Capítulo 17



Capítulo 17

—Não posso entender —disse Potter depois do jantar—. Haviam passado quase
três anos, e alguns ainda estão vivos. As reservas de mantimentos acabaram. Pelo que pude observar, passam as horas de sol em estado de coma. — Potter sacudiu a cabeça—. Mas não estão mortos. Três anos, e não estão mortos. O que é que os mantém vivos?

Ruth tinha colocado o roupão de Potter. Por volta das cinco tinha começado a
tranqüilizar-se, tinha tomado banho e trocado de roupa. Seu corpo fraco se perdia entre as largas dobras do roupão. Havia jogado o cabelo para trás, atando-lhe na nuca com um laço.

Ruth deu um soquinho no pires de café.

—Nós os víamos freqüentemente —disse—. Temíamos de nos aproximar. Mas
acreditávamos que não eram perigosos.

—Você sabia que eles retornam depois de mortos? Ruth moveu negativamente a
cabeça.

—Não.

—E não se perguntavam quem eram os que atacavam de noite?

—Nunca pensamos que... —Ruth sacudiu a cabeça lentamente—. É difícil acreditar em algo assim.

—Acredito que sim —disse Potter.

Ruth comia em silêncio, e Potter a contemplava. Parecia incrível que fosse uma mulher normal. Parecia mentira que depois de tantos anos tivesse por fim uma companheira. Não só duvidava dela. Duvidava de que algo tão extraordinário pudesse ocorrer naquele lugar perdido.

—Me conte mais coisas sobre eles —disse Ruth. Potter se levantou e tirou a cafeteira do fogo. Serviu a Ruth outra xícara, serviu-se também, devolveu a cafeteira ao seu lugar e sentou-se.

—Como você está agora?
—Melhor. Obrigada.

Potter fez um gesto afirmativo e se serviu de uma colherinha de açúcar em seu café. Sentiu que ela o observava. O que estará pensando? Suspirou perguntando-se como poderia dissipar suas dúvidas. Durante um momento tinha decidido que confiava nela. Agora já não estava tão seguro.

—Ainda não confia em mim —disse Ruth como se lesse seus pensamentos.

—Não... não é isso —disse.

—É sim —disse Ruth pausadamente. Suspirou—. Oh, bem. Se você quer analisar
meu sangue, analise-o. Potter a olhou perturbado, perguntando se, se trataria de um truque. Bebeu um gole de café, tentando reprimir o movimento convulsivo de sua garganta. É absurdo, pensou, ser tão desconfiado.

Deixou a xícara na mesa.

—Bem —disse—. Muito bem.

Olhou a jovem, que tinha os olhos fixos no café.

—Se estiver você infectada —lhe disse-tratarei de curá-la por todos os meios. Ela o olhou nos olhos.

—E se não puder? fez-se um silêncio

—Bebamos primeiro —disse ao fim Potter.

Os dois beberam. Em seguida Potter perguntou:

—Vamos tentar agora?

—Por favor —disse a jovem—. Amanhã pela manhã. Sinto-me ainda... Amanhã pela manhã.

Terminaram o café em silêncio. Não sentia uma grande satisfação sabendo que
ia lhe analisar o sangue. Temia descobrir que estivesse infectada. Enquanto isso
passariam uma noite juntos. Ficariam mais perto, e possivelmente se sentissem atraídos um pelo outro. Quando no dia seguinte, tivesse que...
Mais tarde, na sala, tomaram um pouco de Porto olhando o mural e escutando a quarta sinfonia de Schubert.

—Nunca acreditaria —disse Ruth, mais animada—. Nunca teria acreditado que
voltaria a escutar música. Que beberia vinho. —Olhou a seu redor—. Tem feito um
excelente trabalho.

—Como era sua casa? —perguntou Potter.

—Não se parecia em nada a isto —disse Ruth—. Não tínhamos um...

—Como protegiam a casa? —interrompeu Potter.

—Oh —A jovem pensou um momento—. Tínhamos trancado as janelas, é obvio.
E usávamos cruzes.

