Capitulo 1
CAPITULO I
Lorraine Nealy prendera pequenas setas amarelas nas páginas datilografadas.
— Aqui, aqui e aqui — ela reforçava enquanto ia colocando os documentos sobre a mesa. As setas de papel que pareciam dizer "assine aqui, palhaço", eram tão desnecessárias quanto as indicações verbais, mas Harry Potter não protestou, apenas assinou em todas as linhas indicadas. Sempre que era interrompida, Lorraine retomava a tarefa do início. Harry estava quase terminando de assinar os papéis e não tinha a menor intenção de voltar ao ponto de partida.
— Lorraine — ele disse finalmente, quando sua assistente, e era assim que ela insistia em ser chamada, sempre pronta para anunciar que não era uma secretária, recolheu os documentos —, o que eu faria sem você?
— Murcharia e morreria, sr. Potter. O escritório cairia sobre sua cabeça e a desolação seria inevitável.
Com pouco mais de cinquenta anos, Lorraine trabalhava para a Potter Mídia Holdings há trinta e havia se convencido de que era o elo que mantinha a PMH operando. Ela fora assistente pessoal de James Potter até o dia em que o pai de Harry decidira passar o comando para o filho caçula, e agora Lorraine administrava a PMH através de Harry, como ela costumava dizer a todos que perguntavam. E aos que não perguntavam também.
Harry sorriu, levantou-se e vestiu o paletó que deixara pendurado nas costas da cadeira.
— Nesse caso, creio que posso ir embora mais cedo. Sei que a PMH está em mãos competentes e confiáveis. Precisa de mim para mais alguma coisa?
— Nada. Seu colarinho está torto.
Harry ajeitou a camisa e a gravata. Aos trinta e um anos, ainda não havia adotado a política da PMH de promover a casualidade todas as sextas-feiras, embora houvesse abraçado com entusiasmo a opção de trabalhar em casa nesses dias. Só havia ido ao escritório para assinar alguns contratos, e estava mais do que pronto para começar a planejar o final de semana.
Depois de arrumar o colarinho, ele passou as mãos pelos cabelos pretos, antes que Lorraine pudesse dizer que estavam em desalinho, e pegou a pasta de couro.
— Posso ir, Lorraine? — perguntou, já a caminho da porta.
— Na verdade...
O tom de voz da assistente o fez parar no meio da sala.
— Não, esqueça. Eu me livro dela. Saia pela porta lateral.
— Ela... quem? — Harry perguntou intrigado, olhando para a porta que dava acesso à sala de Lorraine e à recepção.
— Ela... A mulher que está sentada em minha sala há uma hora, incapaz de compreender uma sugestão sutil e desistir. Ela.
— Essa mulher não marcou uma entrevista? Não. E claro que não. Nunca marco nada para as tardes de sexta-feira. E ela não foi embora? Uau! Lorraine, deve estar perdendo seu toque especial. Quando você diz não, homens fortes tremem. Eu tremo.
— Eu disse talvez...
— Você disse... talvez? Você nunca diz talvez, Lorraine. Sim, não, de jeito nenhum... Mas talvez? Nunca. O que essa mulher quer? Ela veio pedir donativos para os poodles sem-teto e tocou seu único ponto fraco?
— Não existem poodles sem-teto, sr. Potter. Eles são tão adoráveis, que sempre encontram um lar.
— E verdade. Só na sua casa são... Quantos? Dez?
— Seis, e todos esperam que eu chegue no máximo em uma hora para alimentá-los. Sendo assim, se puder sair pela porta lateral, eu voltarei à minha sala e direi à srta. Granger que o sr. Potter já encerrou o expediente e deixou a empresa.
— Srta. Granger? Foi isso que disse, Lorraine? Annette Granger? Não, não pode ser. Agora ela é Annette 'Meara.
— Não é Annette. Quem está sentada em minha sala é a srta. Hermione Granger. Vou dizer a ela que você já foi embora. Quer que eu marque uma entrevista para o mês que vêm?
