De como eles brigaram o tempo



Capítulo 2 – De como eles brigaram o tempo todo


Ronald acordou com uma ligeira dor de cabeça e um gosto amargo na boca. Meio a contragosto, olhou para o relógio e viu que já passava do meio dia. Levantou-se meio resmungando consigo mesmo e rumou para o banheiro, a fim de tomar uma ducha antes de sair para procurar algo para comer.

E foi pensando no almoço que ele parou diante do espelho sem, no entanto, olhar para ele. Concentrou-se na tarefa de retirar a tampa da pasta de dente enquanto ensaiava uma melodia de uma música que ele gostava muito:

- Show me how you do that trick. "The one that makes me scream," she said. "The one that makes me laugh," she said. And threw her arms around my neck. Show me how you do it and I promise you, I promise that, I'll run away with you...

Vagarosamente, Ronald levantou os olhos para examinar o aspecto dos cabelos ruivos, que precisavam urgentemente de um bom corte. No instante em que pousou os olhos azuis no espelho, deu um pulo para trás ao mesmo tempo em que gritava:

- Você!!!

Mas, ao virar nos calcanhares, não viu ninguém lá. Uma sensação de afundamento imediatamente se instalou em seu estômago, e a vontade de voltar para a cama e se cobrir até a cabeça com as cobertas era quase mais forte do que ele. Mesmo assim, entrou no chuveiro, e foi com a água escaldante que caía sobre o seu corpo que ele teve a idéia.

Saiu do calor do banho ainda meio apressado, tropeçando na toalha que largou pelo meio do caminho entre o banheiro e o quarto. Vestiu a calça apressadamente, pulando num pé só até quase cair. Deu um breve assovio ao se segurar na borda da cômoda, e para aproveitar que já estava ali, abriu a gaveta, pegou a primeira camiseta que viu e jogou por cima um suéter de lã com uma grande letra “R” bordada. Sorriu ao constatar como odiava aqueles suéteres quando era mais novo. Eram tricotados pela mãe, iguais para toda a família, a não ser pela letra inicial do nome de cada um, e presenteados sempre no Natal. Mas, ao fim de alguns anos, percebeu o quanto eles eram quentes e confortáveis, embora fosse inegável que não eram uma peça moderna de passarela. Mas Ronald nunca ligou para esses tipos de convenções. Afinal, a aproximação do inverno fazia com que a única preocupação fosse mesmo se aquecer.

Vestindo o casaco xadrez por cima do suéter, Ronald passou derrapando pela sala de estar e saiu sem sequer apagar a luz. Parou diante do elevador, as mãos nos bolsos da jeans, os pés sem conseguir parar de bater impacientes no chão. Por fim, desistiu de apertar insistentemente o botão e rumou para a porta corta-fogo, descendo os degraus de dois em dois.

Chegou arfando a frente da livraria de esquina, na qual ele já havia reparado desde que tinha se mudado para o apartamento. Observou a vitrine empoeirada e a quantidade de livros velhos que havia ali. Era uma mistura de livraria com sebo, o local perfeito para qualquer nerd do século passado. Porque os nerds deste século, e disso Ronald sabia muito bem, eram viciados em Internet. Ele não o era em nenhum dos dois. Portanto, não era um nerd, concluiu. De repente se deu conta de porque estava parado diante da loja e resolveu entrar. Ao abrir a porta, sobressaltou-se com o tilintar de um mensageiro do vento em forma de lua e estrelas. O estabelecimento era pequeno e meio escuro, cheirando a incenso e papel antigo. O nariz de Ronald passou a protestar quando ele começou a analisar as prateleiras, sentindo-se pouco confortável num lugar que não costumava ser seu habitat.

Por ser muito pequena e abarrotada de publicações de todos os tipos e tamanhos, era difícil caminhar pela loja sem esbarrar em nada. Ronald logo se deu conta do quanto isso podia ser constrangedor quando esbarrou numa enorme pilha de livros, espalhando-os pelo chão com um baque seco.

Foi então que notou a presença dela. Enquanto se abaixava para recolher o estrago que havia provocado, ela parou ao seu lado. Os sapatos de bico redondo estilo boneca e as meias coloridas combinavam com a cara de menina e os cabelos muito claros que emolduravam um rosto ligeiramente pálido. Os olhos escuros e levemente esbugalhados observavam Ronald num misto de curiosidade e divertimento, um meio sorriso passeando pelos lábios enquanto ela falava:

- Se eu fosse você, levaria este. Fala sobre como se comunicar com espíritos. É interessante e parece que suas vibrações estão voltadas para esse assunto, pelo que posso sentir.