—Nem sempre dá resultado —disse Potter serenamente, depois de olhá-la
um momento.

Ruth ficou surpreendida.

—Não?

—Por que um judeu tem que temer a cruz? —disse Potter —. Por que um vampiro que foi judeu tem que temê-la? Quase todos que temem converter-se em vampiros.

A maioria tem cegueira histérica diante dos espelhos. Mas a cruz... Bom, não acredito que nem um judeu, nem um hindu, nem um maometano, nem um ateu temessem a cruz.

Ruth ergueu o copo de vinho e continuou escutando Potter em silêncio.

—Por isso as cruzes nem sempre dão resultado —continuou Potter.

—Não me deixou terminar a frase —disse Ruth—. Utilizávamos alhos também.

—Acreditei que isso lhe provocava náuseas.

—E me provoca. Perdi mais de dez quilos neste último tempo. Estava doente.
Potter moveu a cabeça convencido. Mas enquanto ia à cozinha em busca de
outra garrafa de vinho pensou que ela já devia estar habituada ao alho depois de tanto tempo. Também podia não ter conseguido acostumar-se. Por que desconfiar agora? Na manhã seguinte examinaria o sangue. Estive sozinho muito tempo, pensou. Tornei-me tão incrédulo que duvido de tudo, a não ser que o veja no microscópio. Sou um bom filho de meu pai, maldita seja sua imagem.

De pé na escuridão da cozinha, desarrolhando a garrafa, Potter olhou para a sala. Ruth tinha o corpo de uma adolescente. Não parecia que tivesse tido dois filhos.
E o mais insólito em todo este assunto, pensou, é que não me provoca nenhuma
excitação. Se nos tivéssemos encontrado dois anos antes, possivelmente tudo tivesse sido diferente. Tinha passado momentos terríveis naqueles dias, momentos que obrigavam a aceitar qualquer solução, por mais espantosa que fosse.

Felizmente, tinha começado com os experimentos, e algo havia se acalmado em
seu interior. A salvação do monge refletiu Potter.

Agora não sentia quase nada. Só um leve movimento, sob os abruptos estratos da
abstinência. Estava contente de que sucedesse assim. E, além disso, não podia estar
seguro de que Ruth fosse a companheira esperada. Nem sabia tampouco se na manhã seguinte poderia continuar vivendo.

Curá-la? Era algo quase impossível.

Voltou para a sala com a garrafa aberta. Ruth sorriu delicadamente enquanto Potter lhe servia vinho.

—Estive contemplando o mural —disse a jovem—. Primeiro, acreditaria-se, que em vez de uma parede, há um bosque.

Potter emitiu um grunhido.

—Deve lhe haver custado muito acondicionar assim a casa.

—Você pode imaginar —disse Potter —. Você passou pelo mesmo.

—Não tínhamos nada semelhante —disse ela—. Era uma casa pequena. Em
nossa geladeira não cabia quase nada.

—Deve-lhes ter faltado comida —disse Potter olhando-a atentamente.

—Comíamos conservas —disse a jovem.

Potter moveu a cabeça. Era uma resposta lógica, devia reconhecê-lo. Mas não
gostava. Era só uma suspeita, sabia, mas não gostava.

—E a água? —perguntou.

Ruth o olhou em silencio durante um momento.

—Não acredita uma só palavra do que conto, não é mesmo?

—Não é isso —disse Potter —. Interessa-me conhecer sua forma de vida.

—É inútil, não pode dissimular. Esteve sozinho muito tempo. Perdeu a capacidade
de mentir.

Potter grunhiu. Tinha a impressão de que a jovem zombava dele. É ridículo,
argumentou. É só uma moça. Certamente tem razão e a casa era um esconderijo
escuro e desgraçado.

—Me fale de seu marido —disse de repente.

A sombra de uma lembrança cruzou a cara da jovem. Aproximou-se o copo aos lábios.

—Não agora —disse—. Por favor.

Potter se recostou na poltrona, sem saber por que se sentia irritado. As palavras da mulher podiam ser verdade. Também podiam ser mentira.

