O corredor desconhecido
Era uma tarde agradável de setembro na sala comunal da Grifinória, e todos pareciam estar aproveitando ao máximo os últimos momentos do final de semana. Fred e Jorge riam como loucos durante uma partida nada honesta de Snaps Explosivos contra Angelina e Katy, Lilá e Parvati fofocavam animadamente no tapete próximo a lareira e Dino e Simas pareciam muito entretidos explicando aos pequenos irmãos Creevey as ultimas novidades do mundo do quadribol. Hermione e Gina se sentavam confortavelmente em uma das poltronas próximas a janela e conversavam sobre amenidades enquanto Hermione foliava um grosso livro intitulado História da Magia: um relato a partir de suas origens e Gina acariciava Bichento, que ronronava mansamente. O ambiente parecia tão descontraído que um observador desavisado poderia acreditar que as férias de verão já tinham chegado novamente, não fossem os dois rapazes sentados muito sérios na mesa de estudo, rodeados de livros e pergaminhos.
Como era de se esperar, Rony e Harry mais uma vez tinham deixado o trabalho de astronomia para o ultimo momento, e agora que Hermione se recusara terminantemente a fornecer suas respostas, os dois tinham aceitado o inevitável e a mais de uma hora tentavam sem sucesso escrever os primeiros cinco centímetros da redação que deveria ter um metro. Rony respirou fundo e começou mais uma vez a escrever: “Desde as descobertas inovadoras de Abelardus Primonteu, o estudo dos astros tem sido considerado pela comunidade mágica... uma grande chatice que não leva a nada!”
― Não sei não, Rony – disse Harry segurando uma gargalhada - Acho que não era exatamente isso que a professora Sinistra tinha em mente quando nos mandou fazer uma resenha crítica.
― Eu sei, mas essa é definitivamente a melhor critica que eu posso fazer. Se esse tal de Abelardus Primonteu não tivesse morrido, eu mesmo o mataria!
Dizendo isso, Rony amassou mais este pedaço de pergaminho e atirou-o na pilha de bolinhas que já tinha se formado a seus pés.
― Se pelo menos a Mione não fosse tão cabeça dura! Ela podia pelo menos dizer como a gente tem que começar...
― Ah! Pode desistir Rony, ela não cai mais nesse seu truque. Ela já sabe que você só pede pra ela te ajudar a começar por que depois ela se empolga e acaba fazendo o trabalho todo.
― Mas era uma tática tão boa – lamentou Rony.
Próximo à janela, Gina, que estava sentada de frente para a mesa de estudos, acompanhou com os olhos o desespero de Rony amassando mais um pedaço de pergaminho e disse a Hermione:
― Acho que eles vão acabar se afogando em tanta bolinha de papel, Mione. O Rony acabou de amassar mais uma, e pela cara dele não foi por causa de uma idéia brilhante. Na certa eles ainda nem conseguiram começar!
― Francamente – disse Hermione tirando os olhos do livro que estava em seu colo - Esses dois me tiram do sério. Parece que eles não são capazes de fazer nada sozinhos! E o pior é que eu não sei quem é o idiota dessa história, eles que nunca aprendem a lição, ou eu que sempre fico com pena e ajudo. Eu vou até lá, Gina, por que nesse ritmo eles vão estar com sorte se amanhã de manha tiverem escrito quinze centímetros.
― Acho que é você quem nunca aprende a lição, Mione – disse Gina se levantando da poltrona – Enquanto você faz a sua caridade do dia, eu vou até o meu quarto buscar umas anotações sobre História da Magia. Eu fiquei de estudar com uma amiga e ela já deve estar me esperando na biblioteca.
Dizendo isso, Gina subiu correndo a escada para o dormitório das meninas, enquanto Hermione se aproximava da mesa de estudos, que mais parecia ter sido atingida por um vendaval, tamanha era a confusão de livros, pergaminhos, mapas celestes e bolinhas de papel amassado.
― Se veio dizer que nós estamos ferrados você perdeu seu tempo, Mione, isso ficou bem claro pra mim a uma hora atrás. – Disse Rony com ar desconsolado.
― Na verdade, Rony, eu tinha vindo até aqui para ajudar, mas já que você parece não precisar da minha ajuda...
― Não!!! – Exclamaram Harry e Rony ao mesmo tempo.
― Claro que nós precisamos da sua ajuda, Mione - disse Harry – esses mapas celestes são mais complicados do que não sei o que. E eu não faço a menor idéia de como se faz uma resenha crítica...
Hermione deu uma gargalhada e se sentou na cadeira mais próxima.
― Na verdade Harry, a forma exata de se fazer uma resenha crítica é praticamente um mistério. Cada professor manda fazer de um jeito, e depois de muito meditar a esse respeito, eu comecei a acreditar que a formula deve cair do céu para aqueles poucos felizardos que conseguirem atingir o Nirvana...
