- O conto dos três irmãos -
Era uma vez três irmãos que estavam viajando por uma estrada deserta e tortuosa ao anoitecer. O céu estava sem aparentes estrelas. O silêncio quebrado pelos passos contínuos dos irmãos formavam um certo compasso. A brisa suave vinda do norte batia no rosto do garoto mais alto, os outros bocejavam de sono.
A estrada coberta por serragem se estreitava cada vez mais. As árvores que antes estavam ao longe, pareciam se aproximar cada vez mais. A poeira levantada com a caminhada fizera com que o mais baixo dos três cobrir o rosto com sua própria roupa.
- Antíoco... Você tem certeza de que sabe para onde vamos? – perguntou o de estatura mediana que coçava o olho constantemente por causa de uma reação alérgica causada pelo mesmo pó.
- Tenho... Era por aqui... Duvido muito que depois do que aconteceu eu queira voltar àquela cidade! – respondeu Antíoco. – Bando de covardes...
- Você não deveria ter-se exaltado, Antíoco. – comentou o mais baixo.
Não houve resposta, o silêncio dominou o local novamente. Antíoco parecia decidido de seu destino, porém, os outros dois nem tanto. A poeira foi abaixando por causa de uma leve umidade no ar.
Depois de mais algum tempo, os irmãos chegaram a um rio fundo demais para vadear e perigoso demais para atravessar a nado. O mais baixo havia se abaixado na margem para tocar as águas escuras. Aquilo parecia um verdadeiro obstáculo, muitos já deveriam ter morrido ao tentar cruzar aquele rio. A margem estava distante demais... Os irmãos, porém, eram versados em magia, poderiam muito bem passar por aquele obstáculo sem muita dificuldade.
- Ignoto, vai ficar aí encarando seu próprio reflexo? – perguntou o de estatura mediana que se aproximava.
- Não, Cadmo... Sinto que isso não está me cheirando bem... Sinto algo perverso por vir...
- O que é? Acha que vamos morrer? Levanta, vamos acabar com isso...
De certa forma, Ignácio sentia uma certa atração por aquele rio, como se fosse para eles se jogarem ali mesmo e esperarem a água entrar pelas suas vias respiratórias e morrerem afogados... Mas a sensação não parecia das piores para eles.
Antes que mais algo acontecesse, os três, simplesmente agitaram as mãos e fizeram aparecer uma ponte sobre as águas traiçoeiras. Algo tão terrível, uma saída tão simples... Começaram a travessia. Ignoto sentiu calafrios, logo viram seu caminho bloqueado por um vulto encapuzado. Ele estava imóvel logo ao lado de uma árvore de folhas mortas... Na realidade, ele parecia ter causado a morte não só daquela árvore, mas de tudo que estava em seu entorno até um certo ponto.
Antíoco tomou a frente dos outros dois irmãos, fazendo o possível para reconhecer o ser logo ali, diante deles... Sentiram um vento gélido, um vento cortante. Algo que poderia deixar qualquer um de cabelos em pé... Era o sopro da morte... Então a morte falou:
- Muito... Inteligente este simples modo de escapar de seus verdadeiros destinos... – era uma voz aguda e fria, equiparava-se a uma espécie de sussurro.
A morte estava zangada por terem lhe roubado três vítimas, porque o normal era os viajantes se afogarem no rio. Ela estava realmente séria, parecia que algo havia saído da linha, mas ela foi astuta. Caminhou até mais perto dos três... Não possuía uma face, era um casaco com um capuz cobrindo a escuridão. Fingiu cumprimentar os irmãos por sua magia.
- Cada um ganhará então um prêmio por terem se mostrado corajosos e inteligentes o bastante para escaparem de mim...
Ela virou-se para Antíoco, apesar de não possuir face, era possível ver que estava esperando a resposta dele. Este, o mais velho, como era um homem combativo, pensou bastante, mas não demorou a chegar à conclusão de que queria a varinha mais poderosa que existisse: uma varinha que sempre vencesse os duelos para seu dono, uma varinha digna de um bruxo o qual derrotara a Morte. Esta, por sua vez, cruzou a ponte e se dirigiu a um vetusto sabugueiro na margem do rio. Retirou apenas um galho da árvore, o qual foi utilizado para fabricar a varinha, e o entregou ao irmão mais velho.
- Não há adversário páreo para está varinha.