Ronald não entendeu o que ela falava e permaneceu encarando-a de boca aberta, até que notou que segurava um livro de capa vermelha com o título “E se fosse verdade: comunicação espiritual”. Pensou em dizer exatamente o que procurava, embora julgasse não ser necessário, mas a vendedora parecia extremamente interessada em algo que estava logo atrás do ombro de Ronald. Ele sentiu um ligeiro arrepio e um perfume de flores do campo. Virou o corpo ligeiramente, dando de cara com uma irritada moça de cabelos fofos e olhos grandes e castanhos, parecendo furiosos.

- Posso saber o que é que você está fazendo?

- Eu!? – respondeu Ronald, tentando concentrar na voz o máximo de desdém que conseguia reunir enquanto sentia seus joelhos tremerem de nervoso. - Estou comprando alguns livros para ver se me livro de você.

- Se acha que livros irão fazer com que eu te deixe morar na minha casa, está muito enganado – provocou a morena, indicando o impresso nas mãos de Ronald.

- Quem está aí? Posso sentir algo estranho... – a vendedora fixava seus olhos sonhadores no lugar errado, e, por um momento, Ronald achou aquilo engraçado e teve vontade de rir.

- Viu só!? Ela não te vê! Porque será que ela não consegue te enxergar? Olha... eu preciso te dizer uma coisa, moça. Você está morta.

Por um breve momento, ambos se encararam com olhares desafiadores. Ele esperava que ela fosse aceitar sua colocação, que era mais do que óbvia, mas no segundo seguinte a morena já estava rindo ironicamente. Na verdade, estava às gargalhadas, enquanto a irritação de Ronald crescia. A vendedora agora parecia muito interessada em algo que estava localizado no teto da loja, o que deu a Ronald tempo de observar a prateleira de livros sobrenaturais, tentando, em vão, ignorar as palavras da mulher a seu lado:

- Eu não estou morta e nem sou um espírito! Eu sou a dona do apartamento onde você se encontra, e quero minha casa de volta. E preciso te dizer que esses livros não irão te ajudar em nada! “Exorcismo em 100 lições”, credo! “Como espantar um espírito agourento”, eu não sou agourenta, oras! “Jogo do copo”, é, esse é a sua cara, não larga a cerveja para nada! “Vivendo entre os mortos”, “Comunicação espiritual”. Quanto lixo! Você não é o tipo de homem que possa ser levado a sério com esse monte de baboseira.

- Ora, cale a boca, sim? Estou tentando achar um meio de tirar você da minha vida – exclamou Ronald, enquanto segurava uma braçada de livros e se dirigia ao balcão, onde a vendedora estava novamente posicionada e parecia ler uma revista de ponta cabeça, já esquecida do estranho visitante que falava sozinho. Ronald registrou o fato de a revista estar na posição errada com um franzir de testa antes de se dirigir a ela. – Moça, vou levar estes daqui.

- Ele ainda está aí, não é?

- Quem? – perguntou Ronald, esperando que ela respondesse que também via a morena e confirmasse que sua teoria sobre estar enlouquecendo era, na verdade, falsa, e tudo não passava de um grande mal entendido que poderia ser facilmente remediável com os conhecimentos certos.

- Ele parece não gostar de você...

- Olha só! Até que essa moça é esperta – disse a jovem, os braços cruzados diante do corpo e o pé batendo insistentemente no chão. Ronald lembrou de si mesmo e de seu jeito inquieto enquanto observava a garota.

- Anda, vamos sair daqui – dirigiu-se para ela depois de pagar os livros. – Obrigado...er... qual o seu nome mesmo?

- Luna... Luna Lovegood.

- Ok, obrigado, senhorita Lovegood.

- Se precisar de ajuda, é só me procurar. Boa sorte!

Ronald assentiu com a cabeça e saiu, seguido de perto pela morena, que não parava um só segundo de reclamar dos livros que ele havia adquirido na loja. Eventualmente, ele se descontrolava e respondia alguma coisa a ela, mas julgou que as pessoas que passavam na rua iriam pensar que ele era mesmo um louco qualquer, conversando com as paredes, os postes e os cachorros vagabundos. A conversa só fez com que Ronald chegasse em casa com uma dor de cabeça gigantesca e rumasse determinado para a cozinha para procurar um remédio, deixando os livros displicentemente sobre o sofá vermelho de xale escocês. Foi seguido pela mulher, que não parava de resmungar um só instante:

- E tem mais: se você pensa que pode me comprar com livros, está muito enganado! Eu já disse isso? É, já disse. Mas você tem que entender, os livros que realmente me interessam eu já tenho. São todos livros de... hã... bem, não importa, o fato é que eu não acredito em nada dessas baboseiras de espíritos e pessoas que podem se comunicar com eles. Se você morre, acabou e pronto.