Não, não queria que Lorraine marcasse uma entrevista com Hermione para o mês que vêm. O que realmente desejava era que Lorraine providenciasse o embarque de Hermione Granger numa espaçonave com destino a Marte. E seria uma viagem de férias para toda a família, de forma que Sam e Annette também poderia ir.
Carrancudo, Harry voltou para perto da mesa e deixou a pasta sobre a superfície polida.
— O que ela quer?
— O que todos querem? — Lorraine devolveu. — Um emprego. Acham que podem vir aqui, piscar seus lindos olhos castanhos para você, passar pelo Departamento Pessoal e publicar um artigo assinado em seis meses. É claro que o Pulitzer viria em seguida. Como eu disse, vou me livrar dela. Devia ter feito isso há uma hora.
— Por que não fez?
— Porque... — Lorraine encolheu os ombros. — Bem, ela parece ser tão frágil, tão indefesa! Toda arrumada, sem nenhum lugar especial aonde ir. E ela não parece estar mais feliz do que eu com sua presença em minha sala. Pensei que talvez não estivesse procurando por um emprego. Achei que poderia convencê-la a contar-me o que queria, o que ela dizia ser uma questão pessoal, mas foi inútil. Nem mesmo meus biscoitos caseiros de manteiga de amendoim foram suficientes para fazê-la falar.
— Puxa! — Harry tirou o paletó e pendurou-o no mesmo lugar de antes. Mantendo a atmosfera leve para que a assistente não suspeitasse de nada, continuou: — Quando seus biscoitos de manteiga de amendoim falham, não há mais nada a fazer. Estou surpreso por não ter chamado a Segurança e expulsado a srta. Granger a pontapés.
— Eu também. De qualquer maneira, agora sei que posso relaxar. A sra. Granger não veio anunciar a chegada de um Potter inesperado, porque você parece realmente surpreso com sua presença, e porque é um bom garoto. As vezes, E então? Vai recebê-la?
Harry sentou-se em sua cadeira e ignorou a primeira parte do discurso de Lorraine, porque estava acostumado com seus comentários quase maternais.
— Sim, vou recebê-la. Mas você pode ir para casa depois de trazê-la à minha sala. E não se preocupe. Jason e eu tivemos três aulas de caratê quando éramos crianças. Ela não vai conseguir me dominar.
— Seu pai nunca foi debochado. Ele nunca teria feito esse comentário, ou aquele outro sobre meus biscoitos de manteiga de amendoim.
— É verdade. Mas você me ama. Até se preocupa comigo, e devo ser meio maluco, porque gosto disso. Dê-me cinco minutos, e depois mande-a entrar.
Precisava de cinco minutos para pensar em Hermione Granger, para sufocar a raiva que surgia como uma reação imediata sempre que ouvia o nome Granger. Precisava de tempo para lembrar que seis anos haviam se passado. Não era mais o idiota sugestionável de antes, e poderia ouvir o que quer que Hermione tivesse a dizer sem perder o controle ou sentir novamente a velha dor das feridas já cicatrizadas.
Seis anos. Era muito tempo, mas talvez não fosse o bastante, porque ainda podia recordar tudo com nitidez quase vergonhosa.
Como havia sido ingênuo, estúpido e idiota. Acabara de se formar e estivera pronto para conquistar o mundo, mas à sua maneira. Recusara a oferta de emprego do pai na PMH e partira para progredir por conta própria, sem a ajuda da família. E havia conseguido. Só ingressara na PMH depois de ter provado sua competência e sua capacidade. Fora bem-sucedido, exceto por aquele rápido envolvimento com os Granger.
Um envolvimento profissional e emocional, ambos dolorosos. Harry apoiou os cotovelos sobre a mesa, escondeu o rosto entre as mãos e entregou-se às lembranças por alguns minutos.
Ingressara na companhia de Sam Granger cheio de esperança, e quando conhecera e se apaixonara rapidamente pela filha mais velha de Sam, Annette, tudo assumira a aparência perfeita de um conto de fadas.
