Ruim.
Rodeado por frascos coloridos e polimorfos, Severus Snape estava sentado diante de sua mesa de professor, as duas mãos apoiando o queixo, os olhos fora de foco. Pensava. Ponderava. Logo Harry Potter estaria lá para mais uma aula de Occlumency que o garoto certamente repudiava. Não posso dizer, pensava o professor, que o sentimento não seja recíproco.
Diante de si, a penseira emanava seu brilho prateado usual. Ao seu lado, estava a varinha. O que Snape na verdade tentava realizar era o raciocínio óbvio: guardar seus pensamentos e lembranças para que Potter, num acidente, não acabasse descobrindo-os. Essa era a parte fácil – a difícil, e dolorosa, era recordar os momentos mais tenebrosos...
Não havia dúvidas de qual seria o primeiro. Suspirou. Aquela lembrança perseguia-o dia após dia, em cada palavra sua, em cada atitude, em todo pesadelo. Não conseguia deixar de lembrar da situação sem um enorme aperto no coração. Era arrependimento, culpa. Se pudesse, daria toda sua vida para voltar ao passado e fazê-lo diferente.
Mas não podia. Pelo contrário, agora era obrigado a conviver com ele para sempre, do modo lamentável como acontecera...
Suas lembranças tinham início na noite do segundo dia de junho de 1975.
Ainda podia se sentir no corpo do jovem Severus, tímido e rabugento. Via-se cobrindo sua cabeça com a capa antes de deixar a sala comunal da Sonserina. Já tinha passado das onze e, por estar apenas no quinto ano, não poderia ficar vagando pelos corredores do castelo; estava tentando ser discreto, mesmo sabendo que não seria um gorro que o esconderia.
Tentando ao máximo não fazer barulho, foi segurando o fôlego até alcançar o sétimo andar. Foi um caminho longo e tenso desde as masmorras. Somente se sentiu tranqüilo ao finalmente avistar a grande tapeçaria de Barnabas, the Barny, e seus amigos trolls aprendendo a dançar balé. Suspirou e sorriu. Ainda nas pontas dos pés, passou três vezes na frente da parede vazia oposta ao cenário, murmurando algumas poucas palavras por baixo da respiração.
Por um momento, voltou à realidade. Repetiu-as para si mesmo. Como queria, ah, como queria que fosse verdade..!
Um lugar onde eu possa vê-la... onde possamos ficar sozinhos... para sempre.
A porta da Sala do Requerimento surgiu como se sempre tivesse estado ali. Girando a maçaneta, entrou.
Aquele recinto jamais era igual ao que ele visitara da última vez. O daquela noite era estranha e agradavelmente diferente, principalmente pelo falso céu que brilhava acima de seus olhos, como no Salão Principal. Gostou muito. Aliás, sempre gostava. Severus se divertia a cada mudança, imaginando como poderia haver no mundo tantos lugares reconfortantes – e eram realmente muitos, porque ele ia para lá quase todos os dias.
Certamente não era somente para admirar os novos quartos. O que ele mais gostava, na verdade, era da pessoa com quem ele ia se encontrar naquelas quase todas as noites, e que agora se punha a sorrir para ele de modo amoroso. Ela caminhou em sua direção e entrelaçou todos os seus dez dedos nos dele, como se quisesse fazer-lhe cócegas.
— Hoje a noite está muito bonita, não é mesmo?
Seus olhos verdes pareciam brilhar mais do que as estrelas. Severus sentiu um aperto no coração, o mesmo que sentira quando a vira pela primeira vez. Era como se neles houvesse algum tipo de feitiço capaz de deixá-lo alheio a tudo, atordoado, apaixonado...
Severus estava enfeitiçado pelos olhos de Lily Evans.
Ainda de mãos dadas, eles se sentaram no chão, um ao lado do outro, numa posição em que pudessem ver o céu estrelado. Sentiam como se pudessem ficar ali a noite toda, conversando, namorando, sentindo a presença um do outro... como faziam sempre, às escondidas de todo o castelo.
— Obrigado — ele se viu falando, tímido, por trás dos cabelos compridos.
— Pelo quê?
— Por existir.
Lily deu uma risada sem-graça.
— Ora... assim eu fico sem jeito.
— Mas é verdade. Eu tenho que lhe dizer isso, porque é verdade.
— Eu... eu também gosto muito de você.
Ele virou o rosto, e seus lábios se encontraram num beijo suave, ainda que superficial, mas quente.
Voltando ao presente, Severus levou as pontas dos dedos até a boca, para ver se ainda sentia o calor. Mas estavam frios.
A voz de Lily chamou-o para o passado:
— E gosto tanto... tanto que... eu gostaria de contar para todo mundo.
Ele sentiu uma pontada no peito.
— Nós já conversamos sobre isso.
— Eu sei... mas eu pensei que talvez —
— Eu não vou mudar de idéia.
Lembrava-se de como aquela questão o incomodava. Depois que haviam descoberto o quanto era parecidos e como conseguiam se dar tão bem, os dois passaram a se encontrar escondidos, como se aquilo fosse uma brincadeira, um desafio perante as regras da escola. Saíam à noite, mentiam para os amigos, desapareciam do nada, às vezes perdiam uma aula ou outra. Divertiam-se, e assim passaram a gostar ainda mais um do outro.
