provar-lhes que me ama desesperadamente e que não achou que fosse me prejudicar ao tomar o lugar de Penela. Assim, ficarão mais descansados e até poderão aceitá-la. Eu não gostaria que eles soubessem que você viu em mim uma tábua de salvação para todos os seus problemas finan¬ceiros: um marido rico que poderia lhe oferecer uma boa vida, uma fuga da rotina e do quarto na casa de seu tio.
— Imagino que deve ferir muito o seu orgulho a idéia de que uma simples mulher possa se aproveitar de você.
— Isso me enfurece. — Seus lábios estavam apertados e seus olhos pareciam lâminas. — Você vai fazer como estou lhe dizendo em consideração a meus irmãos, porque eles são mais importantes para mim do que qualquer mulher. Tomei conta deles quando eram pequenos, depois que nossos pais foram mortos pelas bombas. Lutei, briguei, fiz os serviços mais baixos e para as pessoas mais baixas, só para que eles não morressem de fome e para que, quando crescessem, pudessem ter uma boa vida, estudos, tudo o que eu não pude ter. São mais sociáveis e simpáticos do que eu, querida, e suas maneiras são mais educadas, mas cairão sobre você feito feras se des¬cobrirem por que fez isso tudo. Tome cuidado.
Fenny olhou para aquele homem determinado e arrogante e pensou em dizer: "Não preciso fingir que gosto de você. Tomei o lugar de Penela porque eu o amava desesperada¬mente". Mas é claro que não disse.
Lion levantou o copo de vinho e brindou:
— Beba e seja feliz, porque hoje à noite você pagará por ter se metido na minha vida e acabado com os meus planos.
Será que ele estaria sorrindo se Penela estivesse ali? Ou será que era sempre fechado, bruto e cruel com todas as mulheres?
— Kali oreki — ela disse, mostrando-lhe que também sabia um pouco de grego, cuidadosamente memorizado por causa de sua viagem para Creta, uma viagem que havia planejado desde o ano anterior, muito antes de Penela ter apresentado aquele grego alto e elegante à família.
— Você está se referindo a isto? — Ele apontou para a comida em seu prato. — Ou está me desejando bom apetite para esta noite?
Fenny corou e olhou para o copo de vinho.
— Você... você torna tudo mais difícil, dificulta a minha atuação como... como uma esposa apaixonada.
— Quando estamos sozinhos, não há necessidade de usar¬mos máscaras. Sabia que, quando os gregos inventaram o drama, escondiam-se por trás de uma máscara? Faz parte de suas crenças que os seres humanos são descendentes de Jano, com dois rostos para oferecer ao mundo. O mistério todo sobre isso é que ninguém tem certeza de qual é a verdadeira face.
— Acho uma atitude muito cínica. Significa que ninguém é realmente bom e que o mundo foi feito para as pessoas representarem.
— Quanto mais civilizados nos tornamos, menos revela- mos de nós mesmos, e não me refiro ao corpo, mas à mente. Olhe para você, meu bem. Seus olhos são como uma cortina de fumaça nos quais podem ser escondidas todas as coisas. Como muitos maridos num drama grego, eu posso estar correndo o perigo de ser envenenado pela minha Messalina.
Ele descansou a faca e o garfo sobre o prato e disse:
— Mostre-me a sua mão esquerda. — Fenny mostrou e Lion tocou a aliança de esmeraldas, girando-a. A jóia se virou e surgiu uma pequena cavidade. — Um pozinho ve¬nenoso era guardado neste pequeno compartimento para ser despejado no café ou vinho do marido ou do amante indesejável. Bem engenhoso, não acha?
Fenny olhou para o anel, cuja beleza escondia algo tão sinistro.
— Penela sabia disso? — perguntou, um pouco surpresa por a prima não ter mencionado um detalhe tão fascinante sobre aquela aliança de noivado. Era uma jóia estranha para um homem oferecer à mulher que ama.
Ele balançou a cabeça.
