A vida humana de Tom Riddle



Parte 1. A vida humana de Tom Riddle

Deixe-me começar falando como era diferente a capital naquele tempo. A modernidade brilhava nas ruas sob a forma de tremulantes luzes a gás, que tornavam os rostos dos londrinos estranhamente fantasmagóricos. O grande aumento da população fazia com que os prédios começassem a crescer em altura. Fora isso, a cidade era um centro de efervescências culturais, com a grande explosão do teatro lírico, óperas e bailados, o apogeu do Romantismo. O mundo assistia a uma "febre dançante", que muitos consideravam uma enfermidade moral comparável às epidemias que assolavam as cidades européias. A nobreza, cada vez mais decadente e menos importante ante o aumento da influência dos industriais, comportava-se talvez mais futilmente do que nunca na história, entre suas plumas, brilhos, bailes e taças de cristal, enquanto nos bairros operários, ruas estreitas e populosas abrigavam os homens e mulheres responsáveis por sustentar aquele luxo. Crianças seminuas apodreciam na sujeira, sufocadas em antros sem luz e sem ar. Crimes, mendicância, violentas manifestações de rua. Essa era a realidade de Londres que se escondia sob os doces sorrisos das debutantes e as cartolas de cetim dos aristocratas.

Foi nessa cidade, dividida por uma tênue linha que isolava a realidade das pessoas que aos poucos se acabavam pela miséria e superexploração daquela dos nobres e aristocratas que se escandalizavam com as peripécias do movimento romântico, que nasceu e cresceu Tom Riddle. Como um ser humano. Porque naquele tempo ele era tão humano quanto qualquer outro morador da cidade, filho de uma antiga linhagem nobre que agora se afundava em dívidas. As conversas sussurradas entre baronesas e condessas naquele tempo giravam em torno do fato de ninguém saber realmente de onde vinham os Riddle. A mãe do garoto chegara misteriosamente à cidade já em vias de dar à luz. Existiam histórias de que ela nunca fora casada com um Riddle e que usava o sobrenome do amante, pai de seu filho, para esconder a vergonha. Depois que ela morreu, após muito esforço do cirurgião em parar a hemorragia provocada pelo parto, o menino ficou sob os cuidados da família Chaworth, que, comentava-se, há apenas duas gerações havia saído dos bairros enlameados da periferia escura da cidade. Outros parentes nunca se apresentaram e, quando perguntavam a eles por que mantinham o menino, os Chaworth apenas diziam que era sua obrigação.

O pequeno Tom vivia mergulhado em leituras. Sobretudo, gostava de ficar sentado longe de todos, observando. Virginia Chaworth, sua irmã de criação, gostava de dizer que era o mesmo olhar que um gato tinha antes de abocanhar uma presa. Nesses momentos, sua respiração tornava-se quase imperceptível e poderia tranquilamente passar por invisível em algum canto escuro. Era o que fazia com freqüência. Principalmente quando chegou à adolescência. Abandonou a escola. Não era que não suportasse o desdém com que os outros garotos o tratavam — isso efetivamente nunca o incomodou em seu introspectivo mundo auto-suficiente. O que Tom não suportava era aquele conhecimento vago, concentrado em retórica e cálculos. Tom Riddle queria mergulhar na alma.

“Vai morrer se ficar o tempo todo dentro de casa. Mesmo você precisa de sol”, alertava Virginia com uma freqüência irritante, os cabelos ruivos trançados e presos por borboletas de prata. Com freqüência também ele a ignorava completamente, o que fazia com que a menina se enfurecesse e arrancasse o livro de suas mãos e o atirasse pela janela da biblioteca. “Pronto, agora saia para buscar!”

Em outras ocasiões a pequena Virginia o surpreendia jogando os braços sobre seus ombros por trás da cadeira e falando qualquer coisa baixinho bem junto ao seu ouvido. Tom nunca teve muita certeza do que ela falava, ficava apenas mirando a pele de seu braço, clara como leite, as pequenas veias roxas aumentando à medida que crescia a força do abraço. Os fios de cobre de seus cabelos sedosos caíam sobre a manga da blusa do rapaz, parecendo quase cor de sangue contra o preto do tecido. A maioria das pessoas teria receio de chegar tão perto daquele rapaz que muitos julgavam prestes a cair num estado de loucura, mas não ela. Virginia, aos onze anos, quatro anos mais nova que seu “irmão”, conseguia deixá-lo completamente sem ação com aqueles gestos lânguidos e, ainda assim, firmes. Às vezes ele chegava a protestar, quando estava ocupado fazendo alguma anotação. Mas ela apenas ignorava. Tinha essa mania de fingir que não entendia suas negativas.

