Crepúsculo
Ela pousou as mãos delicadamente sobre o colo e verificou as horas no relógio da parede. Já haviam se passado quase duas horas do horário combinado e ele não costumava atrasar. Havia preparado um belo jantar para comemorar aquela data especial e, agora, o jantar esfriava sobre a mesa. Dois candelabros de prata ostentavam cada um uma vela branca que, a esta altura, já queimavam pela metade. Ele disse que, se por acaso houvesse algum imprevisto, avisaria com prontidão, entretanto, ao que parece, ele esqueceu. Ela olhou os pratos de porcelana, as taças de cristal, os talheres de prata e o belíssimo arranjo de pervincas, com seu habitual tom azulado, no meio da mesa. Passara todo o dia preparando tudo para que aquela noite fosse mais especial do que já era. Era impossível ele ter esquecido, afinal, ele nunca esquecia.
Ginny levantou-se calmamente da cadeira em que estava sentada há horas e arrumou o seu vestido de seda. Com um leve sopro, apagou as velas na mesa e observou as linhas de fumaça acinzentadas subirem num elegante espiral. Caminhou até a janela e pôs a mão no vidro. Encarou a rua vazia e esperou mais alguns minutos. Instintivamente, olhou uma vez mais o relógio na parede. Ninguém apareceu. Já era hora de ficar preocupada.
Estava absorta em pensamentos quando o telefone tocou. Como se estivesse saindo de um transe, correu para atender à chamada. Ao ouvir a voz do outro lado, com um certo ar de frustração, constatou que não era quem esperava que fosse. Respondia com pouco interesse cada indagação feita pela pessoa na linha, sempre olhando para a porta.
De repente, seu rosto foi aos poucos perdendo a cor. As sardas em seu rosto e os cabelos vermelhos contrastavam com a palidez que agora residia em sua face. Ela não pronunciou mais nenhuma palavra, apenas ouvia cada palavra dita. Ao fim da conversa, colocou o telefone no gancho, trêmula, caiu de joelhos no chão frio e chorou. Ninguém podia vê-la ou ouvi-la. Não havia necessidade de ser forte.
O espelho ficava no canto oposto à porta e Ginny se olhava apreensiva. Uma lágrima correu pelo seu olho, ela sorriu timidamente. Observou a cadeira ao seu lado por um instante e pegou as luvas de renda brancas que lá se encontravam.
- Você ainda não está pronta, querida? – Uma senhora morena entrou no quarto. Trajava um vestido lilás de musselina forrada de cetim e bordados e sorria largamente. – Tudo bem que é tradição a noiva atrasar, mas... O que foi?
Ginny virou-se lentamente. Já havia posto as luvas e, junto com o vestido branco de renda bordada, parecia uma princesa saída de um conto de fadas. Seus cabelos ruivos presos num coque firme e ornamentados com uma tiara de cristal e pérolas. Ela sorriu gentilmente para a senhora a sua frente, mas não podia esconder as lágrimas que insistiam em cair.
- Você está chorando? – A mulher puxou um lenço da bolsinha que carregava consigo. – No dia do seu casamento? Tem certeza que quer mesmo se casar, minha querida?
- Tenho certeza, Sra. Godley. – Ginny a encarou com relutância.
- Não me parece tão confiante assim. – A mulher enxugou o rosto de Ginny com carinho.
- É que... – Ginny virou o rosto. – Minha mãe... Queria que ela estivesse aqui. Na verdade, todos eles.
- Eu sei como se sente, minha querida, mas, infelizmente... – A sra. Godley mediu as palavras que devia pronunciar, sabia que qualquer coisa que dissesse talvez piorasse a situação, então resolveu mudar de assunto. – Trouxe uma coisa que talvez deixe você mais animada.
De dentro da bolsa, a Senhora Godley retirou uma caixa de veludo preto e abriu para mostrar o conteúdo para Ginny. Um pequeno pingente de prata e diamantes reluziu na pouca luz do recinto.
- Era da minha avó. – A mulher sorriu constrangida. – Queria que ficasse com você.
- Eu não poderia... – Ginny começou.
- Não diga que não pode. - ela a encarou firmemente. – Ele é seu. Não tive nenhuma filha e, como você mesma pode ver, não sou mais tão jovem, não é? Quero que fique com isto porque a considero como uma filha.