― O Dalai Lama deve fazer resenhas fantásticas, então – respondeu Harry rindo junto com Hermione.
― Ótimo, então vamos perguntar a esse tal Lailailama o que a gente tem que fazer pra terminar esse trabalho de uma vez – disse Rony muito seriamente – e quem é esse tal de Nirvana?
Os pais de Hermione eram dentistas trouxas, e Harry foi criado pelos tios, que são os trouxas mais ordinários e sem graças que se possa imaginar. Assim, os dois viveram até os onze anos no mundo não mágico, e ainda hoje é para lá que eles voltavam todos os anos durante as férias. Rony por sua vez nasceu e cresceu entre os bruxos, e a Estação de Kings Cross era o mais próximo que ele costumava chegavam dos trouxas. Não era de se espantar que ele nunca tivesse ouvido falar no Dalai Lama...
― Ah! Já entendi – disse Rony vendo que os dois riam ainda mais – essa é mais uma daquelas piadas de trouxa que eu nunca entendo, não é?
― Desculpe, Rony – disse Hermione ainda vermelha e tentando se controlar – Eu as vezes esqueço que você não entende esse tipo de brincadeira. Mas vamos voltar ao trabalho.
Na verdade, para Rony, ter ficado de fora da piada tinha lá suas vantagens. Hermione agora estava visivelmente descontraída e parecia ter esquecido a recepção nada amistosa que ele tinha lhe dado.
― Como eu ia dizendo – continuou Hermione num tom bem mais informal – A forma de se fazer uma resenha crítica depende muito do professor e do que ele entende como resenha crítica. No caso da professora Sinistra, vocês precisam expor os principais argumentos da teoria do autor, falar um pouco sobre a forma como essas idéias foram recebidas pela comunidade mágica da época e fazer alguns comentários pessoais. Fica bem mais fácil quando você lê algum comentador... Quais foram os livros que vocês trouxeram da biblioteca?
Hermione consultou brevemente o título dos livros que estavam sobre a mesa: Tudo o que você queria saber sobre Abelardus Primonteu e tinha vergonha de perguntar; Conheça a História da Astronomia em cinco minutos; Todos os detalhes sórdidos da vida dos Astrônomos famosos; e, finalmente, Cara, cadê o meu telescópio?
― Mas que diabos passou pela cabeça de vocês? Eu nem sabia que tinha esse tipo de porcaria na biblioteca! Com esse material de apoio tudo o que vocês vão conseguir é escrever um artigo para O Pasquim... Por que nós não vamos até a biblioteca? Eu posso mostrar a vocês os livros que eu usei, e se nem assim vocês conseguirem escrever uma resenha descente, eu prometo ajudar.
Repentinamente o sermão sobre os livros de astronomia foi transformado em música pelo maravilhoso som das palavras “eu prometo ajudar”, que os dois sabiam por experiência própria que era o mesmo que “tudo bem, eu faço pra vocês”. Harry imediatamente escorregou da cadeira, caiu de joelhos aos pés de Hermione, e começou a simular um ritual de adoração pagã, enquanto Rony beijava a mão da menina como se fosse um devoto que acaba de encontrar o Papa.
― Eu sabia que você não ia ser tão má com a gente, Mione – disse Rony, intercalando beijos e palavras – É por isso que eu te amo! O que seria de nós sem você! Depois dessa você pode pedir o que quiser...
― Nós seremos seus humildes servos, minha senhora – completou Harry ainda se curvando em adoração.
Mione ficou vermelha instantaneamente. A proximidade de Rony a deixava um pouco atordoada e confusa, e sentindo um agitar de borboletas na boca do estomago e a sensação de que as pernas poderiam lhe faltar a qualquer instante, a garota puxou a mão depressa e tentou soar o mais natural possível:
― Tudo bem... vocês já podem parar com a palhaçada, e vamos de uma vez antes que eu mude de idéia.
Nesse momento, Gina vinha descendo as escadas carregando sua mochila, e já estava quase chegando ao quadro da Mulher Gorda quando Hermione fez um gesto para que ela se aproximasse.
― Você também está indo para a biblioteca, não é mesmo Gina? Você poderia vir com a gente, e eu aproveito para continuar te contando sobre a última carta que o Victor me mandou.
Gina não tinha presenciado a cena anterior, mas sabia perfeitamente que todas as vezes que Hermione mencionava Victor Krum repentinamente era por que Rony tinha aprontado alguma. Há muito tempo não era segredo para Gina que Hermione era completamente apaixonada por seu irmão, e a garota só usava o nome do apanhador búlgaro quando queria mostrar a Rony que ela não pretendia passar a vida inteira esperando por ele. A situação era tão engraçada que chegava a beirar o ridículo, mas a possibilidade dos dois ficarem juntos agradava tanto a Gina, que ela fazia tudo que estivesse ao seu alcance para ajudar.