Virou-se então para o segundo irmão, Cadmo, deixando o outro absorto em analisar sua nova varinha. Então, o segundo irmão, que era um homem arrogante, resolveu humilhar a Morte, depois de encarar o vazio do capuz pediu o poder de restituir a vida aos que ela levara. A Morte andou pela margem do rio de águas traiçoeiras, então apanhou uma pedra simples pedra da margem do rio e entregou-a ao segundo irmão.
- Esta pedra tem o poder de ressuscitar os mortos. – disse por fim depois de bastante tempo em silêncio, onde Cadmo analisava a pedra entre os dedos.
Virou-se então para Ignoto, este, no entanto, parecia até calmo demais, depois de já saber a pergunta que viria a seguir e de possuir uma bela resposta, sorriu suavemente para o ser encapuzado que mal se moveu. Perguntou ao terceiro e mais moço dos irmãos o que queria. Com uma resposta simples, porém objetiva, pediu, então, algo que lhe permitisse sair daquele lugar sem ser seguido por ela. A Morte mostrou-se em parte surpresa com a resposta do garoto, entregou-lhe, então, de má vontade, a própria capa de invisibilidade, sobrando apenas uma sombra destacada na escuridão.
A Morte se afastou para um lado e deixou os três irmãos continuarem viagem e foi o que fizeram, comentando, assombrados, a aventura que tinham vivido e admirando os presentes da Morte.
- Grande coisa o que você pediu... Isso não vai servir para muita coisa... – opinou Cadmo se referindo à nova capa de Ignoto que apenas sorriu em retribuição. – Mal espero para usar o meu presente! E você, Antíoco?
- Já tenho um plano... O vilarejo dos Kebut’zin não fica longe, fica?
- Não... Creio que pelo nosso passo e a direção... Acho que mais de uma semana de caminhada, nada que possa no “matar”. – e Cadmo riu da própria piada.
- O que fará? – perguntou Ignoto desconfiado.
- Dar o troco... Aquela vez foi imperdoável! Terá um troco!
- Antíoco, acho que conseguimos escapar da morte por pura sorte. Ela nos concedeu presentes e aqui estão eles, mas não acho que pelo fato de serem presentes não quer dizer que tenhamos que abusar deles!
- Fica quieto, Ignoto! – vociferou Cadmo, deixando o outro muito contrariado, porém em silêncio.
No devido tempo, os irmãos se separaram, cada um tomou um destino diferente.
O primeiro irmão viajou uma semana ou mais e, ao chegar a uma aldeia distante, procurou um colega bruxo com quem tivera uma briga antes. De bar em bar conseguiu descobrir onde o indivíduo morava e, de modo arrogante, desafiou o homem. No dia seguinte ambos estavam parados um diante do outro, em uma praça pública. Antíoco, armado com a varinha de sabugueiro, a Varinha das varinhas, não poderia deixar de vencer o duelo que se seguiu. Em poucos segundos de duelo, o inimigo tombou morto com os olhos revirados, jazendo no chão. Então, o irmão mais velho dirigiu-se a uma estalagem, onde se gabou, em altas vozes, da poderosa varinha que arrebatara da própria Morte, e de que a arma o tornava invencível. Alguns estremeceram ao ouvir a palavra morte, outro, porém, aproveitou-se da situação para oferecer mais bebida para o vencedor honrado.
Na mesma noite estrelada. O outro bruxo esperou até que Antíoco fosse se deitar, então, aproximou-se sorrateiramente do irmão mais velho enquanto este dormia em sua cama, embriagado pelo vinho. Sem demoras, o ladrão ainda analisou a varinha antes de levá-la e, para garantir que não haveria problemas, usou um punhal de prata para cortar a garganta do irmão mais velho.
A dor o fez acordar e, enquanto este engasgava com o próprio sangue, chegou a ver o ladrão se distanciando e outro vulto se aproximando. Quando chegou bem perto, viu seu próprio reflexo antes de apenas enxergar a escuridão. Ouviu um sussurro... Assim, a morte levou o primeiro dos irmãos...
Entrementes, o segundo irmão viajou para a própria casa, onde vivia sozinho. Não tinha muito que fazer, muitas vezes ia a um vilarejo ali perto para comer alguma coisa, sua arrogância o afastava de muitos. Em um desses dias de solidão arrebatadora, deitado em sua cama, ali pegou a pedra, presenteada a ele pela Morte, a qual tinha o poder de ressuscitar os mortos, e virou-a três vezes seguidas em sua mão. Para sua surpresa e alegria, a figura de uma moça que tivera a esperança de desposar antes de sua morte precoce surgiu instantaneamente diante dele.
