A história de Hermes



O quarto estava escuro e gelado. Os cobertores eram acolhedores e quentes, mas sabia que não poderia continuar dormindo. Ou fingindo que dormia. De fato, sentia-se covarde. Não era exatamente isso que havia imaginado quando resolvera se juntar ao pai e desertar do campo de batalha vitorioso para se tornar um espião. Não espionava nada. Tinha apenas que aguardar a boa vontade de Draco e do professor de Poções para lhe contar sobre os próximos passos.

- Hermes estava no covil do Lorde das Trevas há pouco mais de um mês e começava a se considerar de braços cruzados. Fora um ou outro convite para uma reunião de emergência da Polícia Negra, raramente era inteirado de maneira satisfatória dos planos do lado das trevas. Pelo contrário, estas reuniões serviam apenas para ver alguém agonizar até a morte sob tortura, exatamente como havia acontecido com Wyrda. Ele os avisara, e foi esse o único contato que teve com os amigos desde que decidiu se meter naquela confusão. E o aviso havia sido transmitido pela metade, já que Snape o vira utilizando a Rede-de-Flu e quase arrancara fora a sua cabeça.

- Moleque insolente e irresponsável! – xingou, em sua habitual voz de veludo, de tom irônico constante. - O que acha que está fazendo? Quer colocar o nosso plano a perder por uma simples troca de carinhos com seus amiguinhos? Você escolheu seu lado, rapaz. Saiba honrá-lo.

- Se ao menos vocês me contassem quais são os planos, e não apenas me fizessem tomar parte nas etapas essenciais... – reclamou Hermes entre dentes.

- Para quê quer saber? Contaria correndo à sua corja? Você não vale o risco – disse Snape, abandonando o quarto e deixando atrás de si uma sombra negra, como um borrão errado e mal distribuído pelo ar.

Hermes queria odiá-lo, mas não conseguia. Por mais que o ex-professor de Poções e membro oficial da Polícia Negra fosse um homem amargo e sem piedade, sabia que era sua única esperança de voltar para o lado certo. Talvez até mesmo representasse aquilo que mantinha Hermes e seu próprio pai vivos. Snape tinha a confiança do Lorde das Trevas, mas estava traindo seu mestre. A curiosidade de Hermes teria dado um dedo para saber o por quê.

Assim como acontecia com Snape, não adiantava perguntar para Draco o que estava acontecendo, pois ele se mantinha, na maior parte do tempo, calado e taciturno. Hermes não gostava de observá-lo com muita atenção, pois isso fazia seu estômago gelar: era como se o pai tivesse envelhecido uns 30 anos desde que abandonara Gina. O garoto também sentia falta da mãe todos os dias, mas não tocava no assunto. Acreditava que a ferida ainda estava aberta demais para poder cutucá-la, e não seria displicente nesse ponto, porque também lhe provocava dor.

Naquela manhã, quando chutou para longe as cobertas e se obrigou a se levantar para mais um dia igual a todos os outros, Hermes não sabia o que estava por vir. Um café-da-manhã ligeiramente inusitado e uma perseguição às escondidas desencadeariam uma sucessão de acontecimentos que culminaria no adiantamento dos planos e no reencontro com os amigos. E, melhor ainda, muniria o garoto com uma informação preciosa, que ele descobriria sozinho, e que o faria estufar o peito de orgulho para transmiti-la mais tarde aos amigos.

Porém, o garoto ainda não sabia de nada daquilo enquanto se vestia, escovava os dentes e se dirigia arrastando os pés para a sala de refeições. A mansão do Lorde das Trevas era gigantesca, toda feita de pedra negra, como um castelo de filmes de terror trouxas, as paredes cobertas com tapeçarias grossas e empoeiradas e quadros que mostravam bruxos puros-sangue de linhagens antigas e famosas, incluindo um retrato a óleo do próprio Salazar Slytherin. Havia tanto luxo e riqueza por onde quer que se passasse que isso chegava a provocar enjôo. Estava aborrecido porque sabia que levaria uma bronca no momento em que entrasse na sala de refeições, pois Voldemort apreciava a presença de todos os seus fiéis seguidores à mesa na hora das refeições. Ao menos os que não estavam em alguma missão sangrenta e assassina a mando do mestre.

- Vejo que o pequeno Malfoy se deu ao luxo de chegar atrasado hoje – disse a voz sibilante e ardilosa do Lorde das Trevas. – Como se compartilhar a mesa comigo não causasse orgulho a todos vocês. Não é um orgulho se sentar no início da manhã ao lado do bruxo mais poderoso de todos os tempos?

Um conjunto de cabeças imediatamente aprovou o que ele dizia, como num bizarro jogo de Siga o Mestre. Hermes quis bocejar, mas observou os olhos frios e cinzentos do pai pousados sobre ele em desaprovação e resolveu apenas tomar seu lugar à mesa, enquanto o Lorde continuava seu discurso, sem se dirigir a ninguém em particular, mas fazendo com que sua voz preenchesse a sala como se fosse um estranho agouro:

- Porém, hoje é um dia importante. Quis reunir todos vocês logo no início dele para dar as boas novas – disse Voldemort, fazendo um gesto largo que abrangia os demais presentes, incluindo Severus Snape, com sua expressão enigmática de costume. – Hoje é o dia em que darei início à consolidação do meu domínio perante os sangues-ruins. Decidi não esperar mais nenhum segundo para dar início ao nosso plano, caro Severo, caro Draco. Hoje será o dia em que vocês irão capturar Harry Potter!