Mas o que ganharia mentindo? Perguntou-se. Amanhã lhe analisarei o sangue. Do que lhe serviria mentir agora se em seguida conhecerei a verdade?

—Sabe —disse Potter tratando de distender aquela rigidez—, Estive pensando que, se três pessoas puderam sobreviver à praga, por que não mais?

—Você acredita que pode ser? —perguntou a jovem.

—Por que não? Haverá outros como nós.

—Me conte coisas sobre o vírus —disse ela.

Potter vacilou um momento, logo deixou o vinho sobre a mesa. E se lhe dissesse tudo?

E se ela fugisse e voltasse da morte conhecendo tudo o que ele sabia?

—É muito complicado.

—O que disse a respeito da cruz? —recordou a jovem—. Como tem certeza?

—Lembra o que lhe contei de Ben Cortman? —perguntou Potter, contente de voltar para algo que a mulher já sabia, e esquivando sua curiosidade.

—Este homem que você... Potter fez um sinal afirmativo.

—Sim. Venha —disse levantando-se-Lhe mostrarei. Quando estava junto a ela,
atrás do buraco, Potter sentiu que o aroma do cabelo e a pele da jovem não o agradavam.

Por que? Perguntou-se em seguida. Sou como Gulliver depois de visitar os cavalos
lógicos, o aroma humano me ofende.

—É o que está ao lado do poste —disse. A jovem assentiu.

—Por que são tão poucos?

—Matei a quase todos —disse Potter —. Só faltam esses.

—Como é que está aceso o poste? —perguntou Ruth—. Acreditei que tinham
destruído os circuitos elétricos.

—Sim, mas liguei o poste com meu gerador —disse Potter —. Assim posso vê-los bem.

—Não quebram a lâmpada?

—Protegi-a bem com arames.

—Não se empoleiram e tentam quebrá-la?
—Untei o poste com alho. Ruth sacudiu a cabeça.

—Não lhe escapa um detalhe.

Potter deu um passo atrás e a olhou um momento. Como pode olhá-los tão friamente, pensou, perguntar com tanta curiosidade, fazendo só uma semana que viu como destroçavam a seu marido? Mais dúvidas. Alguma vez elas cessariam?
Sabia que não, até saber definitivamente a verdade. Ruth se afastou do buraco.

—Me dá licença um momento? —disse.

Potter a seguiu com o olhar enquanto ela ia para o banho, e ouviu como fechava a
porta com chave. Em seguida fechou o buraco e voltou para poltrona. Um sorriso fatigado lhe apareceu nos lábios. Olhou o fundo do copo e coçou distraidamente a barba.

«Me dá licença um momento?».

As palavras da Ruth tinham soado grotescamente divertidas. Restos de uma
educação esquecida. Conselhos de Emily Post para quem vivia na tumba. Etiqueta
para vampiros adolescentes.

Cortou-lhe o sorriso.

E agora o que? O que proporcionaria o futuro? Estaria ela ainda ali uma semana
depois, ou no poço de fogo?

Potter sabia que se ela estava infectada trataria de curá-la por todos os meios. Mas e se não tinha o bacilo? De certa forma esta possibilidade era ainda mais enervante. No primeiro caso já sabia o que empreender, sem abandonar esquemas e normas. Mas se a jovem ficasse, teriam que estabelecer uma relação determinada, possivelmente ser marido e mulher, ter filhos...

Sim, isto era mais difícil.

De repente compreendeu que nestes anos se havia transformado em um solteirão
obstinado e mal-humorado. Não pensava já em sua mulher, sua filha, nem seu passado.

Bastava o presente. E temia as responsabilidades e os sacrifícios. Temia entregar-se de novo. Temia amar de novo.

Quando a jovem saiu do banho, Potter continuou na sala, pensando. O tocadisco
deixava ouvir somente o ruído da agulha.

Ruth deu a volta ao disco. Começou o terceiro movimento da sinfonia.

—Bom, e o que há com o Cortman? —perguntou sentando-se. Potter a olhou surpreso.

—Cortman?

—Ia me contar algo sobre ele e a cruz.