Ele mal acreditava no que estava vendo, pareceu entrar em um transe ao ficar admirando aquela bela moça que parecia em parte assustada como que estava acontecendo. Seus olhos encheram-se de lágrimas ao pensar que nunca iria vê-la novamente e este desejo havia sido realizado.
Contudo, ela estava triste e fria, como que separada dele por um véu. Usava uma bela roupa que parecia manchada pela suas lágrimas. Parecia mais um fantasma, apesar de não ser totalmente transparente. Embora tivesse retornado para o mundo dos mortais, seu lugar não era ali, e por isso sofria.
Cadmo, diante daquela situação, não soube inicialmente o que fazer. A única coisa que lhe vinha na mente era ficar ao lado dela para sempre. Tentou olhar nos olhos opacos dela, sentiu calafrios. Sempre amara aquela moça, e ficou arrependido de nunca ter a chance de viver mais tempo com ela, seu lamento era o motivo de não querer mais nenhuma outra, e o que encobria sua tristeza era o modo de se impor, modo arrogante de ser.
O único modo de se juntar a ela seria estando em mesmo estado de espírito, poderiam então viver juntos. Para isso teria que se sacrificar e, na opinião dele, era um sacrifício mais do que justo. Enlouquecido pelo desesperado desejo, caminhou até o penhasco mais perto de sua casa, que não era tão longe, acompanhado da bela moça. Antes mesmo de se jogar em uma atitude insana, avistou um vulto se aproximando, e, no momento em que se jogou do precipício, sentiu algo o segurar pelo pescoço, trazendo-o para trás, enquanto via seu corpo sem vida caindo lá embaixo... Então, a Morte levou o segundo irmão...
Embora a Morte procurasse o terceiro irmão durante muitos anos, jamais conseguiu encontrá-lo...
Em um dia, como outro qualquer, anos depois do acontecimento, Ignoto estava sentado em sua cadeira de balanço vendo seus netos brincando com trenzinhos enfeitiçados. Ele sorria alegremente por ter conseguido chegar a uma idade avançada sem se preocupar com coisas supérfluas, nem gastar seu tempo com exibições. E em seu colo estava descansada a pesada dádiva da Morte, sem a qual com certeza não teria sobrevivido tanto. Sabia que não seria um dia comum... Sabia que algo de especial aconteceria... Uma lágrima caiu sobre o manto enfeitiçado, as lembranças da perda dos próprios irmãos que morreram por causa da própria ganância.
Sentiu um vento cortante entrando pela janela aberta. Levantou-se e passou pelos netos, em direção as escadas que o levariam ao andar superior. Entrou dentro de um quarto onde estava um homem esbelto que muito se assemelhava a ele.
- Filho... Sinto que está na hora... Antes de mais nada, gostaria que você ficasse com isso. – disse com uma voz trêmula, oferecendo a capa.
O filho virou-se para Ignoto e o abraçou mais do que com ternura. Um abraço eterno, o qual não voltaria a ocorrer. Ele segurou a capa ainda sem saber realmente o significado daquilo tudo. E Ignoto continuou:
- Esta capa é a que me fez chegar até aqui hoje. Ela foi muito importante para mim, como será para você... E quando chegar a hora você passará para seus filhos, e assim por diante... Use-a bem... Tem alguém me esperando lá fora. Até – e deu mais um abraço, mais breve do que o anterior.
O filho ficou observando seu pai se afastar e sumir pelo corredor. Talvez soubesse o que estava por vir... Sabia que um dia isso aconteceria.
Ignoto abriu a porta da casa e saiu no pôr-do-sol que trazia um vento gélido. Debaixo de uma árvore, um sabugueiro, encontrava-se o mesmo vulto encapuzado que da outra vez. Sorriu para o vulto e foi se aproximando. Cumprimentou-o e este disse:
- Quanto tempo, não?
- Pois é... E agora chegou minha vez... Sem trapaças... Mas me conte, como é lá?
- Um mundo diferente, amigo... – respondeu o encapuzado. – Sinto que você fez a coisa certa... Mas acho que agora é a hora de ir...
Levou-o por um caminho longo, foram conversando, cruzando o além... Como velhos amigos, andando juntos. Partiu para uma nova vida, deixando seu próprio corpo para trás... Nada o preocupava mais... Seu dever na Terra havia sido cumprido... Agora era a hora de ter, enfim, um descanso...
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