Devia ter percebido...
Sam Granger o recebera como se fosse seu filho, aprovara o noivado e começara a planejar um grandioso casamento para toda a sociedade. Até aí, tudo bem. Harry gostava do simpático Sam, amava sua encantadora filha Annete, uma loira pequenina de traços delicados, e tinha um relacionamento de compreensão e ternura com a solene e séria filha caçula, Hermione.
Harry sorriu ao lembrar-se de Hermione. Uma garota adorável. A irmã caçula que ele nunca tivera. Sentira uma certa pena dela, da criança sem mãe cujo pai estava sempre a ressaltar a maior diferença entre as duas filhas: Annette tinha a beleza, Hermione, a inteligência. E Sam Granger acreditava que a inteligência em uma mulher era tão útil e adequada quanto suspensórios em um bíquini.
Quantos anos ela tinha naquela época? Dezessete? Sim, mais ou menos isso. Ainda estava no colégio interno, e Harry costumava ir visitá-la sempre, porque sabia que a pobrezinha sentia saudade de casa, e porque a escola ficava na estrada que levava à casa dos pais dele em Prosperino, na Califórnia. Costumava ir visitá-la, levava coisas de que ela precisava, e acabara envolvido em um de seus projetos escolares.
Gostaria de saber qual havia sido o resultado daquele trabalho, se ela obtivera uma boa nota... Mas não faria perguntas, porque isso fazia parte do passado, como seu emprego na empresa de Granger e seu noivado com Annette.
— Bastardo — ele resmungou, pensando em Sam Granger e no dia em que ele o chamara ao seu escritório para uma conversa. Conversa? Sam jogara alguns papéis sobre a mesa e anunciara que havia providenciado um acordo pré-nupcial que incluía algumas ações da PMH. Ações deveriam ser passadas para o nome dele. Como se Harry pudesse exigir tal coisa do pai!
— Eu devia ter percebido... — disse a si mesmo, lembrando-se de como saíra do escritório de Sam, agarrara a mão de Annette e a levara para fora da casa, onde dissera a ela que tinham um problema. Por que não fugiam? Entrariam no carro e estariam em Reno ao cair da noite. Na manhã seguinte se casariam... — Idiota! Estúpido!
Annette se recusara a fugir. De fato, a menos que ele assinasse o tal acordo pré-nupcial, ela não se casaria. E nem fingira amá-lo. Não se dera ao trabalho de mentir. Annette via a união com Harry como vantajosa para o pai, financeiramente, e para ela, socialmente. Sem as ações da PMH, de repente havia sido Harry quem se tornara inútil como suspensórios em um biquini.
Oh, sim! Queria alguém da família Granger em seu escritório.
No entanto, aquela era Hermione. E ela nunca fizera nada de mal, certo? Havia sido tão jovem e inocente quando ele fora estúpido e tolo. Hermione não tinha culpa por ser filha de um canalha e irmã de uma interesseira sem escrúpulos e sem coração.
Harry estendeu a mão e pressionou o botão do interfone.
— Mande-a entrar, Lorraine, e depois vá para casa.
Ele se levantou para ir recebê-la no meio da sala. Era o mínimo que podia fazer.
A porta se abriu e Lorraine afastou-se para permitir a entrada da visitante.
— A srta. Hermione Granger, senhor — ela anunciou. — E eu estou indo embora. Não faça nada que eu não faria.
— Obrigado, Lorraine — Harry respondeu, imaginando quantos anos teria de ter, quantos títulos deveria conquistar, para que a mulher o tratasse como adulto. Provavelmente, jamais ficaria tão velho.
Hermione Granger não havia crescido muito. Ainda tinha cerca de um metro e sessenta e quatro centímetros de altura, o que a tornava sete centímetros mais alta que Annette. Seus cabelos ainda eram castanhos, mais um contraste com a irmã, cujos cabelos eram loiros como o sol, e agora Hermione usava um penteado mais formal, um coque discreto, no lugar do rabo-de-cavalo de antes.
