Aluado e Aluadinha
Cap. 5 – Aluado e Aluadinha
Sylvie dormiu tranquilamente. Quando despertou no meio da noite, continuou deitada por mais algum tempo, tentando descobrir o que a acordara. Havia um barulho no corredor. Olhou para o relógio: três e meia da manhã. Será que a mãe já estava acordada? Será que tinha acontecido alguma coisa com o pai? Ela continuava a ouvir o som abafado de passos, e alguma outra coisa, ela não conseguia entender. Palavras, grunhidos, rosnados? O que estava acontecendo?
Criando coragem, saiu da cama pela segunda vez naquela noite. Um pouco nervosa, ficou na ponta dos pés para alcançar a maçaneta. Ia chamar a mãe e juntas descobririam de onde vinha o barulho. Girou a maçaneta com alguma dificuldade, e o “clic” da porta lhe mostrou que conseguira. Empurrou-a com cuidado.
E gritou.
Assustada, viu-se encarando um animal gigantesco. Um lobo castanho a olhava de cima. Tinha dentes afiados a mostra, e olhos amarelos e selvagens. Ela deu alguns passos para trás e caiu. Sabia. Sabia, mas não queria saber. Aquele era seu pai. Era aquilo que acontecia com ele. Ele virava um lobo.
- P-pai?
Foi o suficiente ouvir um fio de sua voz para atacar. O lobo tomou impulso e pulou violentamente sobre ela. Ela gritou. Gritou muito alto, para que a mãe ouvisse e viesse ajudá-la. A mãe não veio, ela continuou gritando. Tentou correr, mas o monstro derrubou-a facilmente. Rosnando, latindo, uivando, as presas brilhando com a luz da lua que entrava pela janela. Seus dentes roçaram a pele macia de seu braço pequeno, e ela fechou os olhos, chorando, sentindo o hálito quente da fera, tentando não pensar que era seu pai, tentando sumir. Encolheu-se quando ele a mordeu.
Tonks entrou correndo no quarto. Não conseguiu registrar a cena no primeiro momento. Mas viu o lobo sobre sua filha e pronunciou um feitiço tão rapidamente e de forma tão automática que ficou surpresa ao ver o animal voar e bater na parede. Apanhou a filha do chão, e correu para a porta. O lobisomem já se recuperara, corria na direção delas. Sylvie chorava em seus ouvidos, as mãozinhas agarrando sua blusa. Quando chegou ao corredor e virou-se para bater a porta, o lobo pulou sobre ela. Ninfadora bateu as costas e a cabeça no chão. Os braços ainda seguravam a criança, e ela sentiu as patas do animal sobre ela. A dor invadiu-a em todo o corpo. Ouvia os berros da filha, mas não conseguia se mexer.
Apenas quando sentiu que Sylvie era arrastada para longe dela, conseguiu forças para se levantar. O pânico tomou conta dela. Ele ia mordê-la, agora. Ia morder Sylvie!
- Remus – ela gritou – Remus, por favor. Escute, Remus, sou eu, Ninfadora. Eu sei que você está aí – ela chorava, desesperada, enquanto tentava tirá-lo de cima da filha. Não sabia o que fazer, não queria machucá-lo – Não faça isso. Meu amor, por favor. Solte a nossa filha! Remus!
Por um instante ela achou que conseguira. O lobo ergueu a cabeça enorme e fitou-a com seus olhos amarelos. Ela rezou para que ele se lembrasse. Mas no instante seguinte, ele abocanhou a perna de Sylvie. A menina berrou de dor, e seus gritos encheram a cabeça de Tonks. Com um movimento rápido de varinha, o lobo foi jogado para o outro lado do corredor, inconsciente.
Tremendo, Tonks pegou a filha que gritava, o rosto vermelhos de lágrimas e levou-a para seu quarto. Lançou um encantamento qualquer na porta para impedi-lo de entrar caso acordasse. Limpou os ferimentos da criança. Havia um corte no braço também, ela percebeu, mas o da perna era o mais profundo. Quando conseguiu limpar o sangue, espalhar a pomada verde e malcheirosa, enfaixar a perna de Sylvie, e fazê-la parar de chorar, disse-lhe para se deitar.