- Ah! É mesmo, senhorita? – disse Ronald, os olhos fixos nela enquanto jogava uma aspirina efervescente no copo. Hesitou, e decidiu que tomar duas delas seria melhor.

- É sim! – bufou a morena.

- Então, você poderia me explicar como faz isso?

E ele apontou para baixo, onde o corpo da jovem estava totalmente atravessado pela pequena mesa branca da cozinha. Ela abriu a boca para falar, parecendo bastante assustada, mas, no instante seguinte, desapareceu.

- NÃO!

Ronald correu em direção ao local onde ela estivera, mas era tarde demais. Sentindo-se pouco à vontade para consultar qualquer livro que fosse, ele rumou para a cama a fim de tentar descansar, embora ainda não fosse sequer noite. Antes de se deitar, ele cerrou a janela para evitar que a claridade do resto de dia adentrasse no quarto.

No momento em que se enfiou debaixo das cobertas e apagou a luz do abajur ao lado da cama, uma voz irrompeu na escuridão artificial:

- Eu não posso estar morta...

À voz se seguiu um barulho de coisa quebrada, antes que Ronald conseguisse acender novamente a luz. Ela observou, com um olhar de censura, o abajur estilhaçado no chão, mas depois pareceu se esquecer dele. Abaixou a cabeça e afastou um cacho castanho da frente dos olhos antes de dizer:

- Isso é, se é que as pessoas conseguem saber com certeza se estão mortas. A verdade é que eu não me sinto...sabe... morta.

- Costuma-se dizer que você vê uma luz. Siga na direção dela e me deixe em paz – resmungou Ronald, cobrindo a cabeça com o cobertor, como se assim pudesse deixar de ouvir a voz entristecida dela.

- Mas não há luz alguma! Eu, pelo menos, não vejo. E nem vozes nem nada que me indique para onde devo ir.

Ronald descobriu a cabeça e observou a morena, sentada na beira da cama e de costas para ele. Seu cabelo comprido caía em cachos meio bagunçados, mas muito bonitos, naturais. O castanho deles contrastava com a blusa branca que ela usava, deixando um efeito agradável de se olhar. As costas dela estavam arqueadas e a curva produzida pela posição era particularmente interessante. Ronald não conseguia despregar os olhos dela.

Tudo o que ele queria era ficar sozinho. E ela queria sua casa de volta. Não era uma combinação ideal, já que falavam do mesmo apartamento. E viver assombrado por um espírito que não tem certeza que morreu não estava nos planos de Ronald, embora, por algum motivo alheio à sua vontade, as palavras que ele poderia usar para mandá-la embora morreram no momento em que ela se virou e ele encarou seus olhos castanhos e o rosto confuso.

- Qual é o seu nome?

- Meu nome? – ela hesitou por um momento, franzindo a testa como se fizesse força para se lembrar. – Eu... eu não sei!

- Então acho que podemos começar por aí. Escute, hoje é sábado, eu vou tentar conversar com a mulher que me alugou seu... bem... esse apartamento. Assim poderemos descobrir o que aconteceu com você, que tal? A propósito, eu sou Ronald Weasley.

A morena assentiu e pareceu reanimada com a idéia. Ronald se levantou e seguiu até a janela. Sentia vontade de passar o tempo com ela, talvez assistir um pouco de televisão ao seu lado, ouvir uma música ou só ficar conversando mesmo.

Mas, quando girou o corpo, sorrindo e pronto para dizer qualquer coisa mais amigável, percebeu que ela tinha desaparecido. E não pôde evitar o desapontamento que tomou conta de si. Foi para a sala, jogou-se de qualquer jeito no sofá e ligou a televisão. O videoclipe de sua música preferida já estava pela metade, e ele fechou os olhos para ouvir:

- Daylight whipped me into shape. I must have been asleep for days. And moving lips to breathe her name I open up my eyes. I find myself alone, alone, alone, above a raging sea that stole the only girl I loved and drowned her deep inside of me.

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