― Claro, Mione, você precisa mesmo terminar de me contar sobre aquela carta. Mas vamos de uma vez, por que a Anne já deve estar na biblioteca esperando por mim.
― Quem é Anne, Gina? – Perguntou Rony enquanto tentava se livrar dos pergaminhos amassados – Eu nunca ouvi você falar nela, acho que não sei quem é.
― Claro que sabe, é a batedora da Corvinal. Ela está no quarto ano como eu, e nós fazemos História da Magia juntas. Na semana passada o professor Binns sorteou as duplas para um trabalho e nós duas caímos juntas.
― A BATEDORA DA CORVINAL !!! – exclamaram Harry e Rony em uníssono.
― Ela mesma, mas podem parar de babar, por que ela não vai dar mole pra nenhum de vocês. Na verdade eu acho que ela não dá mole pra ninguém... ela é meio esquisita, sabe.
― Um mulherão daqueles pode ter a esquisitice que quiser – disse Rony pedindo a aprovação de Harry.
Vendo que a conversa se aproximava perigosamente do ponto fraco de Hermione, ou seja, a total incapacidade de Rony de perceber que ela gostava dele, Harry achou melhor encerrar o assunto e começou a encher a mochila com tudo o que eles iriam precisar: pergaminhos, penas, tintas, um estoque enorme de guloseimas para o caso de um lanchinho, e o mapa do maroto e a capa de invisibilidade para qualquer emergência.
Hermione levou consigo o livro de história da magia, e decidiu que quando chegassem a biblioteca, ela se sentaria confortavelmente a um canto e deixaria Rony e Harry se virarem para terminar o trabalho. “É por essa tal de Anne que você baba, mas é de mim que você precisa” - pensou ela triunfante tomando a dianteira para atravessar a passagem atrás do quadro da Mulher Gorda. Do lado de fora, Neville estava sentado a um canto do corredor lendo um grosso livro de herbologia, e levou um grande sustou ao ver os quatro saindo de trás do quadro.
― O que você está fazendo aqui fora a uma hora dessas, Neville? – perguntou Harry já imaginando qual seria a resposta.
― Eu estava na estufa ajudando a professora Sprout com uma nova plantação de mandrágoras, e quando voltei pra cá acabei esquecendo a senha... Já fiz de tudo para a Mulher Gorda me deixar entrar, mas ela não para de falar sobre a época que minha avó estudava aqui e sobre todas as coisas que ela fazia... A uns quinze minutos ela caiu no sono, e eu acabei achando melhor sentar aqui para esperar alguém sair.
― Por Merlim, Neville, sua memória é pior do que a de um peixinho dourado com Alzheimer – disse Rony - A senha nova é Iluminatus. Se você prestasse um pouco mais de atenção, não precisaria ficar sempre do lado de fora esperando uma alma caridosa vir te resgatar.
― Já chega Rony – disse Hermione se colocando ao lado de Neville – Do jeito que você fala parece até que ele esqueceu a senha de propósito!
― Acho que eu não sou mesmo muito bom em lembrar das coisas – disse Neville desanimado - É por isso que eu levo o meu caderno de notas para todo lado, mas a professora McGonagall tornou as senhas inescreviveis depois que eu perdi o papel onde elas estavam anotadas no terceiro ano. Foi por minha causa que o Sirius Black conseguiu entrar na sala comunal...
― Não liga pra ele, Neville, você sabe que o Rony adora resmungar – respondeu Hermione – Agora é melhor a gente se apressar para chegar a biblioteca, ou vocês não vão terminar esse trabalho de astronomia nunca!
― O trabalho de Astronomia – disse Neville desanimadamente – eu tinha me esquecido completamente... será que eu posso ir com vocês?
― Claro, quanto mais gente para pensar melhor – respondeu Harry enquanto ajudava o rapaz a se levantar.
Quase cinco anos já tinham se passado, e Neville ainda mantinha o ar ingênuo e sincero daquele menino de onze anos, que vivia correndo atrás de seu sapo de estimação. Para Harry era reconfortante pensar que, independente de toda maldade do mundo, ainda existiam pessoas realmente puras de coração. E foi pensando nisso que Harry acompanhou seus amigos em direção a biblioteca.
