Capítulo 4



Havia algo errado, concluiu Harry, observando Hermione no outro lado da pista de dança na mansão de lorde e lady Pebworth. Algo muito errado.

Ela estava de uma beleza etérea no vestido rosa-claro, num tom de fato semelhante ao das rosas com que, graciosa, comparara-o no fim da tarde. Lembrava-se perfeitamente do momento em que acariciara as pétalas tenras com a mão enluvada: fora a última vez que ela lhe sorrira, a última vez que o fitara com aquela amizade reconfortante. Parecia uma eternidade atrás.

Mas ela se enganara quanto ao vestido. Não se tratava de um simples vestido de baile, mas de uma criação cujo objetivo fora sem dúvida sugerir a aurora de um novo dia perfeito. Na sobressaia de tule haviam fixado centenas de minúsculos diamantes, que a cada movimento seu cintilavam como estrelas contra um rosado céu matinal. O efeito era fascinante, e encantador. Não que lady Hermione precisasse de um vestido assim para chamar a atenção. Mesmo enfiada num saco de farinha, todos os homens no salão ainda a admirariam.

O problema era que o baile começara havia duas horas e ela ainda não dançara, declinando todos os convites, incluindo o dele. Nem sequer escrevera a resposta usando os acessórios da pastinha dourada. Por meio da sobrinha, que transmitira a mensagem muito constrangida, declarara que não era necessário que ele dançasse com ela.

Não era necessário, refletia ele agora, os olhos fixos nela. Mas que diabo significava aquilo?

Lá estava ela, de pé junto à cunhada e à sobrinha, num quadro semelhante ao que apresentaram no Almack's, mas com uma diferença fundamental. Se naquele primeiro evento ela se mostrara ao menos acessível, agora parecia uma fortaleza impenetrável. Até mesmo Parvati Patil, tão generosa em sua amizade naquela tarde, fora friamente rechaçada.

Lady Isabele e a filha pareciam perdidas, irritadas e totalmente incapazes de argumentar com a bela parenta. Luna recusara os primeiros convites para dançar, obviamente esperando que a jovem tia começar a se divertir também, até que Rony impôs-se e praticamente arrastou a moça robusta para o meio da pista. Ao final da valsa, o visconde levou-a de volta para junto da mãe e foi falar com Harry.

- Parece que lady Hermione passou o resto da tarde trancada no quarto depois que as deixamos em casa. Richard conversou com ela e não saiu de cara boa.

- Droga - murmurou Harry. - Algo deu errado, mas não consigo imaginar o quê. Ela estava mais que satisfeita à tarde... mas eu é que não vou perder Godric's Hollow por causa de uma moça bonitinha que de repente enlouqueceu.

Com isso, atravessou a pista de dança.

Hermione ficou surpresa ao vê-lo caminhando em sua direção, mas tratou logo de recolocar a máscara de frieza que usara boa parte da noite.

Após saudar lady Isabele e a filha pela segunda vez na noite, ele se voltou para o objeto de sua ira.

- Está quase na hora da dança da ceia, lady Hermione. Eu ficaria honrado se me permitisse conduzi-la.

Ela ergueu a mão enluvada e fez um brusco gesto negativo. As costas dele, Luna tentou consertar:

- Ela disse: "Muito obrigada, meu senhor, mas receio não estar bem-disposta para dançar no momento".

Harry ainda não estava proficiente na linguagem de sinais, mas sabia muito bem que lady Hermione não fora tão delicada.

- Que tal um passeio no jardim, então? O ar da noite está muito agradável e sei que lady Pebworth decorou as aléias com lanternas chinesas.

Os olhos castanhos límpidos fulguraram com uma raiva tão intensa quanto a dele, e ela voltou a erguer a mão. Antes, porém, que ela o despachasse para o inferno, tomou-lhe a mão com firmeza.

- Muito obrigado, minha senhora. - Obrigando-a a pousar a mão em seu braço, Harry se voltou para lady Isabele. - Trarei sua cunhada de volta a tempo da ceia, senhora.

Levar lady Hermione para o jardim, passando pelo terraço onde vários casais se refrescavam, foi tão difícil quanto arrastar uma âncora. A conversa que teriam requeria privacidade total.