— Ela pediu uma aliança de esmeraldas, e eu tinha ganho essa, uns dois anos atrás, durante uma viagem de negócios a Florença. A pedra é magnificamente lapidada, mas não achei necessário contar a Penela que estava usando um anel que tinha pertencido a Lucrécia Bórgia.
Fenny prendeu a respiração. Os terríveis Bórgia, aquela infame família devotada à deslealdade e à morte misteriosa. Com um rápido movimento, Lion fechou o anel novamente.
— De qualquer forma — ele disse —, parece bem apro¬priado que você use essa aliança, sua vagabunda perigosa.
Fenny sentiu os nervos à flor da pele. Nunca homem algum a chamara daqueles nomes.
— Eu... eu só o usei para...
— Para tornar a sua mentira mais convincente. Garanto, minha querida, que você é a atrizinha mais consumada que até hoje apareceu na minha vida. Você é quem devia ter seguido carreira. Desempenharia com perfeição o papel de mulher fatal. E há sempre uma certa fascinação, quando se está em companhia da filha do diabo.
Fenny não respondeu. Cada palavra dele era uma pu¬nhalada em seu coração. Sentia-se a última das mulheres, sem razão nem vontade de viver. Olhou-o disfarçadamente. Apesar de insultá-la, ele não parecia sentir qualquer emo¬ção. Tudo por que passara para tornar-se um homem rico e poderoso devia tê-lo tornado insensível.
Quando o carrinho de sobremesa chegou, ele lhe disse, com a voz mais suave do mundo:
— Doces para um doce. Vamos, você tem que provar um pouco. Que tal um pedaço daquele bolo recheado de coco e nozes? Afinal, não comeu do nosso bolo de casamento, não foi, meu bem?
— Não consigo comer mais nada. Não quero nenhuma sobremesa, obrigada. Já estou satisfeita.
— Ah, mas eu insisto. É a sua grande oportunidade de provar algumas das delícias que a vida nos oferece. Sim, garçom, minha esposa vai comer sobremesa.
— Talvez madame goste das nectarinas, senhor. — O garçom olhou para Fenny. — Nós as preparamos com co¬nhaque e depois recheamos com creme. Isso lhes dá um sabor muito sutil.
— Sim, vamos provar — Lion disse, com um olhar de reprovação para Fenny. — Um dia tão especial para nossas vidas exige um tratamento especial. Prepare-as com o me¬lhor conhaque que vocês tiverem, pois minha esposinha me¬rece tudo do bom e do melhor: ela é maravilhosa.
O garçom trouxe a sobremesa em taças de cristal. Estava muito bonita, mas Fenny não sentia um pingo de vontade de comê-la. Pegou o garfo e a colher com mãos trêmulas.
— Hum... uma delícia — Lion murmurou. — Ande, coma. Pare de fingir que tem o apetite de um pássaro.
— Você está sendo cruel. Pare com isso!
— Ah, então você agora já acha que tem direito de me dar ordens? — Seus olhos fuzilavam Fenny, e ela teve a impressão de estar diante de um animal selvagem. — Estou apenas sendo eu mesmo, amor. Sou um grego que se fez sozinho, sem ajuda de ninguém e sem ilusões. Você terá que aprender que quem manda em casa sou eu, e que, como minha esposa, deve obedecer. Porque a última palavra quem dá sou eu, e tudo o que digo é lei.
— E por causa disso tenho que me empanturrar de doces, quer queira, quer não? Você não tem pena mesmo, não é?
— Quando se trata de você, não. Agora, coma. Não quero chegar atrasado ao teatro.
E ele ficou lá, sentado como um inquisidor, até Fenny terminar a sobremesa. Depois, ajudou-a a se levantar. Ela pôde sentir seu ódio, que parecia penetrar-lhe até os ossos, quando Lion segurou-a pelo cotovelo e conduziu-a para a rua, onde o carro esperava.
Seguiram em silêncio para o teatro. Fenny, mais pálida que as pérolas de seu colar, deixou que Lion a levasse até as poltronas, feito um autômato.
As pessoas que se viravam à passagem dos dois nunca ima¬ginariam que aquela mulher abatida fosse uma recém-casada.
