AS CARTAS DE NINGUÉM



Capítulo 3
– As Cartas de Ninguém –




Aquele foi o castigo mais longo de Harry, pois quando ele finalmente pôde sair de seu armário, o Ano Letivo já havia terminado. De férias e sem nenhum amigo, como sempre, Harry passava o tempo andando pela cidade.
Seus pés o levavam aos lugares favoritos, como o parque, o fim da rua e a praça. Não tendo muito que fazer, ele arranjava pequenos bicos para gastar o tempo, como ajudar a descarregar caixas, arrumar um jardim, aparar uma begônia. Aqueles pequenos serviços lucraram uma pequena quantidade de dinheiro, que ele guardava como à um tesouro. E mesmo que suas costas doessem ao fim do dia, a pequena quantia lhe dava prazer.
Harry via um raiozinho de esperança apenas no fim das férias, quando ele iria para a escola secundária local, enquanto Duda desfrutaria da vaga na antiga escola do Tio Valter, Smeltings, que tinha desde que nascera. Naquele dia, lembrou Harry, chegara o uniforme da escola. Ele precisava ver isso.
Sorrindo triste para o pôr-do-sol, Harry abandonou o balanço enferrujado e voltou para onde vivia. Não podia chamar aquele lugar de “lar”.

O uniforme de Smeltings se revelou uma casaca laranja, calções verdes, um chapéu de palha e uma bengala nodosa. A bengala, dissera a diretora, servia para que os alunos batessem uns nos outros quando ninguém estivesse vendo. Um ótimo treinamento para o futuro, acrescentara.
Enquanto Válter brindava e ria, Petúnia chorava de orgulho e Harry fazia força para não rir, uma carta atravessou o vão da porta e chegou aos pés da lareira. Uma batida na porta e nada mais.
Harry foi até a porta e a abriu, mas não havia ninguém. Sem alternativa, apanhou a carta.
Tinta verde a endereçava claramente:

Ao Sr. Harry Potter
O Armário Sob A Escada
Rua dos Alfeneiros, Nº 4
Little Whinging, Surrey


Não havia remetente, apenas um brasão de cera representando um leão, uma águia, um texugo e uma cobra cercando uma letra “H”. Harry sentiu-se estranho ao tocar a carta, como se toda a sua vida tivesse esperado por isso. Ele sentiu a textura do material e descobriu que era um pergaminho. Com os dedos trêmulos rompeu o lacre.
– O que é isso? – Perguntou Tio Válter, arrancando a carta das mãos de Harry antes que ele pudesse lê-la. Harry gritou e pediu a carta de volta, mas o Sr. Dursley ficava cada vez mais pálido enquanto lia o pergaminho que tirara de dentro do envelope.
Ao fim da leitura ele estava cor de gesso, assim como Tia Petúnia que lera sobre seu ombro, os dois atiraram a carta na lareira com força e mandaram Harry para seu armário, antes de exigirem que Duda fosse para seu quarto, sem revelarem o conteúdo do pergaminho.

No dia seguinte Válter não foi trabalhar, ao invés disso ele fez algo inusitado: visitou Harry no armário.
– Hum – Pigarreou ele. – Sabe, você está ficando meio pequeno para esse armário, moleque. Pegue suas coisas e suba para o outro quarto de Duda. Agora.
Os Dursleys possuíam quatro quartos: o dos Tios, o de Duda, o de hóspedes (normalmente Guida, a irmã de Tio Válter) e um quarto menor onde tudo o que Duda possuía que não cabia no primeiro quarto era estocado. Harry levou apenas alguns minutos para levar tudo o que tinha para o novo quarto e quando finalmente se acomodou pode dar uma olhada nas novas habitações.
Era um quarto pequeno, com um guarda-roupa, uma cama de solteiro, uma escrivaninha e uma mesa de cabeceira. A maior parte do local era ocupada por duas grandes prateleiras, até o teto, preenchidas com coisas quebradas de Duda. Principalmente, reparou Harry, havia livros ali. Ele tocou as capas intocadas e os títulos nunca lidos. Dezenas de histórias e registros estavam nas prateleiras, Duda jamais cultivara interesse pela leitura. Finalmente Harry apanhou um exemplar encadernado de “Robson Crusoé” e deitou-se na cama, deixando as palavras entrarem em sua mente, enquanto pensava avidamente na carta que vira queimar nas cinzas da lareira.

Mas as cartas não pararam por aí, como descobriu Harry. Os dias que se seguiram trouxeram mais e mais cartas. Entregues pelo carteiro, dentro de caixas de ovos, presas embaixo de encomendas, deslizando por baixo das portas, à qualquer hora do dia ou da noite.
Todavia, aquilo enlouqueceu Tio Válter. Ele decidiu fechar todas as portas, frestas, entradas e saídas da casa. Pediu licença do trabalho para lacrar a casa, prendendo a família do lado de dentro.
Harry foi encontrá-lo na sala, na manhã de domingo, sorrindo como um louco.
– Excelente dia hoje! Não tem correio! Não tem cartas!
Duda sorriu bobamente, olhos pregados na TV e Petúnia não ergueu a cabeça do pequeno bordado que fazia. O uniforme de Harry era apenas antigas roupas de Duda que ela tingira de cinzento, agora ela cerzia as meias, de má vontade. Harry estava sentado nos pés da escada, discretamente brincando com uma nova teia de barbante. Suas mãos tentavam se ocupar o suficiente para que sua mente pudesse esquecer a raiva que sentia daquela estranha e fria família. Ele sentia a raiva se adensar no estômago, contrair sua garganta e tentar fugir de seu peito. Sentia raiva da negação em relação à suas cartas. SUAS cartas.
Tinha raiva dos anos de maus-tratos, das noites que passara com fome, preso naquele armário. Raiva das noites em que sentiu frio e nada veio aquecê-lo, quando sentiu medo e ninguém foi acudi-lo. Ódio profundo das noites de insônia, das lágrimas silenciosas, submissas, quase despercebidas. E sentiu raiva da dor que sentia, da fome eterna que corroia seu estômago, das dores de se sentar na escada, recostado contra o balaústre polido até perder a cor.
Harry trancou os dentes e conteve os gritos que queriam fugir de sua garganta. Não tinha medo daquela gente, nem dó, nem nada. Apenas ódio, e isso não lhe fazia mal, mas dava-lhe forças, forças profundas, como se apenas com o ódio e a escuridão ele pudesse ter reservas para suportar aquela família.
Um estrondo foi ouvido e então algo caiu na lareira apagada.
Uma carta.
Mais uma.
E mais uma.
Outra...
Como uma torrente, cartas destinadas à Harry explodiram ao redor, voando e ricocheteando por tudo. A TV foi bombardeada e caiu com força, desligando o programa. Só nessa hora que Duda percebeu o ataque. Ao mesmo tempo todas as frestas meticulosamente lacradas por Tio Válter se abriram, num rompante, e cartas e mais cartas voaram ao redor. Os gritos dos Dursley foram ouvidos por toda a vizinhança.