Saiu do quarto e contemplou o lobo atirado no chão, como uma grande massa peluda e inerte. Nada parecia real. Ela afastou qualquer pensamento enquanto o fazia erguer alguns centímetros do chão e o guiava até o andar debaixo. Iria matá-lo se lembrasse, então obrigou-se a esquecer. Apenas por enquanto, não iria apensar em nada. Trancou-o outra vez no escritório. Sem forças, sentou-se, encostada à parede. Foi a primeira vez que a dor física a atingiu. E tudo voltou.
Apoiando a cabeça nas mãos, ela chorou, deixando que o desespero se dissolvesse em soluços.
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- Sofia!
Remus correu atrás da garota. Ela aprecia ter perdido o controle enquanto ouvia o final da história. Saíra do apartamento de repente, batendo a porta e descendo as escadas com o rosto marcado pela dor e pelas lágrimas. Misturara-se aos passantes na rua, mas ele ainda conseguia vê-la, de vez em quando, em algumas esquinas. Como ela não parou de correr, ele desistiu de segui-la. Daria a ela algum tempo, e depois tentaria explicar tudo. Era importante para ele, ele não sabia por que, mas era fundamental que ela entendesse tudo.
Enquanto ele dava meia volta e ia para casa, ela continuou correndo. Corria com o rosto molhado e vermelho, a visão turva por causa do choro. Não sabia para onde ia. Queria a mãe. Queria ficar sozinha. Queria sumir. Como não sabia o que queria, continuou correndo.
- Ei, Sofia!
Ela não parou para ver quem a chamara. Não se importava. Precisava continuar correndo, por que se parasse tudo iria alcançá-la. A dor, a vergonha, a raiva. O passado. Era isso o que ela queria: fugir do passado.
Quando sentiu que suas forças a deixavam, diminuiu o ritmo até parar, perdida, sem saber aonde estava. Só havia mato e umas poucas casas ao seu redor. Afastara-se da cidade e não tinha idéia de como voltar. Sentou à beira da estrada, sentindo-se patética. Furiosa consigo mesma, afundou as unhas na própria pele, com uma vaga lembrança da voz de Remus dizendo a ela para parar. Mas não parou. A dor física parecia uma boa maneira de ignorar a confusão de sentimentos que borbulhavam dentro dela.
- Sofia!
Ela não ergueu o rosto ao ouvir o grito distante que a chamava. Aquele nem era seu nome, afinal! Continuou ali, vendo um filete de sangue escorrer pelo peito, manchando a blusa, até que o som de passos e a repentina sombra sobre ela a fizeram levantar os olhos.
- Sofia?
Ela demorou um tempo para reconhecê-lo. Não usava o uniforme de caixa de supermercado, mas as sardas no rosto preocupado o denunciaram. Era o mesmo rapaz loiro e alto que conversara com ela no dia em que chegara, e com quem falar mais algumas vezes, quando ia comprar algo para o pai ou fazer um lanche. Brian, era seu nome. Brian alguma coisa. Ele ofegava, cansado da corrida, e seus cabelos estavam bagunçados, grudados na testa úmida de suor. E havia um ar de preocupação em seu rosto.
- Puxa, você corre como um raio – ele comentou, com a respiração entrecortada. Ela desviou o olhar, consciente de seu estado lamentável – O que aconteceu?
- Não é da sua conta – ela retrucou, áspera.
- Você está sangrando – ele se abaixou e fez menção de tocá-la. Com um tapa, ela o afastou e ficou de pé rapidamente, pronta para brigar.
- Sei que estou. Vá embora daqui.
- Sofia, o que está havendo? Olhe... – ele ergueu as mãos com as palmas viradas para ela, como que mostrando que não faria nada que ela não quisesse – Eu só quero ajudá-la, está bem? Não vou fazer nada. Se você me contar quem a deixou assim eu...