Lion murmurou em seu ouvido:
— Sou muito orgulhoso, vingativo e ambicioso. É muito tarde, minha querida, para se arrepender.
Fenny não ousou olhar para ele. As luzes do teatro co¬meçaram a apagar, e a grande cortina, a subir.
Foi durante o segundo intervalo que sentiu que não podia suportar mais. Desculpou-se com Lion, murmurando que queria ir ao toalete, mas, quando alcançou o vestíbulo, es¬capou da pequena multidão que fumava e discutia a peça e saiu para a rua.
Estava fugindo de Lion, mesmo sabendo que jamais con¬seguiria escapar daquele homem tão cruel; mas, por ora... por algum tempo, estaria livre. Ele tinha ido longe demais, estava fazendo-a sofrer mais do que podia aguentar. Ficar a seu lado seria suicídio.
Atravessou a rua e desceu os degraus que levavam à barragem do rio. A noite e o reflexo das luzes na água deram-lhe uma sensação passageira de paz, a única paz que sentira durante o dia todo. A brisa batia-lhe no rosto e ondulava seus cabelos. Havia uma certa beleza naquela velha parte de Londres e, em qualquer outro momento, Fen¬ny teria se abandonado à sensação de bem-estar.
Mas, quando olhou para a água, viu um par de olhos brilhando. No ruído distante do tráfego, a voz irritada e profunda de Lion se destacava. De repente, seus olhos se encheram de lágrimas.
— Cheia de surpresas, hein? — disse ele. — O que estava planejando fazer?
— Nada. Só queria ficar sozinha por alguns instantes. Há algum mal nisso? Você não precisa me seguir, eu não ia me demorar. Já estava pensando em voltar para o teatro.
— Claro. Você não terá direito a meus bens até se tornar minha esposa de verdade, e não apenas de nome. Claro que ia voltar.
— Eu nunca quis os seus bens. Nunca dei a mínima para eles...
— Minha querida, não me diga que você está me dando a honra de gostar de mim! — Riu, sarcástico. — Espero que Petaloudes seja compensação suficiente pelo sacrifício que vai fazer. Não se iluda: você me dará um filho, não me importa se gosta ou não disso.
Mais do que a cólera de Lion, o que a amedrontava era que ele ia tratá-la sempre como a uma qualquer. Estremeceu quando a segurou pelo braço para ajudá-la a entrar no carro.
— Você é muito cínico — disse baixinho. Começava a sentir-se muito fraca. O que Lion faria se, de repente, encostasse a cabeça cansada no ombro dele? Será que iria empurrá-la, repeli-la? Ou beijá-la, como um homem beija uma mulher da vida?
Qualquer uma das reações seria insuportável. Fez um esforço para manter o controle e a aparência fria, altiva e distante.
— Um homem só pode julgar as mulheres pelo que conhece delas. Quando eu era mais jovem, não tinha tempo para essas coisas, estava sempre ocupado. Para mim, era suficiente pas¬sar uma noite com uma mulher, e nunca me preocupei seria¬mente com o casamento, até que, no verão passado, encontrei sua prima em Atenas. Bem, deu no que deu. Se sou cínico, quem pode me culpar? Mas como sou também um grego, devo tirar o melhor proveito de um mau negócio. Você não tem os mesmos atrativos de sua prima, mas sabe como usar as roupas dela e tem um ar de pureza que intriga até mesmo um homem que sabe que tudo isso é falso.
Seu olhar era como uma lâmina. Estudou-a de alto a baixo e continuou:
— Você não teve boa educação, mas a única coisa que quero que me dê um filho. As chances são boas de nascer um menino: acredito que setenta por cento. Meus pais só tiveram filhos homens, e a esposa de Zonar, antes de morrer, teve um menino.
— Eu não fazia idéia de que seu irmão Zonar era pai. Ele parece... Oh, não sei.