***
A biblioteca de Hogwarts ficava em um salão grande e bem iluminado, onde o ar era encantado permanentemente para manter-se fresco e sem umidade. De acordo com Madame Prince, a bibliotecária, este encantamento era o grande responsável pelo excelente estado de conservação dos livros, e tinha sido feito pelo próprio Dumbledore na época em que ele ainda era o professor de feitiços. Logo na entrada, encontrava-se o balcão de informações e empréstimos, cercado por um número imenso de catálogos bibliográficos onde os alunos poderiam fazer suas consultas. Costumava-se dizer que aquele era o posto de observação de onde Madame Prince tomava conta de qualquer aluno, ou melhor, de qualquer casal de alunos, que pretendesse utilizar as estantes de Runas Antigas, que ficavam bem ao fundo do corredor, para finalidades pouco acadêmicas. Mal sabia ela que há anos o point dos adolescentes tinha sido transferido para a seção de Estudo de Trouxas, e Hermione tinha certeza de que a mudança tinha alguma coisa a ver com a aquisição de uma quantidade enorme de livros sobre a cultura hippie da década de 70.
Ao lado do grande corredor onde se encontravam as estantes de livros, ficavam as mesas de estudos, onde Anne Croft esperava por Gina. Ela parecia ser a única pessoa na biblioteca, e mesmo incomodadíssima com a cara de bobo de Rony, Hermione teve que concordar que a garota era realmente deslumbrante. Seus olhos eram negros e enigmáticos e os cabelos muitos lisos e pretos emolduravam seu rosto delicado, conferindo a ela um ar de mistério e sofisticação. No entanto, num olhar mais cuidadoso, Hermione entendeu perfeitamente o que Gina quis dizer quando disse que ela era esquisita. Os olhos da moça pareciam um caminho solitário através de um túnel escuro e mesmo quando ela sorria parecia extremamente infeliz. “O que terá acontecido para dar a ela um ar tão melancólico?” – pensava Hermione quando foi trazida de volta a realidade pela súbita aproximação da garota.
― Eu já tinha começado a pensar que você tinha esquecido do nosso encontro, Gina. Aconteceu alguma coisa?
― Me desculpe pelo atraso, Anne. Eu acabei perdendo a noção do tempo, e me atrasei ainda mais esperando por eles. Este é meu irmão Rony, que você já deve ter visto algumas vezes durante os jogos, e estes são meus amigos da Grifinória, Hermione Granger, Neville Longbottom, e...
― Harry Potter – disse a menina prontamente – Nós já nos encontramos algumas vezes durante os jogos de Quadribol. Como vai você Harry?
Harry, que lutava para não rir da forma como Rony olhava para Anne, com a boca aberta e os olhos esbugalhados, pareceu extremamente surpreso com aquele tratamento diferenciado. Na verdade, ele tinha visto Anne tantas vezes quanto Rony, e ela parecia nem ter se dado conta da presença do outro garoto.
― Eu estou bem – disse ele encabulado – E você, como vai? Treinando muito para o campeonato das casas desse ano?
― Você tem uma rebatida ótima – disse Rony tentando ser notado – Eu gosto muito de jogar contra a Corvinal, principalmente quando você quase arranca minha cabeça com o balaço...
Anne não viu muito nexo em gostar de ter sua cabeça quase arrancada por um balaço, e felizmente não foi obrigada a inventar uma resposta, por que Hermione, que já parecia pra lá de mal humorada, pôs um ponto final na conversa.
― É realmente um prazer conhece-la, Anne, mas nós estamos com um pouco de pressa para terminar um trabalho, e também não queremos atrasar você e Gina ainda mais.
Anne assentiu com a cabeça, e despediu-se de Harry com um daqueles sorrisos que pareciam não ter alegria alguma.
― Por que você nunca me disse que conhecia ela, Harry? – perguntou Rony se atirando na primeira cadeira que viu.
― Na verdade, eu conheço ela tanto quanto você – respondeu Harry atônito.
― Mas então por que ela não falou comigo também?
― Vai ver que é por que ela ficou com medo de você babar em cima dela, Rony – disse Hermione secamente – Ou terá sido por que ela não se interessa por rapazes que gostam de ter a cabeça quase arrancada por um balaço?
― Tem razão – disse Rony pensativo – Acho que esse comentário foi bem idiota. Será que ela...
― Já chega Rony – interrompeu Hermione, que já estava chegando ao limite de sua paciência – Se vocês me fizeram vir até aqui para ficar vendo vocês babarem pela amiga da Gina, eu dou meia volta agora mesmo e deixo vocês se virarem para fazer o trabalho.
Harry e Rony não disseram nada e começaram a tirar seus pergaminhos e penas da mochila. Os dois conheciam Hermione como ninguém, e sabiam que ela estava a ponto de ter um daqueles ataques nervosos, que a deixavam com um péssimo humor durante semanas. Nessas ocasiões, o melhor a fazer era concordar com tudo o que ela dissesse e tentar falar o mínimo possível. Depois de adotada esta medida de segurança, a tarde se passou sem muitos incidentes, e até Rony se surpreendeu com a quantidade de coisas que se podia aprender lendo os comentadores.