- Ninguém me deixou assim. E eu não quero a sua ajuda. O quanto preciso me afastar para que vejam que eu quero ficar sozinha?
- Ninguém gosta de ficar sozinho.
- Eu gosto! Então vá embora! – exasperada, vendo que ele não se mexia, ela gritou com ele ainda mais – Saia daqui, seu idiota, não está ouvindo? Deixe-me em paz!
Ele avançou em sua direção, impassível. Ela bateu nele, fechou os punhos e atingiu-o no peito, mas ele não se moveu. Era mais forte do que parecia. Segurou-a pelos pulsos impedindo-a de atingi-lo, e ela lhe lançou um olhar feroz. Então, contra todas as suas expectativas, ele a abraçou.
- Solte-me – ela pediu mais uma vez – Eu já tenho um milhão de problemas. Deixe-me sozinha, por favor.
As lágrimas foram inevitáveis. Parecia que chorar era só o que ela conseguia fazer desde que chegara àquela cidade. A cabeça encostada em seu peito, ela continuou chorando, enquanto ele lhe afagava os cabelos, cansada demais até para se importar com o que Brian devia estar pensando dela. Com tanta dor, não havia espaço para a vergonha. Mas ele não pareceu se importar. Continuou a abraçá-la com força, e por um momento ela sentiu que ali, com ele, nada mais iria lhe fazer mal. Sentiu-se segura.
- Não vá embora – implorou.
- Não vou.
Quando ela parou de chorar, ele aparatou com ela, os braços ainda envolvendo firmemente sua cintura. Ela parecia tão fraca que ele temia que ela desmoronasse se ele a soltasse. Pararam em frente a um prédio pequeno e bonito, e ele a carregou para dentro. Aparatar parecia ter lhe tirado o que restara de sua força. Ela deitou a cabeça em seu ombro e fechou os olhos, ouvindo os sons a sua volta, sem saber se era sonho ou realidade. Sentiu que ele a deitava e abriu os olhos apenas por tempo o suficiente para ver que estava em um quarto minúsculo, em uma cama muito confortável. Ficou ali, imóvel, exatamente como fora deixada, até que ele voltou e ela sentiu o colchão afundar ao seu lado. Algo muito quente foi pressionado contra seu peito e pescoço. Ela ofegou.
- O que é isso? – gemeu, com uma pontada de receio.
- Shh – ele colocou a mão em concha em seu rosto, para acalmá-la. Nunca vira alguém parecer tão esgotado emocionalmente como ela. Não tinha certeza de como agir – Só vou limpar o corte e fechá-lo. Depois vou deixar você dormir.
Sylvie permitiu que ele cuidasse dela. Estremeceu ao contato com sua pele, sentindo um calor estranho quando ele roçou a ponta de seus dedos por seu braço e então a beijou levemente na testa. Nunca sentira esse tipo de ternura, não de um homem. Não tivera um pai para cuidar dela, ou um namorado que conhecesse seu lado mais auto-destrutivo. Era a primeira vez que era exposta a esse tipo de cuidado, a um carinho tão grande e sem cobranças. De algum modo, aquilo pareceu aliviar o peso em seu peito. Entrelaçou seus dedos nos dele.
- Fique comigo – murmurou. Não abriu os olhos para ver que ele corara. Mas ele concordou e deitou-se ao lado dela. Ela aninhou-se e dormiu em seus braços.
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Remus foi procurá-la em seu quarto de hotel, dois dias depois. Encontrou-a saindo, arrastando uma mala. Ela parou ao vê-lo, como se tivesse sido petrificada. Ainda não contara a ele. Não sabia se teria coragem.
- Senhor Lupin – ela largou a bagagem de mão, sem ligar para o barulho que fez ao atingir o som – Eu ia falar com o senhor. Estou indo embora.
- Estou vendo. Mas eu também precisava lhe explicar algumas coisas, Sofia. Você não me deixou terminar a história. Sei que ficou assustada, mas preciso que entenda.