- Aqui está bom - decidiu ele, perto de um caramanchão com banco.

Ela livrou o braço da mão dele e, com olhar fulminante, protestou:

- Não!

O tom grave, quase masculino, espantou-o por um segundo. Então, analisando melhor, concluiu que era uma voz semelhante à de um rapazola, tão destoante da bela boca feminina que seria mais fácil acreditar que outra pessoa, e não ela, a emitira.

- Não? - repetiu Harry, esforçando-se para superar o choque. - Não o quê, minha senhora?

Ela virou o rosto.

- Não tocá-la? - arriscou ele. - Não falar com você? Não tirá-la para dançar?

Ela fez um som de zombaria e ele se pôs diante dela.

- Perdoe-me pela ousadia, lady Hermione - começou, atento à civilidade que lhe fora incutida desde o dia em que nascera, embora sua vontade fosse mandar as boas maneiras às favas e sacudir a moça pelos ombros -, mas creio que a ofendi de alguma maneira. Se for verdade, rogo-lhe que me diga o que fiz.

Ela estava fumegando, mas, olhando para o chão, respondeu:

- E-eu n-não fa-lo mui-to bem... - detendo-se, respirou fundo -, ma-mas is-isso n-não quer di-zer que sou i-di-ota.

O esforço para dizer aquelas palavras fora grande, ele via o quanto era difícil e doloroso para ela emitir sua voz profunda. Percebia também o quanto o som da própria voz a desagradava. Ela devia estar muito zangada, e magoada, caso contrário, jamais teria falado. Tal constatação abrandou-lhe a ira.

- É claro que não é idiota! - replicou. - E acho que nunca lhe dei motivo para concluir que penso assim. - Viu-se novamente fulminado por seu olhar raivoso. - O que foi que fiz que a ofendeu?

Ela se sentou no banco, abriu a pastinha dourada, tirou urna folhinha de papel e a canetinha e começou a escrever furiosamente, estreitando o olhar a fim de enxergar na penumbra. Por fim, estendeu-lhe a mensagem.

- Eu menti para lorde Longbotton? - Ele riu. De repente, compreendeu a que ela se referia e ficou incrédulo. - Não pode estar falando das danças que reservei com você...

Ela aquiesceu, para afronta dele. Mas que pequena ingrata! Não fizera nada que qualquer outro cavalheiro decente não faria, poupando uma dama de ser humilhada em público. Se ela queria zangar-se com alguém, que se zangasse com Neville, por tratá-la como uma portadora de doença abjeta a quem não queria tocar e muito menos tirar para dançar.

- Lamento muitíssimo que minha atitude cavalheiresca a tenha desagradado tanto, minha senhora - declarou, entredentes. - Da próxima vez que for tratada com a grosseria que lorde Longbotton lhe dispensou esta tarde, pode ter certeza de que não vou interferir.

Mesmo à luz escassa, ele viu o rubor tomar-lhe as faces. Ela escreveu outro bilhete e estendeu-lhe. Ele leu e sentiu o coração afundar no peito. Oh, céus!

- Sim - admitiu, rijo. - A senhorita Patil e sua mãe foram a nosso encontro no parque a meu pedido.

Ela adivinhara. Ainda com o bilhete na mão, Harry viu todos os seus planos serem esmagados como giz pelo martelo que fora o desabafo dela. Perderia Godric's Hollow, a propriedade de sua família. Como explicaria isso a sua mãe e irmãs?

Ela escreveu outra nota: As danças também'?

Ele respirou fundo e confirmou:

- São todos amigos meus. Pedi-lhes que dançassem com você.

Nunca lhe ocorrera que lady Hermione perceberia suas manobras ou, considerando que ela percebesse, deduzira que ela ficaria grata. Por que uma moça como ela não ficaria feliz ao receber tantas atenções?

Ela o encarava agora, não destemida, mas como se sua máscara de gelo fosse cair. Seus lábios retos tremiam; era evidente, pela tensão em seu corpo, o quanto se esforçava para não chorar.

- Por quê? - indagou Hermione, a voz grave áspera e insegura. - Pi-pi-e-da-de?