― É impressionante como eles conseguem dizer em duas páginas o que o tal de Abelardus Primonteu escreveu em dez volumes !!! – disse Rony animado – De agora em diante só vou ler os comentadores...
― Também não é para exagerar, Rony – disse Hermione parecendo um pouco mais animada – Eles as vezes dizem muitas bobagens, e é sempre melhor ler o original para formar sua própria opinião.
― Essa biografia dele também é muito interessante – disse Harry – Diz aqui que ele era amigo pessoal da Rowena Ravenclaw, e foi o primeiro professor de Astronomia de Hogwarts. Pela fotografia que tem aqui ele parecia ser um velhinho bem simpático...
― Tem razão – disse Rony – E a cara dele não me é estranha... acho que eu já o vi em algum lugar.
Neville se espichou por cima do ombro de Harry para dar uma espiada na foto e disse:
― Deve ter sido nos sapos de chocolate, que vêm com as figurinhas dos bruxos mais importantes da História. A minha coleção já estava quase completa quando eu tirei o Grindelwald, aquele bruxo das trevas que o Dumbledore enfrentou há muitos anos atrás, e acabei tendo pesadelos durante uma semana. Minha avó nunca mais me comprou sapos de chocolate... Acho que ela se aborreceu depois que eu destruí o chapéu favorito dela a vassouradas achando que era o Grindelwald saindo de dentro do armário...
― Eu não sabia que eles colocavam bruxos das trevas nas figurinhas dos sapos de chocolate! – surpreendeu-se Hermione.
― Só se eles já tiverem sido derrotados – disse Neville sentando-se novamente – Acho que as pessoas não iam gostar de comer um sapo de chocolate que viesse com uma foto de Você-Sabe-Quem...
Nesse instante, Harry começou a se lembrar do homem magro e branco como um crânio que ele viu sair de um caldeirão no ano anterior. Ainda hoje, aqueles olhos vermelhos e o nariz chato como o das cobras assombravam seus sonhos junto com o corpo inerte de Cedrico Diggory e os fantasmas de seus pais saindo da varinha de Voldemort.
― Eu me espantaria se alguém tivesse uma foto dele para colocar junto com o sapo de chocolate – disse Harry tentando afastar aquelas lembranças – Acho que eu e os Comensais da Morte somos os únicos que o viram depois que ele recuperou a forma humana.
Hermione viu pela expressão de Harry, que aquele ainda era um assunto doloroso, e decidiu por um fim naquela conversa. Fechando o livro de História da Magia com um estrondo, a garota se pôs de pé e disse:
― Nossa! Acho que nós acabamos perdendo a noção do tempo... É melhor a gente voltar para a sala comunal antes que escureça e alguém nos pegue andando pelos corredores.
Os três assentiram com a cabeça e começaram a guardar suas coisas, enquanto Hermione recolocava os livros na prateleira com um feitiço de levitação.
― Wingardium Leviosa - Dizia ela brandindo a varinha suavemente, e fazendo os livros pairarem pelo ar até chegar ao seu lugar na estante.
Gina e Anne, ouvindo a movimentação na mesa ao lado, também começaram a se preparar para sair, e em poucos minutos estavam deixando a biblioteca.
“Parece que a senhorita perfeição, vai fazer questão de ficar por perto” – pensou Hermione amargurada. E com um suspiro profundo apressou-se para alcançar os outros que já conversavam animadamente no corredor do lado de fora.
***
Já era noite quando eles saíram da biblioteca. Os corredores estavam desertos, e pelo barulho que vinha do segundo andar, o zelador Filch devia estar muito ocupado na sala de troféus tentando controlar as brincadeiras barulhentas e destrutivas de Pirraça, o poltergeist do castelo. Harry conversava animadamente com Neville, Rony e Hermione, sobre a última matéria da aula de feitiços e Gina vinha a dois passos atrás deles ainda conversando com Anne, para o desagrado de Hermione. A noite estava agradável e tudo parecia calmo, até o momento em que os seis deram de cara com Draco Malfoy, subindo a escada que levava até a torre da biblioteca.
Malfoy era o aluno mais esnobe e convencido da Sonserina, e não era segredo para ninguém que ele e Harry eram inimigos declarados desde o primeiro ano. Todas as vezes que os dois se encontravam as trocas de insultos eram inevitáveis, chegando até ao embate físico algumas vezes, e desta vez certamente não seria diferente.
― Ora, ora, ora... se não é o famoso Harry Potter e seus fiéis escudeiros. Acho que o próprio Dom Quixote era um herói mais qualificado do que você, Potter, e duvido que ele quisesse trocar o idiota do Sancho Pança por essa trupe de palhaços que você carrega na barra da capa: um morto de fome ruivo, uma sangue-ruim, e um quase aborto! É patético, Potter, eu sinceramente esperava mais de você.