—Ah. Sim, uma noite o fiz entrar e lhe mostrei a cruz.

—O que aconteceu?

Matarei-a agora? Matarei-a e queimarei sem esperar a análise?

Potter sentiu que lhe faltava o ar. Pensamentos semelhantes davam testemunho
do mundo que havia agregado; um mundo terrível onde era mais fácil assassinar que esperar. Bom, não fui tão longe ainda, pensou. Sou um homem, não um animal destruidor.

—Tem algo errado? —disse a jovem nervosa.

—Por que?

—Crava-me o olhar.

—Desculpe-me —disse Potter friamente—. Estou... pensando.

A jovem não discutiu. Levantou o copo e Potter viu que tremia. Devia tomar cuidado.

Não queria que ela suspeitasse o que ele sentia.

—Quando lhe mostrei a cruz —continuou, Cortman desatou em risadas. Ruth fez um gesto de compreensão.

—Mas quando lhe mostrei o Torá diante dos olhos, reagiu violentamente.

—O que lhe colocou diante dos olhos?

—O Torá. Os livros da lei acreditam que esse é seu nome.

—Mas como... que reação lhe produziu?

—Tinha-o atado à cadeira, mas quando o viu se desatou de repente e me atacou. A
jovem parecia ter recuperado a confiança.

—O que aconteceu?

—Golpeou-me na cabeça com algum objeto contundente. Não recordo com que. Mas utilizei o Torá para subjugá-lo e fazer retroceder até a porta.

—Oh...

—Entende? A cruz não tem o poder absoluto que lhe confere a lenda. Quando a lenda apareceu na Europa, a cruz se converteu naturalmente em um símbolo defensivo por tratar-se de um continente católico. A cruz lutando contra o poder das trevas.

—Não podia ter disparado contra Cortman? —perguntou Ruth.

—Como sabe que eu tinha uma arma?

—Bom... imaginei. Nós tínhamos uma pistola.

—Então, já sabe que as balas não surtem efeito sobre os vampiros.

—Não... não tínhamos a certeza —disse a jovem, e acrescentou rapidamente—: Você sabe por que? Por que as balas não os destroem?

Potter negou com a cabeça.

Ficaram em silêncio, escutando a música.
Em realidade sabia, mas preferia não lhe dizer. Experimentando com vampiros mortos tinha averiguado que os bacilos provocavam a secreção de um líquido pegajoso que selava rapidamente as feridas de bala. O líquido envolvia as balas, as isolando, e os germes seguiam ativando o corpo. Disparar contra os vampiros era como lançar pedras à água. O líquido pegajoso impedia que as balas destruíssem qualquer órgão vital. Olhou a jovem, que estava arrumando-se nesse momento as dobras da saia.

Potter vislumbrou uma coxa morena, mas em vez de se excitar, irritou-se. Aquele era um típico truque feminino, pensou, um movimento forçado.
À medida que passava o tempo, sentia que ia afastando-se dela. Em certo sentido, até desejava não havê-la conhecido. Tinha alcançado certo equilíbrio com os anos, havia assumido a solidão, havia se acostumado a ela, e agora...
Para acalmar a ansiedade procurou seu cachimbo e o tabaco. Preparou o cachimbo e acendeu. Por um instante, pensou: Pergunto-lhe se incomoda a fumaça? Não, não
pergunto.

O disco terminou. A jovem se levantou e Potter viu como olhava as capas. Parecia uma adolescente, tão magra. Quem é?, pensou. Quem é realmente?

—Posso pôr isto? —perguntou a jovem mostrando um álbum. Potter respondeu sem olhar.

—Ponha o que quiser.

A jovem se sentou e começaram para ouvir os primeiros compassos do segundo
concerto de Rachmaninoff. Seus gostos não são notavelmente atrevidos, pensou
Potter olhando-a expressivamente.

—Me conte algo sobre você —disse a mulher.
Outra frase tipicamente feminina, pensou Potter. Em seguida acusou-se de suscetível.

Por que sua irritação aumentava?

—Não tenho nada que dizer.