Piedade. Céus! Ela achava que ele lhe tinha pena. Agora sabia como ela se sentia. Feia, inacessível, indesejada, diferente. Alguém que nunca se encaixaria como os outros. Chegara a Londres cheia de sonhos e ele os deitara por terra. Logo de cara. Teria acontecido, de qualquer forma. Sabia-o, e ela provavelmente também. Mas não precisava ter sido tão rápido, nem da parte dele. Poderia ter-lhe proporcionado algumas semanas de prazer, feito dela um diamante a aproveitar sua primeira temporada em Londres. Era tudo o que ela desejara, equase nada para ele dar. Vendo-a agora lutando para não chorar em sua frente, desejou, de todo o coração, poder ter-lhe dado.

- Não foi por piedade - murmurou Harry, desolado. - Sei que assim pareceu, mas acredite: não foi.

Ela rabiscou outra mensagem: Zombaria, então? Ou foi uma aposta?

- Céus, não! - protestou ele, veemente. - Lady Hermione, imagino o que pode estar pensando de mim, mas eu jamais a ofenderia, nem a nenhuma outra dama, dessa maneira. Dou-lhe minha palavra de cavalheiro.

Ela se recusava a encará-lo. Talvez não o considerasse um cavalheiro. Talvez considerasse sua palavra totalmente inválida.

- Por quê? - insistiu ela, suplicante desta vez. Harry nunca vivera momento pior em toda a vida.

Não tinha experiência em magoar pessoas, nem imaginava como tornar um golpe menos cruel. Não podia contar-lhe a verdade. Ainda que Richard não lhe houvesse imposto tal restrição, a idéia de ter um acompanhante à custa de chantagem a faria sentir-se pior do que já estava.

- Seu irmão, é meu conhecido - começou, como se tateasse por entre rochas traiçoeiras.

Ela levantou um pouco o rosto, fungando.

- Creio que ele nunca lhe falou a meu respeito, mas falou-me de você, algumas vezes. - Até aqui, só dissera a verdade. - Quando ele comentou que as damas viriam à corte, achei que era meu dever fazer o possível para facilitar os acontecimentos para a irmã de meu amigo. - Com uma pausa, tossiu, rogando para não ser condenado ao inferno por toda a eternidade. - Só que ele não me contou que você não podia falar. Falar normalmente, quero dizer. Pode imaginar minha surpresa quando dançamos lá no Almack's.

Ela ergueu um pouco mais o rosto e enxugou as lágrimas com as costas da mão antes de fitá-lo. Sua expressão esperançosa encheu-o de culpa. Escreveu um bilhete.
Nunca comentou que conhecia Richard.

- De fato, não - admitiu, raciocinando desesperando por uma justificativa. - É que... eu não queria que pensasse que estava apenas fazendo um favor a seu irmão. Pode ter sido minha intenção original, mas logo vi que era uma companhia encantadora e desejei aprofundar a relação por meus próprios motivos egoístas.

Tal declaração tornou-a desconfiada outra vez.

- É óbvio que sabe que é uma moça de extraordinária beleza, lady Hermione - continuou ele. - Eu estaria mentindo se dissesse que não me sinto honrado em ser visto na sua companhia. Se acha impossível acreditar nisso devido a sua incapacidade de falar, saiba que nunca considerei o fato desagradável. Mas percebo que minhas tentativas de facilitar sua introdução na sociedade londrina ofenderam-na profunda e compreensivelmente. Minha única desculpa é ter desejado que se divertisse em sua estada na corte. É difícil para qualquer moça apresentar-se aqui com sucesso, sendo que a menor imperfeição torna a tarefa ainda mais difícil. Quis facilitar seu caminho. Se escolhi meios inadequados, rogo que acredite que tive boas intenções.

Ela o encarou por longos instantes, racionalizando tudo o que ouvira.

- Se minha presença tornou-se desagradável, compreendo, e não a imporei mais. Peço-lhe apenas que seja gentil com a srta. Patil. É verdade que ela e a mãe nos encontraram no parque a meu pedido, mas é claro que percebe que a atitude de ambas foi sincera. Parvati, ou melhor, a srta, Patil desejou mesmo que se tornassem amigas.

Hermione soltou um suspiro trêmulo e fitou as próprias mãos, enquanto Harry esperava, vendo o próprio futuro num equilíbrio precário.