Uma expressão de surpresa se repetiu em cada rosto da mesa, até mesmo no de Draco e Hermes. Só Snape parecia não ter sido atingido de maneira alguma pela notícia, como se dela já soubesse de antemão. Hermes nunca viria a saber como ele conseguia dominar tão bem suas emoções, nem tampouco se ele já sabia da informação transmitida pelo Lorde das Trevas. Algumas coisas sobre Snape seriam sempre um verdadeiro mistério. Voldemort continuava:

- Surpresos? É, imaginei que ficariam, mas recebi informações por meio de fontes seguras de que o maldito menino-que-sobreviveu pretende fazer uma visitinha a Godric´s Hollow, mais especificamente ao túmulo de uma certa garotinha que tive o prazer de ver perecer, mas que agora posso contar novamente com a presença de seu valioso pai ao meu lado – Hermes estava com náuseas, a ponto de querer esbofetear o dono daquela voz. Como podia falar daquela maneira tão cruel sobre a irmã que ele sequer conhecera? Observou com o canto dos olhos a expressão do próprio pai, que tentava em vão se controlar, mas denunciava sua raiva pela veia saltada em sua testa, tão característica. O Lorde das Trevas não tinha terminado, e agora se dirigia especificamente a Draco. - Esta é a sua oportunidade de mostrar que retornou ao lado correto e que honrará seu sangue puro. Não erre novamente. O Lorde das Trevas não perdoa.

O estômago de Hermes revirava. Não queria comer naquela mesa, diante daquelas pessoas que aprovavam um tipo de vida absurdo como aquele. Como ninguém se levantava para dizer que não se deixaria dominar, como nenhum deles tinha voz ativa para se rebelar contra aquele regime de escravidão ao sangue imposto por um homem doentio como Voldemort? Um homem que não tinha coração. Não tinha sequer alma, pois Hermes sabia de seu segredo cruel, da forma como ele havia partido seu espírito em sete pedaços para garantir sua vida eterna, às custas de sete vidas inocentes.

- Depois que Potter for capturado poderemos dar início à retomada de Hogwarts, que ficará desestabilizada sem seu símbolo de falsas esperanças. E então voltarei a ser o ditador supremo do mundo bruxo, sem nenhuma ameaça ao meu trono, porque ordeno que o tragam vivo, mas se não tiver outro jeito a não ser matá-lo, façam-no.

O sangue de Hermes gelou enquanto a mesa explodia em vivas e aplausos de aprovação às palavras do Mestre. Belatriz parecia a mais submissa de todas, sentada ao lado do Lorde e com os olhos vidrados em sua figura semi-humana. Acariciava o ventre sob o vestido de maneira quase automática, enquanto deixava que seu rosto, emoldurado pelos cabelos embaraçados, ficasse fixo em Voldemort. Hermes via mais que fidelidade à causa, era verdadeira devoção o que aquela mulher sentia, uma devoção quase passional. E isso poderia torná-la especialmente perigosa, talvez uma das mais perigosas seguidoras do Lorde.

O Lorde se retirou logo depois do discurso, acompanhado de perto por Belatriz, que parecia sussurrar-lhe alguma coisa ao ouvido. Hermes hesitou por um momento: não sabia se continuava ali e tentava descobrir os próximos passos de seu pai e Snape ou se dava um jeito de seguir o Lorde das Trevas. Por mais arriscado que fosse, decidiu-se pela segunda opção, como que tomado por um impulso insano, já que sabia que, caso fosse apanhado, pagaria com a vida.

Porém, a sorte estava ao seu lado naquele dia e foi fácil andar pelos corredores escuros da grande mansão sem se fazer perceber. Seus passos eram abafados pelo carpete empoeirado do chão, e a falta de luz impedia que, caso Belatriz ou Voldemort olhassem para trás, vissem-no imediatamente. Eles falavam baixo, mas o tom de voz utilizado pelo Lorde beirava a satisfação, e se parecia muito com o tom que ele utilizava logo após ter matado alguém com uma Maldição da Morte. Talvez apenas Belatriz tivesse o privilégio de vê-lo feliz, mesmo que fosse aquela maneira bizarra de estar feliz, que só poderia ser adotada por um ser como o Lorde das Trevas, com um poço de maldade dentro de si.

O homem e a mulher entraram num amplo aposento, que poderia ser considerado tanto uma biblioteca quanto um escritório. Ali era fácil se esconder sob as cortinas de veludo pesadas que recobriam as janelas, e foi o que Hermes fez com a esperteza e rapidez de um felino. Mal podia acreditar no que estava fazendo, e seu coração bombeava no peito como se lhe esbofeteasse as costelas, gritando em vão: você está se metendo em encrencas. Mas a curiosidade e a certeza de que estava prestes a descobrir algo de interessante depois de tanto tempo estagnado pareciam imprimir nele uma coragem que julgava não possuir.