Aparentemente Draco ainda não tinha se dado conta da presença de Gina e Anne no final do grupo, e continuou descendo a escada a medida que destilava seu veneno.
― E então, qual vai ser o grande moinho de vento que vocês vão enfrentar essa noite?
― Eu não faço a menor idéia de quem seja esse tal de Dom Caixote, Malfoy, mas acho melhor você calar a boca e nos deixar passar de uma vez, ou eu vou ser obrigado a quebrar a sua cara – disse Rony sacando a varinha do bolso.
― Quanta bravura Weasley... se eu tivesse uma penca de irmãos também viveria louco para aparecer. Mas, eu acho melhor você respirar fundo e guardar essa varinha antes que alguma coisa aconteça com ela e você tenha que passar o feriado de fim de ano inteiro trabalhando como auxiliar do Hagrid pra comprar uma nova. Ou será que o Dobby precisa de alguma ajuda na cozinha? O salário dele deve ser maior do que o do seu pai no ministério... que bela oportunidade de começar uma carreira, você não acha?
― Já chega Malfoy. Nós estamos muito ocupados para perder tempo com as suas infantilidades – disse Hermione tentando por um fim na discussão antes que Rony perdesse a cabeça e fizesse alguma bobagem - Será que dá pra você sair da frente?
― Como se eu fosse me mexer só por que uma maldita sangue-ruim metida a sabe-tudo pediu... Por que você não cala a boca, Granger, e aprende a só falar quando falarem com você?
Nesse momento, foi Harry quem deu mais um passo a frente, e encarando Draco bem nos olhos disse no tom mais sarcástico possível:
― Deve ser realmente muito ruim pra você ouvir ela falar, não é Malfoy. Uma bruxa nascida trouxa que sabe todas as respostas que você não sabe... Isso deve te fazer passar noites sem dormir imaginando porque a vida é tão injusta. Encare a realidade, Malfoy, nem mil anos de sangue mágico vão conseguir fazer de você um bruxo tão bom quanto ela.
Os olhos de Draco faiscaram de fúria, pois essa era uma verdade contra a qual ele não podia lutar, e qualquer resposta honrosa para aquele insulto seria uma mentira. Harry sabia disso, e sabia também que apesar de ser arrogante, cínico, e infinitamente fútil, Draco Malfoy não era um mentiroso, principalmente no que dizia respeito a ele mesmo. Depois de um breve minuto em que os dois trocaram olhares faiscantes, Draco esboçou um de seus famosos sorrisos enviesados e disse com malícia:
― Defendendo a namoradinha, Potter? É como meu pai sempre diz, “quem sai aos seus não degenera”. Seu pai também resolveu dar as costas à pureza do sangue e se casar com uma sangue-ruim, e olha só no que deu: um filho fraco, que vive cercado de idiotas. Cuidado, Potter, ou você vai acabar gerando uma prole de abortos, exatamente como o seu amigo gorducho ai atrás.
Harry tinha aprendido com a longa convivência com os Dursley a se manter controlado diante dos truques mais baixos para lhe tirar do sério. Ele sabia que depois de ter sido humilhado, a única saída honrosa para Draco era fazer o outro perder a compostura e iniciar uma briga, e esse gostinho Harry não ia lhe dar. No entanto, Rony não era lá um exemplo de alto controle, e sem nem perceber o que estava fazendo, apontou a varinha para Draco e disse entre dentes:
― Agora você foi longe demais, Malfoy. Eu não vou permitir que você insulte a Hermione e os pais de Harry dessa forma.
― Vamos ver o que você sabe fazer, então, Weasley. – disse Draco empunhando a própria varinha em direção a Rony.
Alguém certamente teria saído machucado daquele duelo, não fosse o fato de que no preciso momento em que os dois lançaram seus feitiços, a escada em que eles estavam decidiu mudar de lugar, e a azaração das pernas bambas que saiu da varinha de Rony acabou acertando uma freira magricela que dormia num quadro do segundo andar, enquanto o raio verde que saiu da varinha de Draco atingiu uma armadura enferrujada da ala oeste que acabou se transformando em uma lata de sardinhas.
O movimento repentino e a necessidade de se segurar para não rolar escada a baixo puseram um ponto final a discussão, e quando a escada finalmente parou de se mover, todos estavam mais preocupados em descobrir para onde ir do que em continuar o arranca-rabo. O grupo de amigos que ainda se encontrava no topo da escada decidiu dar meia volta e procurar um novo caminho de volta para o dormitório, e mesmo Malfoy achou uma má idéia continuar descendo sem saber para onde aquilo lhe levaria. No entanto, o patamar da escada agora estava misteriosamente de frente para uma parede sólida, fazendo com que a única saída possível fosse para baixo.