O corpo esguio também não sofrera muitas transformações. Pernas longas e bem torneadas, cintura e quadris estreitos, ombros largos... Os olhos eram castanhos como uísque e pareciam assustados, embora permanecessem cravados no carpete.
Pele pálida. Lembrava-se do trabalho que ela redigira sobre os efeitos nocivos da exposição excessiva ao sol. Hermione conseguira a nota máxima. Era evidente que ela também se lembrava daquela pesquisa, porque as sardas que antes cobriam seu nariz e parte das faces haviam desaparecido. Então ele notou o batom, o blush e a sombra sobre os olhos. Ela estava linda, mas não lembrava Hermione. Ou melhor, parecia Hermione tentando imitar Annette.
E isso o deixava muito zangado.
— Como vai, Hermione?— Harry perguntou com tom frio. — Que prazer inesperado.
Ela o encarou e sorriu.
— Duvido, Harry James.
— Harry James... Puxa, ninguém me chama pelo meu nome inteiro há anos! Você era a única que me tratava por ele.
Cansado de vê-la de cabeça baixa, temendo que ela fugisse da sala a qualquer minuto, ele a levou para a pequena saleta informal montada em um canto do escritório. As poltronas em torno da mesa de café tornavam aquela área mais agradável e propícia do que a porção central da sala, onde ficava a mesa imponente.
— Não devia tê-lo chamado de Harry James — ela disse ao se sentar. — Desculpe-me.
— Bobagem! Gosto do nome. — Harry acomodou-se na cadeira do outro lado da mesa. — E então, como tem passado?
— Eu... acabei de me formar.
— E deve ter conquistado o diploma com honras. Você sempre foi uma excelente aluna. — Ela estava muito nervosa. Seria sua presença que a intimidava?
— E você, Harry? Li nos jornais sobre como seu pai passou o controle da empresa para você. Construiu uma companhia próspera e lucrativa, e ainda recebeu a incumbência de administrar os negócios da família. No artigo que li, o repórter o chamava de magnata genial.
— Não acredite em tudo que lê nos jornais, Hermione. — A última coisa que queria era discutir suas finanças com um Granger. — Como vai a família?
Um rubor tingiu seu rosto, dando à pele uma tonalidade mais natural do que aquela conferida pela maquiagem.
— Annette entrou com o pedido de divórcio na semana passada.
— Realmente? Que pena. — Que interesse poderia ter nos assuntos pessoais de Annette? Nenhum, certamente. Não se importava com o que ela fazia ou deixava de fazer.
— Acho que ela se arrependeu, Harry. Sei que Annette rompeu o noivado com você depois de ter conhecido Robert, mas também sei que ela compreendeu seu engano logo depois. Robert O'Meara não é exatamente... Bem, digamos que ele e Annette não têm muito em comum.
— Robert O'Meara deve ter sessenta anos de idade, Hermione. Como eles poderiam ter algo em comum? O homem é tão velho quanto Sam! — Harry levantou as duas mãos e abaixou a cabeça, assinalando que não devia ter dito aquilo e que não pretendia insistir no assunto. Por outro lado, precisava saber. — Foi isso que eles contaram? Disseram que Annette conheceu O'Meara e rompeu comigo por causa dele?
— Não é verdade? Eu sempre presumi...
— Não, não, é claro que é verdade. Agi como um cavalheiro e saí do caminho do feliz casal. Só lamento não ter ido até o colégio interno para despedir-me de você. Conseguiu uma boa nota naquele trabalho que fizemos juntos?
— Sim, a nota máxima. Obrigada.
— Eu só consegui o material para a pesquisa. O mérito foi seu. — Harry levantou-se e foi até o bar para servir água em dois copos. Tinha a garganta seca e contraída, e estava zangado com Hermione por ter ido até ali, por despertar lembranças que ele preferia ter mantido enterradas. No entanto, era melhor enfrentar tudo de uma vez. — E seu pai? Como vai Sam?
