Uma festa muito esperada no Zô



Capítulo Dois
Uma festa muito esperada no Zôo


Dez anos se passaram desde que o pequeno Arry Rettop fora deixado na soleira da Rua dos Alfabetos, 4. As sombras no passado há muito esquecidas. E ainda hoje, Pontalta Brandedursley se recordava do susto que levara ao ver o sobrinho de sua recém-odiada irmã ali.
A pequena aberração.
- Perderam o orgulho por essa... coisa! – dissera Pontalta ao marido naquela terrível manhã. – E acabaram se explodindo. E nós? Terminamos com esta vergonha em miniatura.
- Podemos jogá-lo no orfanato de Contrato – sugerira Alto, na época. – Ninguém precisa saber. Ou quem sabe podemos pedir aos N que o deixem na porta de qualquer daqueles – e deixou a frase morrer no ar.
Seus vizinhos descobrirem que eles, os Brandedursley, o que havia de maior naquelas bandas, tinham ligação com aquele tipinho de gente, ainda que contra sua total vontade e ego, era uma humilhação que não poderia suportar.
Eles? Os Brandedursley? Deus, não!
Pontalta olhou da criança estirada no sofá para o marido e disse:
- Não, Alto, ele vai ter de ficar. – o disquete pendendo na mão.
E assim foi. Arry Rettop permaneceu na casa dos tios que lhe deram por quarto o armário debaixo da pia da cozinha. Com seu tamanho de frangote era perfeito no conserto e na manutenção da encanação.
Como também seria bom pra encarnação. O que seu primo, Dedão, logo descobriu. Todos os dias ele cutucava Arry em seu armário. E às vezes o segurava para que os outros colegas da escola também o fizessem.
A vida de Arry era insuportável. Pois além disso tudo, ele era a pessoa mais baixa em todo o bairro. De vez em quando se perguntava se não seria a mais baixa do mundo. Todos que conhecia, seja na vizinhança ou na escola, eram maiores do que ele. Dedão tinha quase meio metro a mais de altura.
Entretanto a infelicidade do menino Rettop era ainda maior no aniversário do primo.
Todos anos Dedão Brandedursley recebia presentes caros e grandes, tudo com o qual o pobre Arry sempre sonhara. E o pior, saía com os pais para parques temáticos e tantas maravilhas mais que somente a imaginação do menino poderia conceber.
- O mundo grande é perigoso para você, Arry. – seu tio sempre dizia ao bater a porta na saída.
Uma porta comum para os demais mas que media uma imensidão para Arry Rettop. Porque Arry Rettop era um tampinha, como diria Dedãozinho.
Devido a este holocausto o garoto hoje estava de cara amassada, desanimado, sentado à mesa da cozinha. Hoje era o décimo primeiro aniversário de Dedão e seus queridos pais decidiram que este era um bom número. Um número especial cujo merecia uma comemoração especial.
Hoje Dedão e seu amigo Pedreira iriam ao Zôo. Arry ficaria em casa, evidentemente.
E nem poderia usar um dos enormes brinquedos do primo, seria realmente perigoso para alguém de seu tamanho.
Devido ao passeio do Grande Dia em que Dedão faz Seu Magnânimo Soberbo Maravilhoso e Imensurável Aniversário, os Brandedursleys tomavam café às pressas. A mãe de Pedreira chegaria há qualquer momento para deixar o filho aos cuidados de Pontalta – esta que no momento observava o movimento no mundo lá fora nesse dia feliz.

Oh, Happy Day!!! Oh, Happy Day!!! When Jesus wash…
(Oh, Dia Feliz!!! Oh, Dia Feliz!!! Quando Jesus lavou...)