Ela escreveu outra mensagem, mais longa que as anteriores. Por fim, estendeu-a.

Eu não havia compreendido e errei ao julgá-lo tão severamente. Se me perdoar, eu também, o perdoarei.

Ele sentiu um alivio tão grande que até se enfraqueceu por um segundo.

- É muito gentil, lady Hermione. Obrigado.

Ela sorriu, dando-lhe esperança, e Harry seguiu avante, precisando saber se tinha alguma chance de salvar a si mesmo e as suas propriedades.

- Não tivemos um bom começo, pelo que assumo toda a culpa. Mas fui franco quando disse que gostaria muito de lhe mostrar Londres. Existe alguma chance de recomeçarmos?

Sim, respondeu ela, num pedacinho de papel. Gostaria muito.

Então, ela sorriu daquele jeito arrebatador novamente e ele soube que estava tudo bem.

- Eu também - retrucou Harry, estendendo a mão para erguê-la do banco. - Mais que tudo.


- Bem, Harry, Richard não tem do que reclamar – tranquilizou Rony, espreguiçando-se à sombra da árvore que ambos partilhavam. Olhava para Hermione, que passeava à beira do rio Tâmisa com outro participante do piquenique. - Lady Hermione tem-se divertido até agora. Duvido que exista outra mulher viva que possa dizer que já viu Draco Malfoy tão patético.

Harry riu, também observando as duas figuras próximas à água.

- Ele parece mesmo enamorado. Nunca pensei que viveria para ver este dia. Mas quem pode culpá-lo? Ela é bonita demais.

- Hum-hum - concordou o visconde, apreciando detidamente uma amêndoa glaçada antes de colocá-la na boca. - Não é só isso. Hermione tem maneiras muito finas. Uma moça pra lá de agradável. Se houvesse um jeito de não tornar-me aparentado de Luna, eu mesmo me interessaria por ela.

Harry riu de novo, balançando a cabeça.

- Isso significa que devo retirar minha aposta na banca do White de que você e lady Luna estarão noivos ao final do verão?

- Desde que me pague por ter perdido a aposta - replicou o amigo, mal-humorado.

- Acho que vou deixar mais um pouco - considerou Harry. - É uma aposta tão azarona. Eu contra metade de Londres. Não resisto à idéia dos ganhos que terei se vocês dois acorrentarem as pernas.

- Vai é ficar de bolsos vazios e ganhar fama de burro. - Rony olhou para o sempre crescente círculo de admiradores em torno de Luna. - Aquela insolente vive rodeada por esses bobocas que lembram cães farejadores. Sou menos do que nada para ela. Pior, ela me odeia. - Esvaziou o cálice de vinho, que um criado a postos apressou-se em encher de novo. - Está jogando dinheiro fora, Harry.

- Não perca a esperança ainda, Weasley - animou Harry. - Pelo menos ela o odeia com todas as suas forças.

- Grande - murmurou o visconde. - Algo para lembrar na velhice. É melhor você ficar de olho em sua protegida antes que Malfoy a tome toda para si lá naquele arvoredo.

Harry desencostou-se do tronco para olhar na direção indicada.

- Lady Hermione é esperta demais para deixá-lo tentar algo assim. Não é mais criança. - Recostou-se de novo. - E não é minha protegida.

- Seu encargo, então - retificou Rony. - Sua chantagem de verão.

- Talvez - Harry empurrava as fatias de laranja pelo prato. - A verdade é que não estou ligando muito. Acho que este é o verão menos chato que já tive. - Sorriu. - Algo para lembrar na velhice.

- E aquele dia na Bond Street? Aposto como ninguém se divertiu.

- Não - concordou Harry, circunspecto. - Só flagrar Richard com a amante teria sido constrangedor o bastante. Mas lady Isabele deve ter levado um choque ao ver a semelhança da ruiva consigo mesma, uma cópia de qualidade inferior, digamos assim.

- Não a achei tão parecida assim, quer dizer, o cabelo é da mesma cor, mas o resto... - Dando de ombros, o visconde saboreou o último bocado de salmão frio em seu prato.

- A semelhança é suficiente para causar alguma estranheza - opinou Harry. - Imagina-se o que levaria Richard a procurar uma mulher tão parecida com a cunhada. Hermione ficou muito perturbada.