Ela mordeu o lábio e abaixou a cabeça. Mau sinal.
— O que foi, Hermione? Ele está doente?
— Não.
— Mas não está bem?
Silêncio.
— Hermione, é evidente que veio ao meu escritório para falar sobre Sam. Sendo assim, por que não vamos direto ao ponto? Ele a mandou aqui?
— Não! Ele nem sabe que estou aqui. Ninguém sabe. Acho que nem eu sei por que estou aqui. De qualquer maneira, creio que ter vindo foi um engano. — Ela deixou o copo sobre a mesa, pegou a bolsa e levantou-se. — Adeus, Harry. Foi... muito bom revê-lo.
— Sente-se. Agora.
O tom autoritário surtiu efeito, e ela se sentou, embora não o encarasse.
Harry esperou que ela apanhasse um lenço para enxugar as lágrimas que começavam a brotar de seus olhos. Depois inclinou-se para a frente e respirou fundo.
— Vai me contar qual é o problema, ou terei de ameaçar não levá-la para comer pizza?
A referência aos velhos tempos, quando ele aparecia no colégio interno e a salvava da comida do refeitório, serviu para acalmá-la. Hermione ofereceu um sorriso fraco.
— Não vai me deixar comer o pimentão da pizza?
— Exatamente. — Era melhor não dizer que seu rímel estava borrado, ou ela ficaria ainda mais insegura e constrangida. — Por favor, preciso saber o que veio fazer aqui.
Ela ficou em silêncio por alguns instantes, como se reunisse forças para a realização de uma tarefa muito difícil.
— Eu... — começou. — A companhia de papai está com problemas. Problemas sérios.
— Que pena. — Era difícil conter o impulso que ameaçava dominá-lo. Queria correr ao computador e entrar na Internet para descobrir a verdadeira situaçao da empresa de Sam, porque assim poderia empurrá-lo para a falência ainda mais depressa.
— Papai está no fundo do poço. E a culpa é de Robert, é claro.
— Do marido de Annette? Por que acha que ele é culpado pelos problemas de seu pai?
— Bem, não tenho certeza de nada, mas Annette contou que Robert havia prometido investir uma soma considerável na companhia de papai e ainda dar a ele algumas ações de sua empresa. Seria como um presente de casamento, um... dote.
— Entendo o que quero dizer. — Era difícil banir da voz o tom ressentido. — E daí? O que aconteceu?
— Robert não contou a meu pai que estava enterrado em dívidas, nem que a Secretaria da Receita Federal tinha meia dúzia de hipotecas de sua empresa e ainda o estava processando como pessoa física.
— Em termos mais claros, o bom e velho Robert não só estava falido, como também devia a meio mundo. É isso?
— Exatamente. Os advogados de meu pai e de Robert mantiveram toda a situação em segredo por sete anos, evitando levar a questão aos tribunais, mas agora as duas companhias enfrentam problemas.
— E Annette pediu o divórcio. Nada como uma esposa leal!
— Oh, não! Annette sentiu-se no dever de cumprir seus votos. Ela mesma me contou. Mas depois Robert... Bem, ele foi infiel, e minha irmã não conseguiu perdoá-lo por isso. E não a culpo por ter preferido o fim do casamento a um marido que a traía.
Como alguém podia engolir tantas mentiras? Harry pensou em oferecer mais um copo de água a Hermione para ajudá-la a empurrar garganta abaixo a fantasiosa versão de Annette sobre o fim do casamento, mas mudou de ideia. Afinal, era um bom rapaz, e Hermione não precisava saber que o pai era um bastardo e a irmã se prostituíra por dinheiro. A única diferença era que as prostitutas comuns recebiam.
— Veio aqui a fim de interceder por sua irmã?
— Interceder? Como assim?