Dizia a música ao fundo.
Arry tinha suas dúvidas a respeito...
Só que Arry estava enganado. Mesmo entre todos as confusões deste “Happy Day”, hoje seria um ótimo dia para si. A começar pelo contratempo de seus tios, e sua frustração.
O telefone tocou e Pontalta tratou logo de atender. Ouviu atentamente, a boca se comprimindo. Deu um sorriso fingido no final como se achasse que a pessoa do outro lado fosse vê-lo. De tamanha irritação, chegou a bater o telefone de maneira nada cordial.
- Alto, temos um problema – disse desanimada.
Dedão, que até agora remexia a pilha imensa de brinquedos que recebera de todas as piratagens da família, ergueu a face para mãe. Estava pressentindo.
E não podia acreditar.
- A Srta. Figgy se acidentou em seu... hum, trabalho... ontem e, bem, não poderá ficar com Ele – indicou Arry com os olhos.
A Srta Figgy cuidava de Arry todas as vezes em que os Brandedursleys precisavam sair. Era uma mulher jovem, de uns trinta anos, tinha pernas fortes, sempre expostas. Sua casa estava sempre iluminada por abajures avermelhados, e algumas vezes ela dizia a Arry que um dia lhe ensinaria umas coisinhas bem divertidas...
- Merda, Pontalta! – rugiu Alto sem pensar.
- Alto, Dedão está ouvindo!
- Caralho – proferiu Dedão antes que o pai pudesse se desculpar. – Eu não quero que ele vá. Ele é pequeno. É uma vergonha para a família. Ele estraga tudo! – e fingiu chorar.
- Calma, querido, vamos dar um jeito. – repeliu sua mãe.
Mas Pontalta não pode cumprir a promessa. Já estavam em cima da hora, e entre levar o pequinês e deixá-lo em casa, coberta de objetos grandes e perigosos, preferira levá-lo. Não podiam correr o risco de serem processados pela União Britânica de Proteção aos H... Deus, se os vizinhos descobrissem...
Quando Dedão, mesmo na frente de Pedreira, fez sua falsa cara de choro e replicou que não iria de forma alguma com o primo para o zôo, a mulher apenas lhe olhou inexpressiva e disse:
- Ele vai. Ponto final. – passou o cinto pelo corpo. – Podemos desistir se quiser.
Foi o suficiente. Em poucos minutos tomavam a estrada para o zôo. Nesse meio tempo uma outra coisa extraordinária ocorreu a Arry Rettop. O dia hoje aspirava diversos acontecimentos extraordinários. Pena que para o pobre Arry a fonte se esgotaria em breve.
Enquanto o carro em que se encontravam aguardava o semáforo abrir no cruzamento, Arry avistou um homenzinho pequeno, não muito maior que ele. Estava parado num beco, escondido nas sombras, o mirando desconfiado.
Num piscar de olhos ele desapareceu.
E o carro voltou a rodar.
Arry não tinha muita certeza sobre essa aparições que volta e outra entravam em sua vida. Pessoas pequenas, embora maiores que ele, com o rostos adultos. E pés descalços! Começara a reparar nesse detalhe. Como sempre, o olhavam, acenavam, ou apenas sorriam, e sumiam nas sombras.
E ninguém parecia vê-los a não ser Arry, o que era ainda mais estranho. Um pouco assustador, também.
Os pés, pensou Arry Rettop sem qualquer idéia concreta, tocam o chão com suavidade. São bem sorrateiros. Velozes que só.
Pegou-se imaginando que seria bom se eles aparecessem qualquer dia. Para conversar ou coisa assim. Era muito solitário ser o único pequeno em um mundo de pessoas grandes. Era muito vazio não ter nenhum amigo.