Também tinha mania de falar. Falava sem parar, principalmente quando via que ele estava concentrado em alguma coisa.

“Sonhou comigo essa noite, Tom?”, perguntava, um sorriso dançando em seus lábios enquanto as mechas de cobre insistiam em escapar do penteado, conferindo-lhe uma aura quase sobrenatural ao refletirem os esparsos raios de luz que ultrapassavam o tecido grosso das cortinas.

“Não”, respondia o rapaz com impaciência. “Por que eu sonharia com você?”

“Mas eu sonhei com você”, Virginia continuava, ignorando seu tom de quem estava prestes a expulsá-la. Mesmo contra a cooperação do rapaz, ela nunca deixava de narrar todo o sonho, com riqueza de detalhes, e depois saía saltitando com um sorriso muito satisfeito no rosto. Todas as mulheres com quem o jovem Riddle convivia, aliás, tinham esse hábito de nunca escutarem o que ele tinha a dizer. Às vezes ele se perguntava se o motivo disso era que não tivesse mesmo nada a dizer.

Foi por causa disso também que tudo começou com Ju. Era apenas assim que a chamavam, Ju Ruthyn, filha do rico Lorde Ruthyn, aspirante a escritora que chegara à cidade pouco depois de Tom completar dezessete anos. Freqüentava assiduamente a casa dos Chaworth, uma medida providencial tomada pelos pais de Virginia quando se iniciaram as fofocas de que Tom já tinha passado da idade de se interessar em freqüentar os bordéis e tavernas que faziam sucesso entre os jovens de sua idade. A senhora Chaworth insistia em que os dois deviam se conhecer melhor e parecia completamente surda aos protestos de Tom.

Ju Ruthyn saíra da casa da família em Nottingham após recusar um casamento e vivia em Londres, trabalhando para um jornal de pouca circulação enquanto não terminava o livro que pretendia publicar. Com o tempo, aquela garota passou a exercer uma certa fascinação sobre o jovem Tom Riddle, com seu hábito de sempre falar como se declamasse, cheia de ideais sobre um romântico socialismo que livraria o mundo da pobreza.

“Porque é o justo”, dizia, com uma convicção que Tom às vezes invejava. Ele não tinha convicção de muitas coisas. E aquelas coisas de que tinha certeza eram todas vagas, baseadas na genericidade dos cálculos mentais de seu convicto racionalismo. “Mas no que você acredita?”, indagou Ju quando ele disse que não havia motivo para acreditar na existência do mal.

“Acredito na gravidade”, falou, e jogou para o alto uma uva tirada do arranjo de mesa.

Ju sorriu de um jeito estranho e aproximou-se da sacada da varanda. Estavam no fim do verão e a casa inteira se iluminava com a luz do sol. Os cabelos castanhos da moça estavam em duas tranças, as pontas presas juntas por um laço de fita branco. Ela pegou de dentro da bolsa uma pequena pedra escura que Tom não pôde identificar. Tinha um brilho azulado, como o do céu noturno.

“Tem uma moeda?”, perguntou, e Tom remexeu os bolsos até encontrar uma. Ju a colocou sobre a pedra e foi inclinando a mão, de modo que a moeda cedesse ao próprio peso e despencasse para o jardim abaixo da varanda. No entanto, ela continuava firmemente grudada à pedra, sem se mover um milímetro. Tom ficou olhando para o fenômeno com pouco interesse.

“É um imã”, falou quando Ju voltou-se para ele e devolveu a moeda.

“É o que você quiser que seja”.

Virginia gostava de acusá-lo de prestar mais atenção ao que Ju fazia do que deveria. “Está apaixonado por ela!”, concluiu na última semana das férias escolares daquele ano, tentando provocá-lo após a senhora Chaworth a mandar ficar quieta, encerrando uma discussão entre os irmãos à mesa do jantar. A senhora Chaworth lhe lançou um olhar de ameaça e ela parou, mas não deixou de atormentar o rapaz com aquilo sempre que tinha a chance. “Sempre olhando para ela... Segredinhos na biblioteca... Daqui a pouco estão noivos... Se um dia casarem...”, murmurava, um enorme sorriso maldoso nos lábios. E Tom nem ao menos costumava olhar para Ju tanto assim naquele tempo.