- Claro – ela afastou-se para que ele entrasse em seu quarto. Teria que enfrentar isso cedo ou tarde. Rezara para que fosse tarde, mas se o momento se apresentara daquela forma incontestável, não havia como escapar – Sente-se, por favor.
Como só havia uma cadeira no quarto que alugara, ela arriou na cama, enquanto tentava imaginar o que dizer. Como contar a um homem que você é a filha que ele não vê há mais de dez anos? Ela queria fazer isso da forma mais delicada possível, para não magoá-lo, mas não havia um jeito delicado de confessar uma mentira como a que ela vinha vivendo nas últimas semanas. Era tudo ou nada.
- Sofia – ele falou no instante em que ela abrira a boca para começar. Aquilo a deixou aliviada – Eu nunca quis que aquilo acontecesse. Nunca quis passar minha condição a qualquer um, quanto menos uma criança tão linda e inteligente como era Sylvie. Ela tinha um futuro incrível à sua frente e eu o arruinei. Não sabe o quanto ainda me culpo, o quanto sofro ao pensar no mal que proporcionei a ela. Queria ter podido reparar isso.
- Mas você foi embora – ela não pôde controlar a língua afiada, antes de alfinetá-lo. Viu a dor em seus olhos.
- Isso foi um acordo que fiz com Ninfadora. Nós decidimos que assim seria melhor para nossa filha. Foi por isso que vim para cá.
- Talvez ela não concordasse com isso. Talvez ela precisasse de você – ela não podia se conter – Acho que ir embora foi um erro ainda maior do que mordê-la. Você passou por isso por toda a sua vida. Podia tê-la ajudado.
- Já pensei nisso, Sofia. Mas nunca vou poder ter certeza, por que não conheço minha filha. Não posso nem me imaginar encontrando-a a essa altura. E ela também não deve pensar em mim.
- É claro que pensa! – ela estava de pé. Tinha a voz firme, sem qualquer vestígio de lágrimas. Achava que as tinha gasto todas há dois dias, com Brian. Sua mente estava surpreendentemente clara – Ela pensa em você a cada dia e a cada noite, Remus. Ela tem raiva por você ter ido embora e abandoná-la e tem muito medo. Culpou-o por ser amaldiçoada por muito tempo antes de entender que não fora sua culpa. Você podia ter evitado isso. Devia estar lá para evitar isso.
- Sofia...
- Ainda não acabei. Você e Ninfadora entraram em um acordo ridículo que não fez bem a nenhum dos três. Ela sente sua falta. Ela sente sua falta imensamente e você a dela. E Sylvie enfrentou a lua cheia mês após mês apenas com a mãe para suportá-la, enquanto você estava aqui, tentando esquecer o passado, como se com isso pudesse apagá-lo. Mas não pode. E Sylvie odiou você por muito tempo, sim, com todo o seu coração, antes de vir aqui e conhecê-lo – sua voz começou a embargar, mas ela engoliu, tentando desfazer o nó que começava a se formar em sua garganta – Ela sofreu muito, do mesmo modo que você, mas foi ainda pior, por que você teve seus pais ao seu lado o tempo todo. E eu não tive.
Ela desabou na cama, tremendo, esperando sua reação. Remus olhava para ela, com a boca meio aberta e os olhos arregalados. Seria cômico se ela não estivesse tão preocupada com o que ele ia dizer. Acabara de confessar. Acabara de colocar seu coração para fora. E ele parecia incapaz de dizer uma palavra em relação a isso.
- S-Sofia... – ele levantou e sentou ao seu lado – Tem... alguma coisa que você queira me explicar?
Ela riu. Parecia a última coisa que devia fazer, mas mesmo assim soltou uma risada nervosa. Ainda tremia quando colocou sua mão sobre a dele.
- Bem – ela disse, lentamente – Para começar, meu nome não é Sofia.
*
N/A: Não se preocupem, meninas! A Tonks esteve meio ausente mas ela volta com tudo no cap. seguinte!! :D
Obrigada para quem comentou, fico muito feliz!! E a quem está só lendo tbm... mas comentar não custa nada, né? ;p
Beijos,
Drusilla Tonks
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