— Despreocupado? Um homem que flerta e leva a vida como se fosse acabar na manhã seguinte? É só uma máscara! Ele, ao contrário de Demetre e de mim, teve muita sorte no amor, era muito feliz, tinha uma esposa maravilhosa... até o dia em que aquele maldito caminhão chocou-se com o carro deles. Mercedes teve o bebê na estrada, perto de onde aconteceu o acidente, e morreu antes que a ambulância pudesse chegar ao hospital.
— A criança sobreviveu? — Fenny olhou para o marido com sincera compaixão.
Ele disse, com voz cortante:
— Poupe-me esses seus olhos de atriz. Que diferença pode fazer para você que um Mavrakis sofra? Você não faz parte realmente da minha família. Invadiu a nossa priva¬cidade. Portanto, guarde a sua simpatia para si mesma. No dia em que me entregar o bebê, eu a riscarei da minha vida. Terá que suportar a dor de ter um filho que nunca irá correr ao seu encontro e chamá-la de mamãe.
— Você... você vai ser assim tão cruel?
— A vingança nunca é suave. Um grego não espera que a vida lhe proporcione amor ou piedade, mas ele trabalha muito para ter um filho a quem possa deixar tudo o que construiu. Sim, o filho de Zonar sobreviveu e está muito bem, é uma criança saudável; uma enfermeira toma conta dele, no castelo. Eu pensava em tornar Alekos meu herdeiro, mas agora terei um herdeiro do meu próprio sangue. — Enquanto falava, Lion se aproximava dela com um sorriso assustador. — Estou começando a ficar entusiasmado com a idéia. Você sabia que, na Grécia, a palavra "entusiasmado" quer dizer que uma pessoa está possuída por um deus?
— Não é por um demônio?
— O diabo esteve trabalhando hoje, e por que não con¬tinuará à noite? Nossa noite de núpcias tanto poderá ser o paraíso como o inferno.
O carro parou em frente ao hotel. Atravessaram o ves¬tíbulo e foram à portaria, onde Lion pegou as chaves com o gerente. O homem sorriu, malicioso.
— Boa noite, senhor. Madame... — Colocou ênfase nas palavras, e Fenny não ousou olhar para Lion quando en¬traram no elevador que os levou para a cobertura.
Já era tarde e o hall da suíte estava à meia-luz. O barulho da chave sendo virada na fechadura mexeu com os nervos
de Fenny.
— Você quer beber alguma coisa? — ele perguntou, despindo o sobretudo e aproximando-se do bar. — Vou tomar uma dose de vodca com soda e gelo. Muito bom para os nervos.
— Por quê? Você está nervoso?
— De forma alguma. Mas você está; não é mesmo? Tenho certeza de que você adoraria ser uma daquelas esposas que inventam uma dor de cabeça para escapar das atenções do marido. Não me importo nem um pingo com as dores que possa estar sentindo.
Fenny colocou o xale no sofá e aceitou um dos copos. Nunca tinha experimentado vodca, mas, se fosse ajudá-la a sentir-se melhor, não se importaria com o gosto. Tomou-a rapidamente, e a bebida forte queimou-lhe a garganta, quase fazendo-a sufocar.
— Fico realmente espantado de ver que você não tem... ou finge não ter... o hábito de beber. Se está pensando que vai conseguir me comover com esta encenação de falsa virtude, perde seu tempo. Guarde-o para algo útil, minha querida.
Ela corou, quando viu como ele a olhava. Então Lion disse, quase insolente:
— Já é tarde, está na hora de dormir. Acho melhor você ir para o quarto, se aprontar para mím.
Fenny encarou-o, petrificada.
— Bem, você já devia esperar por isso: casou-se comigo, e nosso casamento não vai ficar só no papel. Nós fizemos um pacto, lembra-se?
— Sim...
— Então, o que está esperando? Estava muito animada para usar o vestido de noiva de sua prima. Agora, é hora de ir se preparar para a nossa noite de núpcias.
— Você deve estar brincando... Isso não é sério, não é mesmo? — Fenny sabia muito bem que Lion falava sério, mas precisava fazer alguma coisa para ganhar tempo. Ele ergueu a sobrancelha.
— Nunca falo só por falar, você sabe disso. A camisola de Penela deve servir em você. Mas, se não servir, não vou reclamar...