Ainda que os Chaworth vissem no casamento com a jovem Ju Ruthyn uma saída perfeita para que Tom Riddle ficasse bem aos olhos da alta sociedade, o rapaz não se interessava. Gostava de conversar com Ju, isso era fato. Ela também não era de todo irritante como as outras garotas daquela idade que ele já conhecera. Mas Tom Riddle também não acreditava em casamento, tampouco.

“Se você não se casar, como vou ter sobrinhos?”, protestava Virginia. Mesmo assim, não conseguia esconder um certo prazer em dizer essas palavras. Chegara da academia de balé há poucos minutos e ainda estava com o vestido branco, com uma longa saia de tule que usava nas aulas. Da poltrona onde estava, Tom ergueu os olhos acima do livro para observá-la. Não havia nenhum sinal de seios sob o corpete, era ainda uma completa criança, mas já esboçava toda a presença de uma mulher sem perceber – ou fingindo que não percebia. E como Tom desejou tocá-la naquele momento.

Virginia abriu os braços com um leve movimento de asas e desabou no divã. Depois inclinou o corpo para amarrar a fita da sapatilha de cetim cor de rosa. As paredes da sala estavam pintadas de vermelho pelas chamas da lareira, tudo parecia combinar perfeitamente com os cabelos ruivos de Virginia. Ela mesma brilhava como se queimasse, mirando-o de uma maneira luminosa enquanto puxava as fitas para fazer um laço no tornozelo esquerdo. Tão intensa a chama que a iluminava de dentro para fora que parecia prestes a se consumir, desaparecer no ar, deixando apenas um rastro de cinzas que, mesmo após toda uma vida, ainda seria incandescente.

“Não vou ter filhos, de qualquer maneira”, retrucou ele. Virginia balançava no ar as sapatilhas, os pés esticados como se estivesse fazendo um exercício de dança.

“Vai querer, tenho certeza”, a menina insistiu. Então levantou do divã e compôs a pose de bailarina em repouso, os pés voltados para fora fazendo uma linha reta e os braços em arco na altura do umbigo. Olhou para o teto enquanto flexionava os joelhos num movimento suave: “Você também disse que me levaria ao teatro. Quando vai largar esses livros e cumprir a promessa?”

Virginia se pôs nas pontas dos pés e ficou esvoaçando ao redor de Tom enquanto ele tentava manter a concentração na leitura. Ele nunca saberia o que provocou o que se seguiu. Talvez Virginia tivesse apenas tropeçado ao tentar um passo de dança mais elaborado. Talvez ele mesmo tivesse desejado que ela tropeçasse com tanto ardor que seu pedido foi atendido. Talvez a menina tivesse apenas se jogado sobre ele, por livre e espontânea vontade, como mais uma de suas brincadeiras quase inocentes. Quase. Porque a maneira como aqueles finos dedos de boneca passearam por seu pescoço não poderia ser considerada uma atitude infantil. Ela aproximou o resto de Tom, a respiração do rapaz ficando mais profunda à medida que aspirava aquele perfume silvestre que emanava da menina.

Durou apenas alguns minutos. Virginia lhe deu um beijo estalado na bochecha, de um jeito polido e desdenhoso, como se não se importasse, e, no segundo seguinte, estava de pé, ensaiando um trejeito gracioso com os braços. Esquivou-se de quaisquer maiores explicações murmurando que Tom ia desmanchar seu penteado preso na nuca com uma fivela dourada. Nada de sentimentalismos, parecia dizer o sorriso irônico que veio em seguida. Depois, com pequenos saltos silenciosos, deixou a biblioteca, enveredando diáfana pelo corredor, como se seus pés mal tivessem contato com o chão. Ele quase podia acreditar que Virginia era capaz de flutuar quando se lançava em seus gran jetés.

Não existe sobre a face da terra nada que seja capaz de fascinar e que não seja inalcançável, que não possua a capacidade de matar ou que não tenha o doce gosto de um pecado. O gosto daqueles finos lábios rosados. Foi nessa época que Tom começou a passar as noites fora. Porque, enfim, os livros tinham lhe dado um rumo para seguir.

“Como é?”, ela repetiu a pergunta de Tom. A mulher usava estonteantes vestes vermelho-sangue, o rosto escondido nas sombras de modo que o rapaz pudesse distinguir apenas o brilho esverdeado de seus olhos. “Estamos fora do movimento da vida. A vida acontece, corre como o vento de uma tempestade ao nosso redor, carregando todos os outros, enquanto nós permanecemos parados, como se tivéssemos desaprendido a seguir a correnteza do tempo”.