- Ah, é?

- Mais tarde, no Vauxhall, fomos dar um passeio antes dos fogos de artifício e ela me confidenciou o quanto se abalara com o acontecido. Mas é tão ingênua que chegou a me perguntar se a tal mulher era amante de seu irmão, e fiquei sem saber o que dizer.

- E por que você deveria saber? - questionou Rony. - Mal conhece o homem.

- Esqueceu que agora sou "amigo" dele?

- Ah, é mesmo! Amigos que nunca foram vistos juntos. Não sei como Hermione caiu nessa. Mas como foi que saiu-se da enrascada, afinal?

Harry pousou o prato vazio e esticou-se sobre a toalha, contemplando os ramos da árvore contra o céu azul.

- Eu disse que sim.

- E como ela reagiu?

- Ela compreendeu - mentiu Harry, fechando os olhos para o dia radiante. - Aceitou que o irmão é um homem do mundo.

Harry não queria contar a ninguém, nem mesmo ao melhor amigo, o quanto Hermione se mostrara magoada. Extremamente pálida, ela desabafara por escrito.

Por quê?

Ele esmagara o bilhete e juntara-o às dezenas de outros em seu bolso. Vendo a ansiedade em sua carinha ingênua à espera de uma resposta, apenas sussurrara:

- Eu sinto muito.

Quando ela se sentou no banco, juntou-se a ela e tomou-lhe as mãos.

- Lady Hermione... Hermione...

Ela soltou as mãos e escreveu outra mensagem.

Ela se parece com Isabele.

- De fato - confirmou ele -, mas é mera coincidência.

Hermione negou movendo a cabeça firmemente.

- Tenho certeza de que é - insistiu Harry. Pegou-lhe as mãos novamente e apertou-as, sentindo sua infelicidade. - Hermione, não devíamos estar conversando sobre isso. Não é aceitável. Deve pedir a sua cunhada Isabele que lhe explique tais fatos.

- N-não - disse ela, surpreendendo-o, pois raramente se comunicava oralmente, mesmo quando estavam a sós. - Se eu n-não pu-der fa-lar c-com vo-cê, n-não há ma-mais nin-guém.

Ele podia ter sorrido ante a confidência, ou contestado, mas ao invés disso aquiesceu. Hermione estava certa. Havia algo especial entre eles. Uma ligação. Pelo menos enquanto ela permanecesse em Londres, onde se tornara, a contragosto, dependente dele. Não havia mais ninguém a quem ela pudesse recorrer. Somente ele. Aparentemente, tratava-se da única pessoa, com exceção dos familiares, que a entendia, naquela terra estranha.

Devia ter-lhe repetido que não podia discutir tais temas com ela; no entanto, afagando as costas de suas pequenas mãos enluvadas, cedera:

- Diga o que mais quer saber.

O que ela deplorava não era a idéia de o irmão manter uma amante, mas a natureza dos homens em geral. Ele deveria casar-se com a pobre coitada! Harry não pudera conter o riso antes de esclarecer:

- Céus! Minha querida, seria impossível para um homem da posição de seu irmão, para o conde de Richard, casar-se com uma mulher na condição dela.

Hermione não estava se divertindo nem um pouco. Então, deveria casar-se com Isabele. Harry ficou tão surpreso com aquele sentimentalismo que respondeu sem pensar:

- O casamento nem sempre é uma solução, minha senhora. Muitos homens casados mantêm amantes, apesar de amarem suas esposas.

Boquiaberta, Hermione fitou-o como se ele fosse um demônio. Zangado consigo mesmo pela falta de tato, Harry socou o bilhete no bolso e levantou-se.

- Peço desculpas. Perturbei-a. Não deveríamos estar discutindo tais assuntos. É melhor nos juntarmos aos outros antes que comecem a estourar os fogos.

- Es-es-pe-re - pediu ela, levantando-se também. Parecia envergonhada. - Me-me des-cul-pe.

O som de sua voz começava a exercer um efeito estranho sobre ele. Queria muito ouvi-lo. Agradava-o imensamente saber que era um dos poucos contemplados com tal dádiva.

- Não tem do que se desculpar.

- S-sou to-la.

- Hermione. - Ele pôs a mão sobre a dela em seu braço. - Não diga mais isso.