- Obrigado. – A garota pegou o pingente e o colocou no pescoço.
- Veja como ficou lindo em você. – A mulher abriu um sorriso largo. – Realçou ainda mais sua beleza. Agora que já lhe dei o presente mais especial da noite, que tal irmos lá fora. Sabia que tem um noivo altamente nervoso lá fora, pensando que você fugiu pela janela?
Ginny sorriu, as tristezas que a afligiam agora a pouco haviam se dissipado. Pegou o buquê na mesinha de canto e, ao lado da Sra. Godley, cruzou a porta rumo aos jardins.
- Outra coisa. – A mulher parou um pouco à frente da noiva. – Desde quando parou de me chamar de Helena? – Ginny deu uma gargalhada alegre e prosseguiu.
O jardim estava repleto de convidados, o sol já começava a se pôr no horizonte e o céu sem nuvens passava de um azul vivo para um violeta intenso. Quando Ginny apareceu no tapete vermelho, sentiu todos os olhares em sua direção, ela corou um pouco. Olhou para o alto antes de começar a caminhar em direção ao altar. “Nunca haverá um céu igual a outro. Dia ou noite, nunca haverá”, pensou. O noivo fez questão de casar ao pôr-do-sol, e ela não entendia o porquê. Deu dois passos largos, porém lentos, para frente e o viu no altar a sua espera. Não havia porque hesitar. Sabia que estava, exatamente, onde devia estar.
Ao chegar no altar, ele estendeu a mão gentilmente para ela e sorriu. Seus cabelos cacheados e castanhos, muito bem penteados para trás. Os olhos brilhavam e transpareciam uma felicidade extrema. Antes de ficarem frente a frente com o reverendo, ele cochichou no ouvido da sua amada.
- Não acredito que você conseguiu ficar ainda mais linda do que já é.
Ginny encarou o seu noivo e devolveu o sorriso.
- Estamos aqui reunidos para celebrar a união desses dois jovens. – O reverendo levantou as mãos. – Ben Godley e Ginevra Weasley.
Ginny saiu de casa antes do nascer do sol. Trancou a porta e saiu sem olhar para trás. Levava um ramalhete de pervincas na mão direita e com um pequeno lenço, enxugava as lágrimas que insistiam em cair. Seu rosto estava vermelho e inchado, denunciando que passara a noite inteira chorando. Haviam se passado três dias desde que recebera aquele telefonema, desde o quinto aniversário de casamento, desde que o seu marido morreu, e ela não conseguia, evidentemente, se conformar.
Seguiu solitária e silenciosamente pela rua vazia. Preferia assim, não queria que os outros a vissem abatida como estava. Não era do seu feitio demonstrar fraqueza, e não agüentaria ver a cara de piedade que, obviamente, lançariam. Foram três dias horríveis. Sorte sua que Helena Godley, sua sogra, resolveu todos os preparativos para o funeral. Não dormiu e nem conseguiu comer nada nesse meio tempo. Estava arrasada. A única coisa que manteve sua sanidade naquela casa foi o jardim de pervincas, as flores preferidas de Ben.
- Ben Godley, - continuou o reverendo. – Aceita Ginevra Weasley como sua esposa? Promete amá-la e respeitá-la, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, todos os dias da sua vida?
- Aceito. – quando o reverendo ia fazer a mesma pergunta para Ginny, ele continuou sorrindo. – Todos os dias em que viver e toda a eternidade em que minha alma existir.
Ginny sorriu e o abraçou, logo depois, sem mais nem menos, o beijou por alguns minutos. O reverendo, constrangido, pigarreou umas duas vezes, esperando com isso continuar a cerimônia, e dando-se por vencido.
- Acho que, pelo visto, não preciso fazer a mesma pergunta à noiva. – O reverendo não esperou que sua voz soasse tão alta. Todos os convidados caíram na gargalhada. E, aparentemente, encheu de felicidade o reverendo, que continuou na brincadeira. – E nem preciso dizer ao noivo: “Pode beijar a noiva”, pois ela já se precipitou. – mais uma leva de gargalhadas. – Portanto, eu os declaro marido e mulher. E... Continuem se beijando, que eu vou descer para não sair nas fotografias do casamento.
Ben Godley afastou o rosto lentamente. Com a mão direita, agora com uma aliança de ouro branco no dedo anelar, afagou carinhosamente o rosto de sua esposa, a outra mão ainda segurava a mão de Ginny. Depois virou para os convidados.