“Entendo...”, murmurou o rapaz.

“Não”, cortou a mulher. “Você não entende nada. Mas eu não aprendo, sabe? Eu ainda estou procurando a origem desse calor que você sente quando olha para ela. Sou ridícula o bastante para ainda estar procurando por isso.”

“Ela?”, Tom arregalou os olhos imaginando se aquela mulher era capaz de saber o que ele sentia quando olhava para Virginia, sua irmã de criação, a menina de treze anos que andava pela casa ensaiando paços de dança.

“Essa ventania... Você não enxerga porque está dentro dela. Se estivesse fora como eu seria capaz de ver. Está por aí, girando furiosamente, carregando todos vocês como folhas secas caídas das árvores. As folhas passam, o vento sopra ao nosso redor, nós somos o resto que é deixado para trás. Você não sabe, rapaz, nem sequer consegue imaginar”, ela fez um gesto rápido, tão rápido que Tom só entendeu o que tinha acontecido quando um copo se despedaçou contra uma parede. “Num instante já se passaram trinta anos e você não é capaz de construir nada. Você não se casa nem tem esses monstrinhos que eles chamam de filhos, não consegue ter uma casa por muito tempo porque os vizinhos começam a te estranhar depois do décimo ano sem que nada em você mude. Então, um dia, você acorda no fim da tarde, tonto de sono, e olha para seu próprio rosto refletido no espelho. Sim, você ainda será o mesmo, exatamente o mesmo que é nesse momento, jovem, bonito, forte. Mas todos nós acabamos sozinhos, sozinhos em casa, sozinhos na cidade, sozinhos no mundo. E não se iluda, vai doer. Vai chegar o tempo em que as folhas terão acabado e só restaremos nós no mundo”.

A mulher ficou algum tempo calada, parecia lembrar de alguma coisa que não poderia ser posta em palavras. Seu nome, ao que tudo indicava, era Katherine Boufleurs, uma italiana a quem um poeta irlandês se referia como “a Lady que nunca chora”. Seu jeito espalhafatoso de se vestir destoava do ambiente precário da taverna e parecia refletir a nascente ópera italiana, uma nova arte que reunia no palco canto, dança e representação ao som que orquestras barulhentas. As óperas estavam na moda e já eram sensação em Paris.

“Como se tornou o que é?”, perguntou finalmente o rapaz quando achou que Katherine já estava pronta para recomeçar. O brilho esverdeado dos olhos da mulher aumentou quando ela juntou as mãos sobre a mesa, as longas unhas aparecendo sob a renda na manga do vestido vermelho.

“Não sei se é você que escolhe. Sei que eu não escolhi. Olhe para mim - tenho cara de quem escolheu alguma coisa na vida? Quando dei por mim, todo mundo já estava se afastando carregado pelo vento e eu havia ficado para trás”, respondeu. “Não, não tenho a menor idéia. Sei como o que me transformou o fez, mas não sei se posso fazer o mesmo com você”.

“Então você não convive com outros como você?”

Katherine riu. E sua risada seca parecia estranhamente com um acesso de tosse. Ela inclinou o corpo para a luz e Tom pôde ver que ela tinha uma rosa no pescoço, presa a uma gargantilha de brilhantes. “Você é tão inocente”, ela disse, tomando fôlego. “Inocente porque nem sabe que é inocente. Nem eles sabem que não são mais”, ela apontou a longa unha em direção ao outro lado da taverna, onde vários rapazes dividiam uma longa mesa com um grupo de prostitutas. Um barril fora colocado sobre a mesa e vazava cerveja por todo lado, mas todos estavam bêbados demais para atentarem para o fato. “Eu não sou igual a eles, eles sabem disso. Sabia que de vez em quando eu até tenho mais pena de você e desses meninos do que de mim? Para mim, pelo menos houve uma hora em que parecia que ia dar tudo certo. Para vocês, não. Já estava tudo morto quando vocês chegaram ao mundo. Tive mais sorte. Morri antes de viver o século da decadência”.

“O que você quer?”, perguntou Riddle. Katherine o olhou curiosa, mas já sabia do que ele falava.