― Que ótimo – suspirou Rony – agora além de perdidos, vamos estar perdidos junto com o Malfoy. E eu que pensei que a noite não poderia ficar pior...
Harry tomou a dianteira ao lado de Hermione, e decidiu que assim que fosse possível daria uma espiada no Mapa do Maroto para encontrar o melhor caminho para a sala comunal. Enquanto isso, os demais os seguiram ao longo da escada, que mudou novamente de lugar assim que Anne, a última da fila, desceu o último degrau:
― Acho que agora a nossa única opção é andar para frente – disse a garota mostrando aos outros o grande vazio onde a um minuto estivera a escada.
O corredor em que se encontravam era comprido e mal iluminado, e a escuridão era tão grande que não era possível ver para onde ele levava. Rony e Draco iam na frente iluminando o caminho com suas varinhas, e Hermione tinha certeza que os dois só andavam lado a lado para vigiar um ao outro. Gina ia com Neville e Anne logo atrás deles, e Hermione se atrasou o quanto pode para falar a sós com Harry.
― Harry, você não acha melhor dar uma olhada no Mapa do Maroto? Eu não estou com uma sensação muito boa sobre esse corredor. Você já reparou as tapeçarias e os quadros na parede?
Harry se aproximou de uma das paredes murmurando “Lummus” e quando a luz da varinha iluminou a tapeçaria mais próxima ele pode ver que a cena retratada era de uma batalha sangrenta, com homens usando armaduras e espadas no meio de um campo cheio de Trasgos e Lobisomens. Os quadros e tapeçarias seguintes apresentavam cenas bem semelhantes: uma mulher mascarada brandindo uma espada curva; um dragão enorme que cuspia fogo; pedras sendo atiradas contra as muralhas de um castelo e um caldeirão de óleo fervente sendo derramado sobre o inimigo.
― Você tem razão, Mione, esse corredor está ficando suspeito demais até pra mim.
Dizendo isso, Harry apanhou o Mapa dentro da mochila e tocou nele a ponta da varinha dizendo: “Juro solenemente que não pretendo fazer nada de bom”. Com isso, o pergaminho em branco se transformou em um mapa detalhado do castelo, com pontinhos de tinta que se moviam de um lado para o outro carregando consigo o nome da pessoa que representavam. Àquela hora da noite, todos os alunos estavam nas salas comunais, e Harry pode ver que cada professor estava em sua respectiva sala. Dumbledore parecia ainda estar acordado em seu gabinete, e Filch e Pirraça continuavam saltitando de um lado para o outro na sala de troféus.
― Isso não é possível – sussurrou Harry para que só Hermione o escutasse – Nós não estamos em lugar algum. Isso nunca aconteceu antes... o Mapa do Maroto mostra tudo, inclusive as passagens secretas do castelo, e no entanto, esse corredor parece não existir.
― Como eu pensei – respondeu Hermione – ele deve conter algum feitiço para não ser mapeado. Mas onde será que ele vai dar...
― Bom, de acordo com o mapa e com a direção que nós tomamos, a essa altura nós já deveríamos estar quase chegando no lago. Mas isso não é possível! Como pode existir um corredor invisível que vai até o lago?
Nesse momento os dois foram interrompidos pelos sussurros do grupo que ia na frente, e para evitar que Draco, Anne ou Neville vissem o mapa e começassem a fazer perguntas, Harry guardou-o depressa dentro da mochila e disse a Hermione:
― Acho que dessa vez os senhores Aluado, Rabicho, Almofadinhas e Pontas, não podem fazer nada por nós. Estamos por nossa própria conta.
O grupo continuou caminhando por o que pareceu uma eternidade, sem nenhum sinal de portas os bifurcações no caminho. De acordo com os cálculos de Hermione, eles já deviam estar exatamente no centro do lago, quando Draco e Rony fizeram sinal para que os outros se apreçassem. Diante deles, o corredor terminava abruptamente e o único caminho possível era uma escada muito antiga em formato de caracol que levava unicamente para cima. Os sete subiram muito desconfiados, e para o espanto de todos se viram dentro de uma sala circular, com paredes de pedra ornamentadas com oito ricas tapeçarias. A maior delas mostrava um grupo de bruxos, que Hermione imaginou serem os quatro fundadores de Hogwarts, e as outras sete mostravam respectivamente, um dragão prateado, um hipogrifo, uma árvore dourada, um machado de bronze, uma estrela solitária em um céu profundamente escuro; um mar revolto em dia de tempestade e um coração em chamas.
― Que raio de lugar é esse que consegue ser tão frio sem ter nenhuma janela – disse Draco tentando quebrar o silencio opressor que pairava no ambiente.
