Capítulo 16
Capítulo 16
A moça dormia. Eram quatro da tarde. Potter tinha entrado pelo menos vinte vezes no dormitório para verificar se ela tinha despertado. Agora, na cozinha, tomava café e pensava.
E se estiver doente?, Perguntava a si mesmo.
Começou a preocupar-se a umas poucas horas atrás e agora não podia deixar de
pensar nisso. Não importavam as razões. Tinha a pele queimada pelo sol. Tinha-a visto à luz do dia. Também o cão tinha andado à luz do dia.
Os dedos de Potter não cessavam de tamborilar sobre a mesa.
A simplicidade do princípio havia desaparecido. O sonho havia se convertido em uma complexa história. Não tinha ocorrido abraços efusivos, nem doces palavras. Alcançar-lhe no campo havia sido um triunfo. Conseguir que entrasse na casa, um pouco mais difícil ainda.
Ela havia resistido lhe suplicando que não a matasse. Não escutava o que
Potter lhe dizia; só chorava e implorava. Potter tinha imaginado uma cena própria de Hollywood: Os dois entrariam abraçados, olhando-se aos olhos, e as imagens se
perderiam nas sombras. Em vez disso, teve que brigar, discutir, e lutar.
Uma vez dentro, a mulher havia adotado a mesma atitude que o cão; encolhida em um canto. Não queria comer, nem beber nada. Finalmente, Potter decidiu arrastá-la ao dormitório e trancá-la sob chave.
Suspirou desanimado, brincando com a asa da xícara.
Em todo esse tempo, pensou, sonhei em ter uma companheira. E agora, a primeira
coisa que faço é desconfiar e a tratá-la com impaciência e crueldade.
E, entretanto, não estava preparado para ter outro comportamento. Tinha vivido
muito só durante este último tempo. Não importava que ela tivesse uma aparência normal. Tinha visto muitos em estado de coma, e aparentemente pareciam tão sãos como ela. Aquela caminhada sob o sol não era suficiente. Havia duvidado muito.
Não podia acreditar que houvesse mais pessoas normais. E depois da primeira impressão, o dogma aceito durante anos havia voltado a impor-se.
Potter se levantou com evidente cansaço e voltou para dormitório. A mulher seguia como antes. Possivelmente entrou em coma, pensou.
Deteve-se junto à cama, observando-a. Ruth. Havia tantas coisas que ele
desejaria saber... E, entretanto quase temia saber. Pois se ela era como os outros, só
havia uma solução. E de gente que alguém deve eliminar é melhor ignorar sua existência.
Potter retorceu as mãos, observando inexpressivamente à mulher. E se havia
saído do coma por um tempo e tinha-se posto a caminhar? Parecia possível. E entretanto, havia estudado que os germes resistiam á qualquer coisa exceto à luz do sol. Por que isso não era suficiente para convencê-lo?
Bom, podia fazer algo para resolver a dúvida.
Inclinou-se para ela e lhe colocou uma mão no ombro.
—Acorde —disse sacudindo-a.
A mulher continuou imóvel. A Potter ficaram rígidas as mandíbulas e os dedos se
fecharam sobre o ombro.
E de repente percebeu a correntinha de ouro que a moça usava no pescoço. Potter a
pegou com pulso inseguro e a tirou de debaixo do vestido.
Olhava ainda a cruz quando a mulher abriu os olhos, movendo lentamente a cabeça sobre o travesseiro. Não está em coma, pensou Potter.
—O que está fazendo? —perguntou a mulher com um fio de voz. Era mais difícil
desconfiar dela quando falava. O timbre de uma voz humana era algo tão especial que Potter não podia resistir.
—Estava... Nada —disse.
Potter retrocedeu torpemente e se apoiou na parede. Olhou para a mulher durante um momento. Em seguida lhe perguntou:
—De onde você é?
A jovem cravou nele um olhar inexpressivo.
—Perguntei-lhe de onde você é —repetiu Potter.
Tampouco agora houve resposta. Potter se retirou da parede com um olhar duro.
—Inglewood —se apressou a dizer a mulher.
—Certo —disse Potter —. Vivia... Sozinha?
—Com meu marido.
—E onde ele está agora?
—Está... Morto —sussurrou ela entrecortadamente.
—Quando?
—Faz uma semana.
—E o que você fez então?
—Fugi. —A mulher se mordeu o lábio inferior—. Fugi.
—Quer dizer que tem ido de um lado a outro desde então?
—S-sim.
Potter a olhou sem fazer mais perguntas. Em seguida se virou e foi para a cozinha.
Abriu a porta de um armário e pegou um punhado de dentes de alho. Colocou-os em um prato, cortou-os e os amassou. Um aroma acre brotou do interior.
Quando Potter voltou, a mulher estava meio levantada, apoiando-se em um cotovelo.
Sem vacilar, Potter lhe aproximou o prato do nariz.
A mulher virou a cabeça protestando.
—O que está fazendo? —perguntou, e tossiu uma vez.
—Por que vira a cabeça?
—Por favor...
—Me diga por que vira a cabeça.
—O aroma! —A voz da jovem se quebrou em um soluço—. É insuportável!
Potter lhe colocou o prato ainda mais perto. Com uma visível náusea, a mulher
se afastou, apertando-se contra a parede e tirando as pernas da cama.
—Chega! Por favor!
Potter afastou o prato e observou que a mulher estava enjoada, levando as
mãos ao estômago.
—Você é um deles —disse com um frio desprezo.
A mulher se sentou de repente, levantou-se e correu ao banheiro. Deu uma portada e Potter ouviu como vomitava.