“Algo do espírito grifinório talvez tenha se infiltrado em mim. Algo de minha mãe...”, pensou ele, e com a imagem mental de Gina, sentiu-se ainda mais impelido a continuar imóvel, tentar controlar as batidas do coração e a respiração para que pudesse agüentar o tempo que fosse preciso ali.

Voldemort tomou seu lugar à grande poltrona de veludo verde diante da escrivaninha. Belatriz se sentou em frente a ele, os olhos brilhantes, maldosos, um sorriso cínico nos lábios. Apenas disse:

- Consegui.

O rosto do outro continuou impassível. Ele apenas a observava, as pupilas vermelhas impregnadas do sangue vivo da mulher que estava diante de si. O desejo que ela alimentava por ele era quase palpável, e Hermes podia enxergar a vontade que emanava dela. Diante do silêncio de seu mestre, Belatriz prosseguiu:

- Encontrei o feitiço, milorde. Depois de muito pesquisar, encontrei o que é preciso, e estou disposta a fazê-lo por você. Eu seria capaz de qualquer coisa para garantir que...

- O que Rodolphus acha disso? – interrompeu o Lorde, ainda sem encará-la, como se ela fosse um objeto qualquer, quase parte da decoração.

- Rodolphus – respondeu Belatriz, e seu tom de voz parecia demonstrar reprovação, como se não quisesse falar sobre o homem com quem havia se casado. – Meu marido não se importará. Nunca quis ter filhos.

- Nunca quis ter filhos ou você nunca os quis dar? – perguntou Voldemort, e as palavras atingiram Belatriz como se fosse uma bofetada. No entanto, ela não reclamou. Parecia gostar de se sentir humilhada por ele.

- Jamais tive um filho de Rodolphus para ter a honra de ter um seu, milorde – disse com a voz firme, porém notoriamente embargada por uma emoção quase doentia. – O ritual completará a sua proteção, e seu filho garantirá a continuidade da sua linhagem. E assim poderei passar a minha horcrux para você por meio dele, e protegê-lo ainda mais. Não me importo em morrer para garantir que você prevaleça, e extermine de uma vez por todas a escória de sangues-ruins.

O Lorde das Trevas sorriu. Não como sorriem as pessoas normais, mas um mero esgar da face que se parecia de longe com um sorriso. Levantou-se de sua poltrona e acariciou com certa brutalidade a face encovada de sua mais fiel seguidora. Belatriz poderia se ajoelhar aos seus pés se ele lhe ordenasse, podia lamber o chão que ele pisava, podia fazer qualquer coisa para que ele a possuísse bem ali.

- Sabe qual é o seu problema, cara Bela? Sua fascinação por mim a torna fraca. E eu não gosto de mulheres fracas.

Hermes achou que ele negaria tudo. Por isso seus olhos não quiseram crer no que viram quando Voldemort a tomou nos braços, deitou-a sobre a mesa e a possuiu ali mesmo, como se a urgência da carne fosse insaciável. E Hermes sabia que os planos de Belatriz dariam certo e poderiam representar a ruína de qualquer esperança de salvar o mundo bruxo.

Precisava fazer alguma coisa. Precisava sair dali imediatamente, avisar Mia, Daniel, Lúthien e, especialmente, descobrir os próximos passos de seu pai e Snape. Estava na hora de agir, e não ser apenas o espião passivo que vinha sendo no último mês. Precisava tomar uma atitude imediatamente, mesmo que a cena que presenciava fosse tão repugnante que jamais abandonaria sua mente. Era como se todo o mal do mundo tivesse resolvido se unir e produzir uma criança que seria, ao mesmo tempo, o renascimento e a desgraça.

Hermes precisava impedir isso. E rápido. Mas apenas abandonou a sala depois que Voldemort saiu, a longa capa negra farfalhando, deixando para trás uma alquebrada e adormecida Belatriz.




N/A: Desculpa, desculpa, desculpa, desculpa *pega a varinha para conjurar várias desculpas, sei lá como*

Eu sei que você pensaram em me abandonar, em me azarar, em mandar cartas com Antrax para mim. Eu sei que fui maldosa, que fiz todos vocês esperarem, que eu quase matei todo o mundo de curiosidade, e que isso não se faz. Mas eu realmente fiquei enrolada com o trabalho, então não consegui ser mais rápida que isso.

Agora que tenho quase 3 meses no emprego novo e já estou mais adaptada, consegui arrumar um tempo pra escrever. Já estou começando o próximo capítulo, portanto, não vou fazê-los esperar muito. E estamos nos aproximando do fim da Trilogia, por mais estranho que isso possa parecer.

Espero que gostem desse capítulo, não me abandonem, tenham paciência comigo e, claro, deixem seus valiosos comentários!

Bjooooo pra todos!

Mia


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