Então, ela riu, um riso rouco que o fez se derreter todo, e seu sorriso brilhou a luz fraca da lanterna.

- Lo-lor-de Pot-ter, é t-tão bom pa-ra mim. S-sou-lhe m-mui-to gra-ta.

Céus! Harry contemplou pasmo o rosto mais encantador que já vira na vida. Grata! Se imaginasse o que ele estava com vontade de fazer-lhe naquele momento, ela o xingaria de patife, no mínimo.

Ela estava próxima demais, podia sentir-lhe o calor através das camadas de roupas. E se ela não parasse de fitá-lo como se fosse um herói divino, não se responsabilizaria pelas consequências. Afastou-se um passo e pigarreou.

- Os fogos de artifício - tartamudeou, febril. - Vão começar.

Foram assistir ao espetáculo, então. Não havia mais nada que ele pudesse fazer. Era impossível seduzi-la. Tratava-se da irmã de um conde, além de virgem inocente. Se bem que tinha um motivo muito melhor para mantê-la intacta.

Algo estranho acontecera naquelas últimas semanas, algo que nunca previra. Hermione Granger começara a significar-lhe algo. Mais que um fardo, ou um encargo, ou mesmo uma conhecida. Dissera a si mesmo inúmeras vezes que tratava-se de uma preocupação fraternal por alguém menos afortunado, que apenas queria poupá-la de desfeitas, fazê-la entender-se pelos outros, proporcionar-lhe diversões em Londres, conforme ela desejara. Mas começava a recear que houvesse mais que isso.

Era com desconforto que a percebia como mulher, pior, começava a sentir-se obcecado. Pegava-se contemplando sua boca, a imaginação solta, quase sentindo o beijo íntimo, muito pessoal. Esse pensamento levava-o a outros, ainda mais chocantes, que o perseguiam mesmo durante o sono, do qual acordava suando frio, certo de que tamanha perversidade o condenaria ao inferno pela eternidade. Tinha de ser pecado sonhar assim com uma moça inocente e muda. E se Richard, em toda a sua onisciência, descobrisse o que se passava na mente do acompanhante de sua irmã, sem dúvida o despacharia para o além mais rápido do que um raio.

Um atributo vil aquele que lhe permitia desejar ajudá-la e, ao mesmo tempo, desejá-la. Ela confiava nele, o que não era pouca coisa. Só após uma semana ela lhe concedera a honra de interpretá-la, apesar de sua habilidade sofrível, pois achava que jamais entenderia aquela linguagem de sinais, fiando-se apenas nos bilhetes e nas mímicas bem-representadas. Ela confiava nele como amigo, para acompanhá-la e falar por ela, além de perceber quando a situação se tornava cansativa e levá-la para um lugar sossegado, onde pudessem gozar a companhia um do outro em confortável silêncio.

- Não sei o que você tanto fala com lady Hermione - comentou Rony, não ofensivo. - Não fosse você por perto interpretando a garota, acho que não teria coragem de dizer-lhe mais que bom dia.

- Requer-se apenas um pouco de prática - retrucou Harry - Não é nada difícil, o que comprovaria se não passasse o dia às voltas com lady Luna. O resto da sociedade também se convenceria, se não tivesse tanto medo de qualquer coisa que fugisse um pouco ao normal.

- Duvido - replicou o amigo. - Não é o medo da mudez de lady Hermione que afasta as pessoas. A reputação de Richard não ajuda muito, e existem as teorias sobre os surdos-mudos serem amaldiçoados. E eu não passo meus dias às voltas com aquela turrona! - Mirando a moça em questão sentada à beira do rio, cercada de admiradores, soltou um longo suspiro. - Mas e sua mãe, a condessa? Está para chegar?

- Não, ainda não. - Sentado, agora, Harry contemplou a vastidão de verde que o separava de Hermione e Malfoy. Mesmo àquela distância, percebeu que ela já estava cansada de fazer mímicas. - Janette pegou gripe, tão logo Melissa recuperou-se da dela. Mamãe só poderá viajar daqui a uma ou duas semanas.

- Mulheres! - desdenhou Rony. Harry se pôs de pé bem devagar, ocioso.

- Agora, se me dá licença, vou salvar lady Hermione dos encantos de Draco Malfoy.