O carro finalmente parou em frente à um hotelzinho de beira de estrada, camas duras e lençóis ralos. Uma chuva fina caía ao redor, dolorosamente gelada, como pregos. Harry e os Tios passaram a noite ali. Parecia que o Sr. Dursley queria estar distante das cartas.
– Aqui estamos seguros – Dissera antes de se registrar.
Mas quando tomavam café, na manhã seguinte, a solícita atendente os chamou e perguntou:
– Quem é “Harry Potter”? Temos um monte dessas na recepção.
Válter recebeu as cartas em silêncio e as rasgou e queimou em frente à atendente. Dissera que eram cobranças inúteis e fora embora com a “família”.
Eles andaram de carro o dia inteiro, correndo e indo lentamente, fazendo curvas fechadas ou voltando longas distâncias antes de pegarem atalhos suspeitos.
– Se estiverem nos seguindo, vou despistá-los. Sim. Vou – Grunhira o Tio Válter enlouquecido. Duda apenas ficava calado, aterrorizado com as estranhas atitudes do pai. Petúnia também se calara, mas concordava com tudo o que era dito. Apenas Harry parecia realmente consciente e atento, curiosidade revirando-se dentro dele.
Por fim Válter saiu do carro e os trancou lá dentro. A chuva agora era mais forte e impiedosa. Petúnia tinha um estranho sorriso nos lábios e Duda resmungava algo sobre “televisão”. Quando ele disse que era terça-feira que Harry realmente prestou atenção.
Duda era confiável para saber os dias, já que sempre estava ligado à programação da TV. E se era terça-feira, claramente era trinta de julho. Harry faria aniversário à meia noite, na virada de trinta para trinta e um de julho. Na primeira hora do dia.
Os Dursleys jamais se importaram com os aniversários de Harry ou qualquer coisa relativa ao garoto. Mas não se completava onze anos todo dia. Sentia-se estranho, como se algo estivesse para acontecer.
Mas Tio Válter abriu o carro e os soltou. Trazia um embrulho fino e comprido e algumas embalagens. Um velhinho de olhar astuto estava ao seu lado, sorrindo sinistramente.
– Arranjei um lugar para passarmos a noite. E o bondoso senhor aqui nos emprestará seu barco para chegarmos lá – Informou o Sr. Dursley.
O motivo do barco foi explicado: eles estavam no litoral e o mar bramia furioso contra um rochedo onde um pequeno casebre se encarapitava no alto. Harry estremeceu, mesmo que a escuridão das nuvens densas o confortassem. Não gostara dali.
O barco chegou ao rochedo com mais água dentro do que fora. Logo os três entraram, com uma tempestade os açoitando implacavelmente.
Os embrulhos trazidos pelo Tio se revelaram como alguns cereais e quatro bananas, embora ele não tenha mostrado o que era o embrulho fino e comprido que ficava sempre às vistas. Eles comeram, mas as caixas de cereal carbonizaram rapidamente quando foram colocadas na lareira. Ao fim, os Dursleys e Harry foram dormir.
Havia apenas um quarto e o casal ficara com ele. Duda ficara com o desconfortável sofá e sobrara para Harry o assoalho e um lençol ralo e quase invisível de tão esburacado.
A noite não seria fácil.

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Mais um capítulo postado! Obrigado à todos que comentaram, que leram sem comentar (COMENTEM! POR FAVOR!!!!) e os que deram uma espiada e disseram que leriam depois.
Esse é o "Ovo de Páscoa" que estou mandando, adiantado. Espero que gostem do capítulo e que comentem, o que será o meu "ovo de páscoa" ^^

Desejo uma Feliz Páscoa à vocês, que possam passar um ótimo feriado e voltarem sãos, salvos e mais gordinhos na segunda feira.

Até a próxima!


Preview do próximo capítulo:

"Harry sentiu a dor explodir mais forte, mordeu sua própria mão e quase gritou quando percebeu que conseguira fazê-la sangrar. Doía como nunca e agora o sangue manchava sua mão. Ele lambeu as pequenas gotas rubras e sentiu-se mais faminto, as bananas e o cereal há muito esquecidas.
Doze minutos.
Sentiu o estômago revirar e ânsias de vômito subiram por sua garganta. Dor. Era tudo o que sentia enquanto se remexia ao lado do bolo esculpido na poeira. Ele gemeu baixo de novo e sentiu seu lábio ser mordido pelos próprios dentes. Sangrou."

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