― Sinceramente – respondeu Hermione, sem nem se dar conta a quem estava respondendo – eu estava me perguntando exatamente a mesma coisa.
Gina, no entanto, conhecia aquela sensação, e sabia muito bem que ela nada tinha a ver com correntes de ar e janelas. Sempre que se lembrava de seu primeiro ano em Hogwarts ela podia sentir o calafrio que lhe percorria violentamente a espinha todas as vezes que tocava o diário de Tom Riddle, e aquele frio que parecia não ter origem em lugar algum era muito semelhante ao que ela sentiu dentro da Câmara Secreta. Gina não tinha dúvidas de que eles estavam diante de magia muito antiga e poderosa, só não sabia dizer se era destinada para o bem ou para o mal. A aura da sala era branda, e Gina começou a ponderar se era realmente necessário dizer aos outros o que estava sentindo, quando Anne deu um passo a frente e disse:
― A não ser que eu muito me engane, acho que esse frio vem dali.
Anne apontava para um pedestal solitário no meio da sala, que parecia ser o único objeto existente além das tapeçarias. Vagarosamente todos se dirigiram para ele e organizaram-se ao seu redor. O pedestal não era muito alto, e tinha sido entalhado no formato de um árvore cheia de ramos, sobre os quais uma grande pedra de mármore branco sustentava uma bacia de prata brilhante, cheia até a boca de uma água cristalina e imperturbável.
― Tudo bem – disse Harry – acho que eu não preciso nem dizer que é melhor ninguém tocar em nada.
― Concordo plenamente – disse Rony – Afinal de contas, ninguém esconderia um corredor inteiro pra guardar uma bacia se ela só servisse pra fazer um escalda-pés.
Neville, que até então parecia um pouco distraído disse:
― Tem alguma coisa escrita no mármore em volta da bacia – e empertigando-se todo, começou a ler – Eu sou o espelho do tempo e por milênios descansei sobe as árvores de Caras Galadhon. Agora que as primeiras luzes se foram deste mundo, não mostro mais o futuro, mas trago alento aos corações em desespero.
― Será que fui só eu que não gostou nada desse negócio de corações em desespero? – disse Rony num tom de lamento.
― Tem mais alguma coisa aqui – acrescentou Neville – mas está escrito em latim, e eu não sei o que significa.
― Por via das duvidas é melhor não ler – disse Harry, enquanto Hermione ao seu lado se esticava toda para ver o que estava escrito, mas Draco, que estava ao lado de Neville, foi mais rápido do que ela e disse:
― Acho que não é nada com que nós devamos nos preocupar. É uma frase de Virgílio, um grande poeta trouxa da Roma Clássica, mas não dá pra afirmar a quanto tempo ela está escrita aí. Esse pedestal nao lembra em nada a escultura romana...
― Eu não sabia que você lia latim, Malfoy, muito menos que sabia sobre a poesia e a escultura romana dos trouxas – disse Harry sinceramente surpreso.
― Tem muita coisa que você não sabe sobre mim, Potter – disse Draco sem nem tirar os olhos da inscrição – A frase quer dizer: “O trabalho árduo vence todas as dificuldades”.
Todos se entreolharam imaginando qual seria a relação entre esta frase e o resto da inscrição. E por que motivo alguém teria escondido aquilo tudo numa torre secreta em Hogwarts. O silêncio tornava-se cada vez mais pesado, quando Neville deu um longo suspiro e murmurou distraidamente as palavras em latim:
― Labor omnia vincit improbus.
Repentinamente, a água na bacia se agitou, uma lufada de vento frio e uma luz prateada surgiram do meio das pequenas ondas, e todos sentiram que seus pés lentamente se afastavam do chão, como se estivessem sendo içadas por uma fina teia invisível.
― Acho que não foi uma boa idéia ter lido isso em voz alta, Neville – disse Gina já a meio metro do chão.
Neville tremia dos pés a cabeça, e tentou inutilmente balbuciar um pedido de desculpas:
― Eu não pensei que…eu não podia imaginar… eu só achei que...
Neville não chegou a completar nenhuma das explicações, pois o vento tornou-se tão violento que todos foram obrigados a fechar os olhos. Cada um sentia apenas os ombros das pessoas que estavam a seu lado, e uma sensação esquisita como se um gancho dentro do umbigo estivesse puxando-os violentamente para frente. Eles avançavam vertiginosamente naquele caleidoscópio de luzes por alguns segundos, e repentinamente o silencio e a escuridão voltaram a tomar conta da sala. Todos podiam sentir novamente seus pés tocando o piso de pedra fria e sentiram-se aliviados com isso, no entanto, o alivio logo se transformou em apreensão ao perceberem que não estavam mais sozinhos.
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