— Lion, por favor!
— Minha querida, devia ter pensado nas consequências de seus atos esta manhã. Vá para o quarto!
Sem olhar para ele novamente, ela obedeceu.
À meia-luz daquele quarto luxuoso, Fenny despiu-se, pre¬parando-se para dormir. Estava perdida em seus pensa¬mentos. Caminhou descalça pelo carpete, entrando no ba¬nheiro para se lavar e escovar os dentes, voltando outra vez para vestir a camisola de seda bordada, cor de pêssego.
Lion era um selvagem, incapaz de sentir piedade. Sua pele suave e pálida, seu cabelo dourado, os cílios trêmulos não iriam torná-lo mais delicado, apenas despertariam o desejo que um homem violento sente por uma mulher que lhe pertence.
O espelho refletiu a sua imagem... aquele rosto e corpo pertenciam a Lion Mavrakis, e ele agora ia aparecer e exigir o que tinha direito. Se ao menos aquilo fosse amor... Suspirou, com lágrimas nos olhos. Ele ia escravizá-la, mas nunca che¬garia a amá-la. Lentamente ela se voltou para olhar para a cama baixa e larga, coberta por uma colcha de seda dourada.
Aquela noite, sem dúvida alguma, seria um inferno, mas Fenny nada podia fazer. Era muito tarde.
Estava em pé perto da janela, olhando as estrelas que pa¬reciam estar muito próximas, quando ouviu o barulho da porta sendo aberta. Com o coração disparado, Fenny continuou no mesmo lugar, sentindo que ele se aproximava silenciosamente pelo carpete. Com um gesto brutal, Lion puxou sua cabeça para trás. Ela não tinha como escapar e, se tentasse, seria bem provável que ele quebrasse o seu pescoço.
Estremeceu quando Lion a acariciou, e sensações que não conhecia fizeram seu sangue ferver. As mãos dele pas¬saram pelos seus cabelos e desceram até o pescoço.
— Uma da partes mais vulneráveis e mais eróticas da anatomia de uma mulher é o pescoço — ele murmurou e, no tumulto e violência daquele momento, Fenny quase acre¬ditou que houvesse uma mudança em seu tom de voz. Mas depois Lion a fez voltar-se e ela viu que não havia esperança de ternura no rosto moreno: ele estava inflexível.
— Sua pele tem a palidez do loto, minha querida. Como você parece inocente! Qualquer outro poderia ser enganado, pensando que é pura.
Puxou-a contra o peito e começou a beijar seus ombros nus. O coração de Fenny batia descontroladamente, de amor e medo.
— Como consegue isso? Você não me ama! — ela protestou com voz fraca. Sabia que os sentimentos pouco importavam: ele a desejava naquele momento e iria possuí-la, apesar de não amá-la.
— O que é que o amor tem a ver com isso? — Ele deu uma gargalhada e passou os dedos por sua pele macia e jovem. — Você será minha robija... minha escrava... por milhares de noites, e depois... adeus!
Afastou-a por alguns instantes, o que sentia estava muito visível em seu rosto: os olhos brilhavam de modo estranho, os lábios tremiam de desejo. Fenny afastou-se.
— Por favor...
— Quem quer perdão, primeiro deve bater à porta e então esperar a resposta do diabo — ele falou, zombeteiro, e segurou-a com as duas mãos. Seu calor penetrava pela camisola de seda
— Seria o mesmo que bater numa pedra — ela murmurou.
— Com certeza. Você está agindo exatamente como uma virgem, quando dorme com o primeiro homem.
— Você... você sabe que eu sou...
— Não, eu ainda não sei. — Puxou-a e levou-a para a cama. Fenny ficou deitada, imóvel e fascinada, apesar do terror
que sentia. Sabia que aquele homem não iria poupá-la, até que amanhecesse e a luz do sol entrasse pelas janelas.
Lion apagou o abajur e ela sentiu que despia o roupão de seda.
— De noite, todos os gatos são pardos... e todos podem ronronar — disse ele, com uma gargalhada.
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