- Antes que ela desmaie de cansaço - replicou Rony. Acenou-lhe. - Em frente, então, cavaleiro Potter. Eu jamais deteria um cavalheiro no cumprimento de seu dever.

Ao vê-lo caminhando em sua direção, Hermione ficou contente, quase aliviada.

- Lady Hermione, espero que esteja aproveitando o dia - declarou ele, tomando-lhe a mão. - Boa tarde, Malfoy.

- Potter - grunhiu o outro, sem disfarçar a contrariedade.

- Maravilhoso piquenique, não acham? Greenwich é sempre agradável, e lady Strathway sempre organiza tudo à perfeição.

- De fato - concordou Draco, olhando para Hermione de um jeito que a constrangeu. - Absolutamente... maravilhoso.

Harry mal disfarçou o desgosto ante a insinuação grosseira do outro homem. Felizmente, lady Isabele surgiu nesse momento e requisitou a cunhada, a quem queria apresentar a um velho amigo.

Hermione apertou a mão de Harry um segundo mais do que o necessário, agradecida. Ele respondeu com um sorriso.

- Uma moça encantadora, não? - comentou Harry, vendo-as se afastarem.

- Estupenda, eu diria! - declarou Draco, entusiasmado. - Não consigo pensar em mais nada.

Surpreso, Harry olhou para o outro. Talvez o houvesse interpretado mal.

- Quer dizer que seus sentimentos estão envolvidos?

- E como estão! - confirmou Malfoy, enfático, sem tirar os olhos de Hermione, que cumprimentava uma pessoa. - Meus sentimentos e todo o resto de mim.

Harry preferiu pensar que se tratava de típica prosa masculina. Afinal, seus próprios sentimentos por Hermione eram bem menos puros do que gostaria. Começaram a percorrer o amplo gramado rumo ao rio.

- Vocês pareciam estar se entendendo muito bem - comentou.

Draco encarou-o espantado.

- Sério? Que bom que tiveram essa impressão, pois não gostaria que me chamassem de idiota enquanto desse em cima da garota. Mas é óbvio que eu não tinha a menor noção do que ela tentava me dizer. - Balançou a cabeça. - Quase fiquei louco com todos aqueles movimentos de mãos.

Harry estacou, abismado.

- Se não a compreendia, por que raios fez-lhe companhia durante mais de meia hora?

Draco Malfoy riu.

- Ora, Potter, você sabe a resposta melhor do que eu. Se consegue entender essa moça deliciosa, tanto melhor. De minha parte, ela não precisa transmitir absolutamente nada. Não vai fazer diferença quando a levar para a cama.

Um arrepio percorreu a espinha de Harry, seguido por um calor latejante. Por um segundo, o mundo inteiro tornou-se um vermelho abrasador. Com as unhas enterradas nas palmas das mãos, ouviu o outro prosseguir em seu discurso execrável:

- E se pensa que vou esperar você se cansar dela, está muito enganado. Se Richard ainda não o matou por se deitar com a irmã dela, certamente não terá por que me matar.

Harry recuperou a fala com esforço.

- O que o faz pensar que Richard me deixaria fazer uma coisa dessas? Usar a irmã dele dessa maneira?

- Céus, todos sabem que os mudos são amorais de nascença. Richard sabe muito bem que ninguém vai querer casar-se com ela, com exceção de algum caça-dotes desesperado. Mesmo nesse caso, ela precisará de alguém que satisfaça seus desejos e, se eu conseguir tirar você da história, quem melhor do que eu para atendê-la?

Com isso, Malfoy deu um sorriso camarada, convidando-o a partilhar a pilhéria.

Sem pensar, Harry agarrou-o pelo colarinho e deu-lhe um murro no nariz. O som da cartilagem se partindo foi gratificante, mas não suficiente.

- Seu porco! - xingou, sem largá-lo. - Se pronunciar o nome de lady Hermione novamente, não é só seu maldito nariz que vou quebrar. Se quiser continuar respirando, porco nojento, mantenha-se longe, bem longe dela!

Então, para garantir um perfeito entendimento, ergueu Draco Malfoy do chão e, diante de todos os participantes do requintado piquenique, atirou-o no Tâmisa.



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