A moça sorria de novo. Por acaso se enganava?

—Esta tarde me assustou terrivelmente —disse ela—. Com esse aspecto desalinhado.

E esse olhar selvagem.

Potter lançou uma baforada de fumaça. Olhar selvagem? Que ridículo comentário.

O que pretendia? Reduzir as distâncias com joguinhos?

—Que segredos esconde debaixo dessas barbas? Potter tratou de sorrir, mas não
pôde.

—Um rosto comum, simplesmente.

—Que idade tem, Harry?

Potter sentiu um nó na garganta. Era a primeira vez que lhe chamava por seu nome.

Ouvi-lo dos lábios de uma mulher, depois de três anos, era estranho e inquietante.

Não me chame assim, esteve a ponto de dizer. Não queria confiança. Se a mulher estava infectada e não podia curá-la, desfaria-se dela como de um estranho.

A jovem voltou a cabeça.

—Não tem por que responder se não quiser —disse serenamente—. Não lhe
incomodarei mais. Irei embora amanhã.

Potter se colocou rígido.

—Mas... —disse.

—Não quero mudar sua vida —disse ela—. Não tem por que se sentir obrigado...
porque somos... os únicos.

Potter a olhou fixamente e sentiu um calafrio de culpa. Por que não confio nela?,
Perguntou-se. Se estiver infectada, não sairá daqui com vida. O que posso temer?

—Perdão —disse—. Tenho... passado muito tempo sozinho. A mulher não levantou a vista.

—Se quer saber algo sobre mim —continuou Potter — Tratarei de agradá-la. A mulher duvidou. Em seguida olhou Potter com olhos profundos.

—Eu gostaria de saber algo sobre a enfermidade —disse ao fim—. Perderam as minhas duas filhas. E também a meu marido.

Potter a observou e logo disse:

—É um germe. Uma bactéria cilíndrica. Introduz no sangue uma solução isotônica. A circulação do sangue fica lenta. O bacilo vive no sangue. Sem ele os bacteriófagos o matam, ou passa ao estado de esporo.

A moça o olhou assombrada. Potter advertiu que não tinha informação de nada.

—Bom —continuou—, não importa. O esporo é um corpo de forma oval, com os
elementos básicos do bacilo comum. Se o vampiro se decompuser, os esporos,
transportados pelo vento, germinam em outros corpos e os infectam.

A mulher moveu a cabeça, incrédula.

—Os bacteriófagos são proteínas inanimadas. Neste caso o metabolismo anormal
destrói as células.

Em seguida Potter explicou, simplificando, os danos que o germe causava no sistema linfático. Citou o alho como elemento alérgico e outros sintomas da enfermidade.

—Por que acredita que somos imunes? —perguntou a jovem.

Durante um momento Potter a olhou sem responder. Ao fim se encolheu de ombros, e disse:

—Não sei nada sobre você. Quanto a mim, quando estava no Panamá, durante
a guerra, mordeu-me um morcego. E embora não possa demonstrar-lhe, acredito
que havia mordido antes a algum vampiro, contraindo assim a doença. O germe lhe obrigou a consumir sangue humano. Mas, felizmente, era um germe débil, e embora estivesse terrivelmente doente, não cheguei a morrer. Meu corpo então ficou imunizado.

Esta é minha teoria. E, por hora, não encontro uma explicação melhor.

—Mas... não existirão outras pessoas que lhes ocorreu o mesmo?

—Não sei —disse Potter serenamente—. Matei o morcego. —encolheu-se de ombros-Possivelmente não tinha atacado a mais ninguém.

A mulher olhou-o sem dizer uma palavra, e Potter se sentiu incômodo. Começou a falar de novo, mas esta vez sem vontade.

Referiu-se sumariamente às dificuldades com que tinha deparado em seus estudos.

—No princípio acreditei que as estacas deviam atravessar o coração. Era a
lenda. Descobri depois, que não era imprescindível. Atravessava-lhes qualquer parte do corpo e morriam igualmente. Pensei então que a hemorragia matava-os, mas um dia...