- Obrigado a todos por estarem aqui reunidos para prestigiar a nossa divina união matrimonial. – Ginny apertou a mão firmemente, para demonstrar seu apoio e que sentia o mesmo. – Fiz questão que essa cerimônia fosse realizada num pôr-do-sol, numa demonstração simbólica do fim de uma vida, uma vida sem a minha Ginny. Pois, a próxima vez que vir o sol novamente, serei um homem completo, com o amor de minha vida ao meu lado para todo o sempre. Essa é minha nova vida.
Todos aplaudiram de pé quando ele parou de falar. Os noivos desceram do altar e seguiram pelo tapete vermelho. O sol já havia sumido completamente no horizonte e a noite fria começava a despontar. Alguns convidados jogavam pétalas de flores enquanto passavam, outros continuavam a aplaudir.
- Às vezes acho que não mereço tudo o que você faz por mim. – Ginny olhou para Ben de um jeito diferente. – Tudo o que você disse...
- Tudo o que eu disse é verdade. – Ben mantinha o olhar fixo nos dela. – Nunca duvide disso. E você... O que eu faço ou farei, nunca serão suficientes para fazer jus ao que você, realmente, merece. Vai me dar o prazer de uma dança?
- Você não existe, sabia? – Ginny sorriu.
- Tanto existo – Ele pegou uma das mãos dela e pôs em seu ombro. A outra ele segurou firme. – como estou aqui jurando amor eterno para você.
Num giro suave eles iniciaram os primeiros passos de valsa no salão ainda vazio. Todos os olhares, mais uma vez, estavam admirando-os. Os músicos orquestravam a Valsa das Flores, de Tchaikovsky. De cabeças erguidas e encarando um ao outro, os noivos deslizavam sobre o piso de madeira polida e brilhante, como se mais ninguém no mundo existisse e acompanhavam todas as nuances da música sendo tocada. Vê-los dançar tinha um efeito hipnótico, os movimentos que eles executavam eram perfeitos. Apenas quando a última nota da música foi tocada e eles pararam de dançar, os demais convidados invadiram o salão para dançarem a próxima melodia.
- Venha aqui, tenho uma coisa para lhe dar. – Ben puxou Ginny em um canto do jardim.
- Temos que cumprimentar os convidados, Ben.
- Só vai levar um minuto. – O rapaz levou-a a um canteiro de flores azuladas, abaixou-se e retirou uma de lá. – Tome.
- Obrigada, mas... – Ginny olhou intrigada para a flor de pervinca em sua mão.
- Essa flor tem um significado especial. – Ben olhou ao redor, para todas as flores no canteiro. – E demonstra o que eu acho dessa noite.
- Ainda não entendi. Qual o significado dela?
- “Lembrança eterna”. – ele beijou-a carinhosamente. – O que há entre nós... Nem a morte vai separar.
O metrô ainda não estava apinhado de gente, mas o raiar do sol já trazia consigo as primeiras pessoas que saiam apressadas para mais um dia de trabalho. Ginny sentou acuada num banco isolado. Segurava firme o ramalhete de pervincas, as flores favoritas dele. “Lembrança eterna”, lembrou ela. Longe disso, ela não queria que aquele momento fosse eterno. Aquela angústia e sofrimento. Queria que tudo aquilo fosse apenas um sonho. Queria acordar e Ben, sorrindo ao seu lado, dando-lhe beijos de bom dia. Lembrança eterna...
Ginny desceu uma estação antes da que devia. Queria andar mais um pouco, eram muitas memórias felizes que queria recordar. Andou por mais duas horas solitárias. Apesar da cidade já estar acordando, ela sentia como se estivesse envolta em silêncio. Ao chegar aos portões do cemitério, um homem de aparência abatida estava parado diante dele, olhando para além da entrada. Usava uma capa escura e seus cabelos negros, embora estivesse de costas, dava para perceber que estavam revoltos.
Ginny aproximou-se devagar e entrou no cemitério.
- Ginny?
A voz lhe soou estranhamente familiar. Olhou para trás de relance e o homem a encarava com lágrimas nos olhos. Uma cicatriz em forma de raio estampada na testa e os óculos de armação redonda ornamentava seu rosto que, apesar das lágrimas, demonstravam felicidade.
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