— Esqueça. — Esperava estar enganado. Não podia acreditar que Hermione fora procurá-lo com a intenção de convencê-lo a encontrar Annette e ouvi-la falar de seu arrependimento. Não queria pensar que Hermione tentaria persuadi-lo de que Annette estava arrependida, que o amava e o queria de volta... junto com seu dinheiro. Sabia que não tinha um estômago forte o bastante para ouvir tais coisas. Além do mais, pelo que Hermione dissera e pelo que não dissera, era evidente que ela desconhecia as verdadeiras causas do fim do romance há seis anos. —Acho que estou ficando velho e paranóico. Mas... você estava falando sobre os problemas da empresa de Sam. Em que posso ajudar? — Como se quisesse ajudar!
— Harry, vou falar de uma vez, antes que eu perca a coragem. Papai meteu na cabeça que devo me casar com Victor Krum. Você o conhece?
De onde havia tirado a ideia de que nada do que ela dissesse poderia mudar a opinião que tinha a respeito de Sam Granger? E por que havia pensado que o homem não podia descer ainda mais baixo?
— Victor Krum? — perguntou, tentando imaginar o sujeito asqueroso e grosseiro com Hermione. Beijando seus lábios. Tocando seu corpo. Destruindo sua inocência. A ideia o enojava. — Aquele homem foi casado seis vezes! Seu pai não devia permitir que ele se aproximasse de você!
— Cinco vezes. E papai explicou que Victor poderia salvar-nos da ruína financeira, desde que eu concordasse com o casamento. Ele... Papai acha que tenho o dever de ajudá-lo me casando com um homem rico.
— Sam Granger não vale nada! Não vai aceitar essa imposição absurda, vai? — Harry voltou ao bar, dessa vez para servir uísque em seu copo.
— Não quero aceitá-la. Por isso estou aqui.
Oh, não! Não podia estar vivendo a mesma situação pela segunda vez.
— Continue.
— Sei que estou pedindo demais, mas... podemos considerar tudo isso como um empréstimo. E você teria parte da companhia de meu pai. Sei que Victor teria quarenta por cento dela quando... se nos casássemos. E você nem teria de se casar comigo. Quero dizer, não seria necessário, não é? Teríamos apenas um acordo comercial. Você ajudaria meu pai, ele passaria parte da empresa para o seu nome. Sei que ainda compra negócios em dificuldades, além de administrar a PMH. Li tudo isso naquele artigo do jornal. Ninguém além de você pode tornar a empresa de meu pai lucrativa. O magnata com o toque de Midas, como escreveu o jornalista. — Hermione encarou-o com os olhos castanhos borrados pelo rímel. — Sei que não tenho o direito de lhe pedir algo tão grandioso. Mas não posso me casar com Victor Krum, Harry. Não posso!
— Então fuja. Saia de casa. Agora é uma mulher adulta. E se quiser mandar Sam Granger para o inferno antes de sair, conte com o meu apoio.
— Também não posso abandonar meu pai. Ele me disse algo na semana passada que preferia não ter ouvido e... Tenho uma dívida de gratidão com ele.
— Dívida? Sam acha que merece ser recompensado por tê-la mandado para a escola, por ter comprado seus sapatos e oferecido alimentação? Pelo amor de Deus! Nenhum pai cobra esse tipo de coisa de um filho! Quero dizer, nenhum pai normal.
— Ele não é meu pai. Ele me disse há uma semana... Sam não é meu pai. Minha mãe confessou uma infidelidade pouco antes de morrer. Ela mesma revelou que Annette é filha dele, mas eu... Minha mãe morreu quando eu tinha cinco anos. Papai... Sam sabe disso desde então. Sempre imaginei por que não havia nenhuma semelhança entre Annette e eu. Agora entendo. Agora sei muitas coisas.
Harry tinha a sensação de ter sido atingido por um soco no estômago. Perturbado, serviu uma dose de uísque em outro copo e colocou-o na mão de Hermione.
— Beba isso. Vai servir para acalmá-la.
Ela sorveu um pequeno gole da bebida e fez uma careta.