Logo na entrada do zôo uma pequena decepção para Arry.
Dedão e Pedreira ganharam imensos sorvetes de bola – com cinco delas cada, e de diferentes sabores – enquanto harry apenas um pequeno chiclete sabor jiló partido ao meio.
- Os sorvetes são grandes. – disfarçou tio Alto na frente do vendedor. – Muito perigosos pra você, Arry!
Dedão e Pedreira incharam de tanto rir.
Mas o chiclete, ou melhor, o meio chiclete, não era tão ruim quanto se pensava. Embora tivesse um gosto de cevada e fumo, bem diferente do gosto de jiló.
Após um longo passeio vendo imensos animais, do qual Arry muito sabiamente trato de ficar distante (os tios adorariam um motivo para se livrar dele. “Ele era pequeno, não tivemos tempo de socorrê-lo antes que decepassem sua cabecinha de rã”), Dedão começou a bocejar. Reclamava da monotonia do lugar.
Então, pensando em salvar ao passeio, os pais do menino o levaram a sala dos répteis. Era subterrânea e não muito bem iluminada por luminárias laterais verde-quartzo. Havia inúmeras espécies trancadas em redomas de vidro nas paredes. E muitas cobras, o que pareceu despertar o interesse do aniversariante.
Dedão parou ao lado de uma delas. Uma imensa, verde-escura, que se enroscava lentamente por um galho seco. Ela aparentava sono. Arry pensou que deveria ser incrivelmente chato viver ali, vendo todos os dias aquelas pessoas idiotas pondo suas caronas para observá-lo.
Dedão bateu no vidro.
- Faz ela se mexer – ordenou ao pai.
Alto martelou o dedo em formato de lingüiça no vidro, mas também não teve sucesso.
- Que chata! – rugiu Dedão, e saiu arrastando os pés, em direção aos outros animais.
Arry, no entanto, continuou a observar a jovem jibóia.
- Eles não compreendem – refletiu, desanimado.
A cobra se aproximou do vidro e balançou a cabeça afirmativamente. O garoto recuou assustado.
- Você entende o que eu digo?
A cobra tornou a fazer que sim.
- Incrível. – disse. Olhou para a placa ao lado da “cela” da cobra e leu: Amazônia, Brasil. – Mas você não é do Brasil? Como sabe inglês?
O réptil apontou para a placa.
Arry a olhou de novo, lendo agora, a pequena observação abaixo: EU FAÇO CULTURA INGLESA.
E um adesivo ao lado dizia: “É assim que se fala”
- Que bom. Não sabia que vocês do mundo subdesenvolvido podiam pagar por essas coisas.
- Nem eu. – sibilou a cobra.
Arry se sobressaltou. A cobra não poderia ter dito isso. Ela não poderia falar. Fora apenas sua imaginação, disse a si mesmo. Só a sua imaginação – o lindo mundo da imaginação.
A jibóia esfregou o rosto vagarosamente no vidro. Queria sair, Arry pensou. Queria ser livre! Nada de grades, vidros ou cercas. Havia vida fora do cárcere e ela queria estar nela.
Foi então que Dedão viu o que estava acontecendo. Pedreira e ele dispararam para Arry. Este já prevendo o que iria acontecer. Podia pressentir a dor do impacto o esmurrando para o piso, sob o peso da grande baleia Dedão. Nesse momento, Arry Rettop estirou o pé que mudaria a sua vida.
De imediato Dedão e Pedreira saíram voando ao tropeçar na perna do menino. Arry achava a concepção incrível, mas simplesmente o primo voara contra a jaula da jibóia se espatifando com o vidro. Caiu no pequeno lago que havia do outro lado, soterrado pelo amigo de escola.
A jibóia desceu graciosamente pelo piso e foi deslizando para saída. Disse obrigado a Arry (que se encolheu ainda mais, como se fosse possível), e começou a cantarolar poemas do livre-arbítrio em tão alto silvar: “Ser livre ou não ser? Eis a prisão. Peco por que peço, aqui tem macarrão. Deslizou pelas pradarias, rumo ao Brasil. Minha mãe Amazônia me aguarda, em liberdade juvenil”
Meses mais tarde a pobre jibóia seria morta, logo ao cruzar a fronteira do Amazonas, vítima de bala perdida, num assalto de moto-boys tupiniquins. Arry Rettop, no entanto, não chegaria a tomar conhecimento do ocorrido.


A pequena arapuca de Arry no Zôo teve graves conseqüências pra si. Principalmente quando o tio não engoliu a xaropada que o vidro tinha, misteriosamente, desaparecido. Mesmo porque Dedão havia se esvaído em sangue, lembrou Pontalta, na viagem de volta para casa. O que não deixava de ser verdade. Embora um pequeno exagero para quem só sofrera um mínimo arranhãozinho no mindinho direito.
Depois de Pedreira ir embora para casa, Alto chamou Arry num canto.
- O que eu lhe disse?
Arry se lembrou das falas do tio em sua cabeça. A conversa parecia ter ocorrido a milênios atrás. Ocorrera tanta coisa desde então. Homenzinhos que o espionavam, passeio no zôo, chiclete de jiló, cobras que falam, Dedão no lago...
A conversa de Alto e Arry se resumiu no seguinte. Pouco antes de saírem pro zôo o tio chamou o sobrinho num canto como agora e disse:
- Se você aprontar alguma coisinha. Qualquer coisinha...
- Não vai acontecer nada. – disse Arry, naquele momento. Falava com sinceridade. – Juro.
- Melhor pra você. – replicou Alto. – É uma pena não podermos deixa-lo, mas um anão poderia se machucar em uma casa grande.
E foi só.
O tio olhou friamente para Arry e repetiu a pergunta:
- O que eu lhe disse, baixote?
Arry se calou.
- Vai passar o restante da semana no armário da pia – avisou o tio. – E quero toda a encanação brilhando por lá – acrescentou.
- Estragando o aniversário do meu Dedãozinho!!! – bradou o tio aos céus entrando na Nº 4.
Bem, pensou Arry, esse era preço por tentar se divertir com Dedãozinho. Um preço alto até. Como sempre tudo era alto para Arry Rettop. Porque Arry sempre era baixo para tudo. Infeliz, entrou em casa, direto para a pia, arrependido do que fizera.
Mal podia imaginar que essa travessura seria o seu passaporte para um novo mundo. Menor e mais vivo. Mas ainda perigoso. Porque nenhum perigo é maior que o perigo da vida. Ainda mais, o da vida feliz.

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