Apertando os lábios com raiva, colocou o prato no criado-mudo. Infectada. Com certeza.
Havia estudado há um ano, que os organismos infectados com o bacilo vampirus eram alérgicos ao aroma do alho. Os tecidos estimulados pelo tubérculo sensibilizavam as células, provocando reações anormais. Se lhes injetava sulfureto de alho nas veias, a reação era quase nula. Não ocorria o mesmo quando lhes submetia a aspirar o aroma.
Potter se sentou pesadamente na cama. A mulher tinha reagido negativamente. Depois de um momento, franziu o cenho. Se o que ela havia contado era certo, se havia perambulado durante uma semana, naturalmente estaria fraca e esgotada, e nessas condições qualquer pessoa podia vomitar tão somente com o aroma do alho.
Deixou cair o punho sobre a colcha. Então, não tinha nenhuma certeza, nada definitivo.
E, objetivamente, sabia que não podia tomar decisão alguma. As provas
eram insuficientes. Havia aprendido forçosamente no trabalho, e não o podia ignorar.
Continuou sentado na cama quando a mulher saiu do banho e ficou no corredor,
olhando-a. Logo voltou para a sala. Potter se levantou e a seguiu. Quando chegou à sala já a encontrou sentada no sofá.
—Está satisfeito? —perguntou-lhe a mulher.
—Não importa —disse Potter —. É você quem está em observação, não eu.
A mulher levantou o olhar irado como se fosse dizer algo. Em seguida, relaxou e sacudiu a cabeça de um lado a outro. Potter sentiu um repentino impulso de simpatia.
Potter se sentou em uma cadeira, contemplando-a. A mulher olhava o chão.
—Escute —disse Potter —. Há indícios de que está infectada. Obviamente por sua
reação diante do alho.
A mulher continuou em silêncio.
—Não tem nada a argumentar? —insistiu Potter. A mulher ergueu os olhos.
—Você acredita que sou um deles —disse.
—Pode ser.
—E o que acha disto? —perguntou a mulher mostrando a cruz.
—Não significa nada —disse Potter.
—Estou acordada. Não estou em coma.
Potter não replicou. Era algo que não podia saber com certeza e não aliviava suas
dúvidas.
—Estive em Inglewood muitas vezes —disse ao fim—. Como não ouviu o ruído
do motor?
—Inglewood é muito grande —disse ela.
Potter a olhou com atenção, golpeando com a mão a borda da cadeira.
—Eu... eu adoraria acreditar —disse.
—Sim? —perguntou a mulher.
Em seguida se dobrou para frente, com os lábios apertados, o ventre contraído.
Potter não se alterou. Durante muito tempo só tinha contado com a companhia dos mortos. Sentia-se vazio e com as emoções bloqueadas.
Quando se recuperou, a mulher levantou os olhos. Olhou duramente a Potter.
—Tive um estômago delicado durante toda a vida —disse—. A semana passada vi
morrer meu marido, feito em pedaços. Diante de meus próprios olhos. Perdi dois meninos por causa da praga. E nestes últimos dias vaguei que um lado a outro, me escondendo durante a noite e sem comer. Desequilibrada pelo medo, dormindo á intervalos. De repente ouço que alguém grita. Você me persegue, me golpeia e me arrasta. E logo, porque não tolero o aroma de um prato de alhos sob meu nariz, diz que estou infectada! —A mulher retorceu a mãos—. O que você esperava? —perguntou, e se apoiou contra o encosto do sofá, fechando os olhos, mexendo nervosamente no vestido. Por um momento tentou pôr em seu lugar o pedaço rasgado, mas o tecido tornou a cair, e a jovem deixou escapar um soluço de impotência.
Potter se inclinou para frente. Começava a sentir peso na consciência agora, apesar de suas suspeitas e dúvidas. Não podia evitá-lo. Tinha esquecido como soluçavam as mulheres. Levantou lentamente uma mão e a olhou, acariciando-a barba.
—Permitiria... —começou e se deteve. Tragou um pouco de saliva e
continuou—: Permitiria que lhe tirasse uma amostra de sangue? Eu...
A mulher se levantou ofendida e cambaleando-se dirigiu para a porta. Potter se
levantou também.
—O que está fazendo? —perguntou.
A mulher não respondeu. Suas mãos procuravam torpemente como abrir a fechadura.
—Não pode sair —disse Potter, alarmado—. Dentro de poucos minutos a rua estará cheia deles.
—Não vou continuar aqui —soluçou ela—. O que lhe importa se me matarem?
A mão de Potter se fechou sobre o braço da jovem, que o rechaçou zangada.
—Me deixe sozinha! —exclamou—. Não lhe pedi que me trouxesse aqui. Por que não me deixa partir?
Potter ficou a seu lado, sem saber o que dizer.
—Não pode sair! —repetiu.
Convenceu-a para que voltasse para sofá. Logo lhe serviu um pouco de uísque. Não importa se está infectada ou não, pensou, não importa. Alcançou-lhe o copo. A mulher moveu a cabeça negativamente.
—Beba-o —disse Potter —. A tranqüilizará um pouco. A jovem o olhou com raiva.
—Assim poderá me passar mais alho pela cara? Potter negou com um gesto.
—Beba —disse.
Passou um momento e no fim a mulher cedeu. O uísque a fez tossir. Deixou o copo no braço do sofá, estremecendo-se.
—Por que quer que eu fique? —perguntou chorosa. Potter a olhou sem saber o que
responder. Ao fim disse:
—Embora esteja infectada não posso deixá-la sair. Não imagina o que lhe fariam. A
mulher fechou os olhos.
—Não me importa —disse.
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