“Você. Quero sua vida. Dê-me a vida que há em você, Tom Riddle, e será um de nós”. O rapaz entrelaçou os dedos sobre a mesa numa postura pensativa. Katherine deixou caírem duas moedas de prata junto a um cinzeiro de latão antes de se levantar arrumando a saia do vestido. “Definitivamente tenho pena. E às vezes me pergunto se não foi sorte minha ter me transformado no que sou para não ser arrastada mais pelo tempo. Chego a pensar que tenho nojo da vida que vocês vivem”, e, sacudindo os cabelos loiros, Katherine deixou o rapaz, andando por entre as mesas em direção à saída. Antes de a porta ter fechado completamente, Tom já tinha se levantado e corria para acompanhá-la. Ele precisava, não, ele merecia mais do que aquela vida poderia oferecer. Ele nascera para aquilo.

A noite estava fria. As nuvens escondiam todo o céu, formando massas acinzentadas, vez por outra iluminadas por um relâmpago acompanhado por um estrondo que parecia ser capaz de sacudir o chão. A umidade impregnava as ruelas daquela espécie de favela semeada de cortiços e tavernas mal freqüentadas e o cheiro do esgoto se misturava ao odor que prenunciava a chuva. A cidade deserta e escura tinha um ar desolado.

“Katherine Boufleurs!”, a mulher parou sob uma nesga de luz prateada. O bairro operário ainda não fora agraciado com a iluminação pública. Ainda assim, sob a luz fraca e dispersa da lua, Tom pôde ver o rosto da mulher – da vampira Katherine Boufleurs. Era tão jovem como o de uma menina, os olhos verdes o mirando sob os cílios espessos, os caninos pontiagudos sobressaindo no sorriso zombeteiro. “Você sabe o que eu quero”.

Katherine sorriu, seus dentes brancos brilhando como mármore. “Nunca duvidei que houvesse outro motivo para ter me procurado”.

A vampira olhou para os lados como se avaliasse as possibilidades. Parecia apressada, como se fosse perigoso permanecer mais um segundo parada ali. Depois, como se tivesse decidido que valia a pena ariscar, caminhou até Tom, seu rosto voltando a ficar nas sombras enquanto as pedras brilhantes da gargantilha pareciam piscar em diferentes padrões enquanto avançava. O sol demoraria apenas alguns minutos para começar a despontar no horizonte. Um vento gelado atravessava as ruas, parecendo querer se enredar para dentro de cada capa por que passava.

Ela pôs as mãos sobre os ombros de Tom e puxou o colarinho da camisa para o lado, a fim de afrouxá-lo e deixar livre a pele de um lado do pescoço. Seus olhos se fixaram nos de Riddle, um segundo antes de seus lábios frios o tocarem e ele sentir uma fisgada, bem onde os dentes estavam penetrando sua carne.

A primeira sensação foi a de fraqueza. Seus joelhos perderam a firmeza e Katherine o empurrou contra o muro de uma casa com uma força descomunal. Ele manteve os olhos abertos, cravados nos respingos cintilantes no céu que se estendiam como um caminho sem começo nem fim – a via Láctea –, enquanto sentia a vida aos poucos ser tragada de seu corpo, como se estivesse sendo esvaziado de todas as experiências de sua curta existência em que se sentira realmente vivo. E, quando ela achava que estava prestes a não agüentar mais, a visão escurecendo e os sons ficando cada vez mais distantes, Katherine o soltou, e ele escorregou apoiado no muro, uma estranha estática lhe atrapalhando os pensamentos.

“A morte é muito feia, não acha garoto?”, indagou ela, abaixada para ficar à mesma altura do rapaz, os lábios ainda vermelhos de sangue, sua pele aos poucos adquirindo uma coloração rósea natural. Ela segurou seu rosto com ambas as mãos e completou, falando bem junto ao ouvido de Tom: “Muito suja, muito triste. Essa tontura que você está sentindo não é da bebida. É a morte chegando perto de você. Eu posso vê-la de pé, bem ao seu lado”.

Tom Riddle piscou algumas vezes. A madrugada parecia anormalmente escura. Tudo que via de Katherine era um vulto vermelho. Tanto que não conseguiu ver quando ela usou a unha comprida para abrir um corte no pulso. As gotas de sangue caíram nos lábios de Tom, mas nesse momento ele já estava longe. Jamais saberia o que aconteceu depois. Quando tentasse se lembrar daquilo, a única imagem que lhe viria à mente seria a do céu, clareando para o amanhecer, mas ainda escondido sob a capa branca de nuvens, e fachos amarelo no horizonte anunciando um dia que logo estaria começando. Aquela última visão da luz do dia ficaria gravada em sua memória sob a forma de um amplo horizonte manchado de laranja e rosa.

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