E Potter lhe contou o caso da mulher que se tinha desintegrado diante dos seus olhos.

—Então me dava conta de que não era a hemorragia —continuou Potter recordando satisfeito seu descobrimento—. Não sabia o que fazer. No fim, um dia encontrei a solução.

—Que solução? —perguntou a jovem.

—Experimentei com um vampiro morto. Pus-lhe o braço em uma câmara pneumática e cravei-o no vazio. Saiu sangue. — Potter fez uma pausa—. Isso foi tudo.

A mulher o olhou fixamente sem compreender.

—Não entendeu —disse Potter.

—Eu... não —admitiu ela.

—Quando entrou ar na câmara, o braço se decompôs. A moça seguiu escutando
atentamente.

—O bacilo —disse Potter — é um organismo saprófito e pode viver com ou sem
oxigênio, mas no sangue é anaeróbico e vive em simbiose com o vampiro. O vampiro o alimenta com seu sangue, e o germe lhe proporciona energia.

—Sim? —disse a jovem.

—Quando entra o ar —prosseguiu Potter —, a situação do germe troca:
transforma-se em aeróbico e a simbiose se interrompe. O bacilo fica em situação
de parasita, e com sua particular violência, devora o hóspede.

—Então a estaca... —começou a dizer a mulher.

—Deixa entrar ar, naturalmente. E mantém a abertura na carne. O líquido
pegajoso não fecha as feridas como no caso das balas. O coração, pois, não é
essencial. Basta abrir os pulsos — Potter sorriu fracamente—. Quando penso no tempo que investi fazendo estacas!

Ela manifestou sua compreensão. O copo que tinha ainda na mão, o deixou na mesa.

—Por isso aquela mulher —disse Potter — se decompôs tão depressa. Tinha
estado morta muito tempo, e quando entrou o ar, o germe provocou uma
desintegração imediata.

Um estremecimento percorreu o corpo da jovem.

—É horrível —disse.

Potter a olhou surpreso. Horrível? Era curioso. Não o havia ocorrido pensá-lo durante anos. Para ele a palavra «horrível» carecia de significado. Um horror acumulado termina por converter-se em costume. Para Potter a situação se reduzia a simples feitos, nada mais. Não se qualificavam.

—E o que acontece com aqueles... que ainda continuam vivos? —perguntou ela.

—Bom —disse Potter — quando lhes cortam as veias, o germe atua como lhe expliquei.

Mas a maioria morre simplesmente por hemorragia.

—Simplesmente por hemorragia —repetiu a jovem, e voltou a cabeça.

—O que houve? —perguntou Potter.

—Nada. Nada. Potter sorriu.

—Uns se acostumam a estas coisas —disse—. É obrigado. A jovem voltou a
estremecer-se.

—Acredite em mim —disse Potter —. Não há outro caminho. Seria melhor deixá-los morrer da doença, para que depois voltem convertidos em vampiros?

Ela se apertou as mãos.

—Mas você disse que há muitos ainda vivos —recordou nervosamente—. Como sabe que não seguirão assim?

—Sei —disse Potter —. estudei o germe. Sei como se reproduz. O organismo luta, mas ao fim o germe sempre ganha. Empregaram antibióticos, mas não servem de nada.

É inevitável. As vacinas não imunizam tampouco nos casos avançados. Não se pode lutar contra os germes e de uma vez elaborar anticorpos. É assim, acredite. Se não os mato, cedo ou tarde morrerão, e então virão me buscar. Não há mais alternativa.

Potter e a jovem calaram-se e na sala só se ouviu o som da agulha roçando os sulcos interiores do disco. Ela tinha o olhar fixo no chão. É curioso, pensou Potter, justificar agora o que ontem parecia necessário. Nunca havia pensado que podia estar equivocado. A presença da mulher despertava agora outros pensamentos.

Pensamentos estranhos.

—Acredita que estou equivocado? —perguntou Potter com voz incrédula. A jovem se mordeu o lábio inferior e evitou a resposta.

—Ruth —disse Potter.

—Eu não posso julgá-lo —disse ao fim.

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