— Ainda me sinto entorpecida, como se estivesse fora do mundo.
— Mas acha que tem uma dívida moral com Sam. Por quê? Por ele ter contado esse monte de...
— O que ele disse é verdade, Harry. Sam me mostrou uma carta escrita por meu verdadeiro pai. Ele encontrou o envelope entre as coisas de minha mãe. O homem era coronel da Força Aérea e morreu em um desastre de avião pouco antes de eu ter nascido. A... a carta anunciava que ele deixaria a Espanha dentro de três semanas para fugir com minha mãe. Como pode perceber, Sam não mentiu. Não sou uma Granger.
— É como eu sempre digo, Hermione. Tudo tem seu lado positivo.
Sabia que o comentário sarcástico era inoportuno, mas não pudera contê-lo. Só um bastardo como Sam Granger teria guardado um segredo tão grave por tantos anos para usá-lo como arma em um momento conveniente. E contra a própria filha! Hermione podia ter sido concebida por outro homem, mas fora criada por ele. Que tipo de homem podia ser tão frio e calculista?
— Pode me ajudar, Harry? Sei que tudo parece um pouco absurdo, mas sinto que, se puder ajudar Sam a salvar a companhia, terei conseguido recompensá-lo ao menos em parte por como minha mãe o enganou e traiu. Mas... não suporto a ideia de casar-me com Victor Krum. E odeio meu pai por tê-la sugerido, apesar de reconhecer minha dívida de gratidão. Se puder injetar o capital necessário na empresa... Por favor, Harry, seja meu cavaleiro andante! Você é o único herói que conheço — ela concluiu com um sorriso triste.
Harry respirou fundo para conter a explosão que se formava em seu peito. Até aquele minuto, havia esquecido a desconfiança que tivera sobre uma possível paixão da adolescente Hermione pelo maduro Harry Potter. Mas, nem mesmo naqueles tempos, jamais imaginara que ela pudesse considerá-lo um herói. O papel era desconfortável demais.
Sabia que Hermione desconhecia a participação voluntária da irmã na primeira tentativa de Sam de obter recompensa financeira através do casamento das filhas. Pelo que ouvira pouco antes, Hermione acreditava que Annette conhecera Robert O'Meara, apaixonara-se por ele e rompera o noivado.
Desconhecendo a verdade, lá estava ela, a doce e jovem Hermione, tentando convencer o velho amigo, o ex-noivo da irmã, seu herói, a ajudar esse mesmo homem a escapar da ruína financeira.
A única diferença era que Hermione fora oferecida a Victor Krum e, magnânima, havia dito que Harry nem precisaria se casar. Teria simplesmente de ajudá-la a salvar Sam Granger, um homem a quem teria jogado uma âncora, caso o encontrasse perdido em alto-mar.
— O que vai acontecer se eu atender ao seu pedido? Sei que não se casaria com Krum. Mas o que faria de sua vida? Continuaria na casa de Sam, esperando pela próxima vez em que ele a pressionasse cobrando velhas dívidas?
— Próxima vez? Acha que haveria uma próxima vez? Não, Harry. Amo meu pai, mas sou capaz de reconhecer seus defeitos. Também não sou cega aos defeitos de Annette, embora prefira não criticá-la neste momento. Não aqui, em seu escritório. No entanto, passei muitos anos sendo a esquisita, a forasteira, e agora entendo porquê. Muitas questões foram respondidas durante a última semana. Mas não posso simplesmente abandoná-lo, Harry. Tenho mesmo uma dívida com Sam. Isso não significa que não sairei da casa dele, caso encontre outra forma de ajudá-lo. Certamente deixarei aquela casa, e sem olhar para trás.
Harry assentiu.
— Você cresceu, Hermione — disse, segurando a mão dela para ajudá-la a levantar-se. Uma ideia começava a se formar em sua cabeça, e precisava de tempo para refletir. — O que acha de continuarmos conversando enquanto comemos uma pizza?
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