Quando a vontade de se ver foi crescendo, se tornando cada vez maior, insuperável e insuportável, eles passaram a se encontrar todos os dias atrás das portas secretas da Sala do Requerimento. Ela era conhecida por poucos, e assim Snape acreditava que estariam protegidos dos olhares maus e curiosos dos alunos de Hogwarts e do resto do mundo.
Contudo, ele não poderia negar que aquelas poucas noites já não pareciam mais ser suficientes...
— O que tanto te preocupa?
— Eu já lhe disse.
— Não pode ser verdade.
— Nós já estamos conversados, certo? Vamos mudar de assunto.
— Não, Severus, não — ela respondeu firme — Tudo isso só porque sou da Grifinória? Não pode ser. Não faz sentido!
— Você obviamente não entende porque nasceu numa família trouxa. Nosso relacionamento é vergonhoso tanto pra mim quanto pra você...
— Eu não ligo pro que as pessoas dizem.
— Isso não fará com que elas parem de falar.
— É inveja, Severus!
— Vão nos jogar pragas nos corredores.
— Como se você não tivesse seus próprios feitiços, Half-Blood Prince.
— Não é você que enfrenta a ganguinha daquele inútil do Potter todos os dias...
— Pior que isso, tenho que enfrentá-lo sozinha todos os dias... Potter, Severus? Você realmente está com medo dele?
Ele abaixou a cabeça, balançando-a negativamente.
— Você não entende...
— Porque você fica me evitando, inventando mentirinhas pra tentar me convencer! Quem sabe se você falasse —
— Lily, você é uma trouxa!
Ela ficou surpresa com a interrupção. Estreitou os olhos com incredulidade.
— Se eu fosse realmente trouxa, acho que não estaria aqui, não é?
— Você não é puro-sangue.
— Ora, e nem você!
— Mas você nasceu trouxa...
— Aaah, Severus! — ela se impacientou — Nada disso importa! Daqui a pouco você vai ficar igual aquele Lorde Volde-não-sei-mais-o-quê...
— Lorde Voldemort. Ele não está de todo errado...
— O quê? Ele mata pessoas inocentes, Severus, sem motivo nenhum!
— As linhagens de bruxo estão ficando mais fracas, Lily. Os sangues de trouxas que se misturam aos nossos estão diminuindo a magia das gerações...
— Seu pai é trouxa e você é um dos melhores alunos do ano!
— Não me fale dele — ele falou amargamente —. Eu o odeio. Eu poderia ser um Prince, se não fosse por ele.
— Pare de falar essas coisas. Ele é seu pai.
— Ele é um trouxa sujo e nojento, ele arruinou minha vida!
Ao ouvir novamente sua voz em suas lembranças, Snape se surpreendeu. Falara alto demais.
— É aquele Malfoy que está te deixando assim. Ouvi dizer que ele é um Comensal. É melhor você —
— Ele não é pior do que aquele Lupin com quem você conversa.
— Você nunca falou com ele pra saber!
— E você diz de coisas que não sabe, tira conclusões precipitadas, pensa que o mundo gira conforme as “Regras da Lily”. Você não entende nada porque você nasceu trou —
— OLHE PRA VOCÊ MESMO! NÓS SOMOS IGUAIS!
Os dois se assustaram com o volume e o tom de voz da garota. Severus viu a si mesmo levantando e se dirigindo até a porta, sendo seguido de perto por Lily.
— M-me desculpe...
— É melhor irmos embora antes que ouçam mais um dos seus gritos histéricos.
No presente, ele sentiu raiva de si mesmo por ter dito palavras tão duras. Ao mesmo tempo, sabia que não podia evitá-las. Sempre fora e sempre seria assim, rancoroso.
Encontrou-se logo do lado de fora do recinto, olhando de ambos os lados antes de sair, à procura de algum espião. Sentiu Lily em seu encalço, sugando o ar ruidosamente pelo nariz. Assim como na época, supôs que ela estivesse segurando o choro. Jamais soube, pois jamais virou o rosto para vê-la.
O que passou a preocupá-lo foi, na verdade, a sombra que ele vira, segundos depois, afastando-se do corredor em que estavam no sétimo andar. Sentiu seu coração pulsar novamente de terror. Voltou-se para a porta da Sala do Requerimento, mas a maçaneta não estava mais ali. Havia desaparecido. Num reflexo, ele puxou Lily por uma das mãos e saiu correndo para o lado oposto, somente parando ao encontrar uma sala de aula vazia.
Entraram ofegantes.
— Nos viram — ouviu sua própria voz tremer.
— Você está imaginando coisas.
Não poderia realmente saber. Naquele momento, contudo, carregava a certeza no fundo do seu ser. Por mais que quisesse, sabia que eram incompatíveis e que não poderiam ficar juntos. Não poderiam ser vistos...
Ao regressar para seus aposentos nas masmorras, um único pensamento martelava em sua mente: teria que provar para quem quer que os tivesse visto juntos de que aquilo era mentira – de que ele, na realidade, a odiava.
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