De como eles se conheceram



Capítulo 1 – De como eles se conheceram


- Ahhhhhhhhhhhhhhhh!

- Ahhhhhhhhhhhhhhhh!

Não dava para saber qual dos dois tinha gritado mais alto. E nem quem estava mais assustado. Se algum deles tivesse preso ao braço um monitor capaz de medir batimentos cardíacos, o aparelho já teria estourado num protesto barulhento contra a aceleração de seus pulsos.

- O que diabos você está fazendo na minha casa?

É... nenhum dos dois era muito criativo para frases inventadas e proferidas sem pensar, após um momento de grande susto. Sendo assim, a pergunta mais lógica seria aquela mesma. Mas Ronald acreditava que tinha mais motivos para estar assustado do que a intrusa maluca que resolveu aparecer em seu apartamento no meio da noite, alegando que aquela era a casa dela.

Já tinha sido particularmente difícil encontrar um novo lar que satisfizesse seus anseios por isolamento e solidão. Ronald percorreu e esquadrinhou cada centímetro de Londres, ou, pelo menos, aqueles que julgava menos barulhentos, tentando encontrar algum apartamento que não tivesse pelotas de mofo no banheiro ou fosse abarrotado de obras de arte um tanto quanto duvidosas.

Ao adentrar aquele quarto-e-sala simples, Ronald se sentiu em casa como há muito não acontecia. Inspirou, inalando demoradamente o ar para dentro dos pulmões, e a atmosfera recendia a lavanda, um ligeiro perfume suave de flores do campo. Mas, o que o fez decidir definitivamente em ficar com o apartamento foi o sofá vermelho, coberto por um xale escocês de lã. Ao se sentar nele, constatou que o móvel era tão absurdamente confortável que não poderia negar a si mesmo a chance de passar longas noites ali jogado, assistindo a alguma baboseira na antiquada, porém, grande tela da televisão, e tomando uma ou duas (dúzias de) cervejas. Na maioria das vezes ele adormecia na metade do filme ou programa, mas quem ligava? Afinal, ele não tinha ninguém para se importar.

No entanto, não houve tempo para que ele adormecesse naquela noite. Ronald havia acabado de deixar cair um pouco de cerveja por cima de alguns livros que descansavam sobre a mesa de centro, e uma mancha rapidamente se formava na capa de um deles no momento em que ela apareceu.

Depois dos gritos assustados, a primeira coisa que a estranha figura de cabelos enrolados e castanhos notou foi o estrago que Ronald havia feito nos livros.

- Eu não acredito nisso!

- Não... não acredita no quê? Quem é você? Eu... eu acho que deve haver algum engano...

- Não há engano nenhum, oras! Eu... eu sou... a dona dessa casa! E você a invadiu e, ainda por cima, derrubou cerveja nos meus livros! E se você não sair agora, eu vou chamar a polícia!

- Moça, calma – Ronald tentou contornar, ao mesmo tempo em que esfregava os olhos e sacudia a cabeça, como se a mulher fosse uma estranha ilusão de ótica provocada pelo excesso de cerveja. – Esse apartamento é meu. Eu o aluguei há uma semana, ele estava vazio.

- Isso é absolutamente impossível! – os olhos castanhos da jovem piscavam incontrolavelmente, esquadrinhando cada centímetro do lugar que ela insistia em alegar ser seu. – Se esta não fosse minha casa, como eu saberia, por exemplo, que há uma foto minha exatamente naquela prateleira do canto e...

Ao olhar para o local para onde ela apontava, no entanto, Ronald notou que ali só havia um porta-retratos vazio. Registrando a informação ao mesmo tempo que a invasora, ele só teve tempo de observá-la resmungando algo como “que audácia, ele deve tê-la jogado fora, chamarei a polícia”, e seguindo em direção à cozinha

- Ei! Ei! Volte aqui e...

Ronald não sabia qual fato o tinha deixado mais intrigado: se a mulher entrar em seu apartamento àquela hora da noite ou ter constatado seu sumiço repentino, tão logo ele terminou de seguir seus passos e atravessar o portal da cozinha apenas para averiguar que estava vazia.

- Eu devo estar ficando louco – murmurou, balançando novamente a cabeça de um lado para o outro como se quisesse afastar a lembrança particularmente incômoda e castanha de sua mente. – É efeito da cerveja, Ronald. Já vai passar.

Porém, não passou.




- Peraí, Rony... deixa eu ver se entendi...

Era madrugada de sexta-feira, e finalmente Ronald tinha aceitado o convite de seus irmãos gêmeos mais velhos para tomar uma cerveja num bar. Ele não podia ser chamado de sociável nos últimos meses, já que vinha fazendo um constante esforço para se isolar do mundo desde que tudo acontecera. Os irmãos não queriam forçá-lo, mas já começava a se instalar na família um estranho pressentimento de que, talvez, Ronald não fosse se recuperar com facilidade.

- Então, Jorge, como eu expliquei, no momento em que eu entrei na cozinha, tudo o que encontrei foi a geladeira e o fogão, imóveis como deveriam ser. Ela tinha... sei lá... descido pelo ralo da pia, desaparecido completamente!


- Ela o quê? – Fred não foi capaz de segurar o riso e a expressão pouco compreensiva que tomou conta dele no momento em que o irmão terminou de contar a inusitada aparição (e posterior desaparição). Ele lançou um olhar de esguela para Jorge antes de prosseguir – Rony, há quanto tempo você não faz... hum... bem...

- Sexo – completou Jorge enfatizando a palavra com um sorriso maroto.

- Calem a boca, vocês dois!

- Ei, eu estou falando sério! – prosseguiu Fred, não sem antes dar um grande gole na garrafa de cerveja escura que bebia, talvez para tentar controlar as gargalhadas que sentia vontade de dar. Depois, continuou - Já é caso para o St. Mungus, aquele hospital psiquiátrico lá do centro de Londres. Ouvir vozes, ver vultos com cabelos longos, cacheados e castanhos, de olhos grandes e cílios marcados, com roupas sensuais e esvoaçantes.

- Não falei nada sobre as roupas dela – protestou Ronald, já arrependido de ter iniciado aquela incômoda conversa.

- Rony, Rony, meu caro – dessa vez era Jorge quem falava – Não se faz necessário que você nos conte suas fantasiais sexuais com mulheres maníacas que aparecem à meia noite na sua casa querendo mandar em você. Eu já disse que o problema todo é que você precisa sair de casa. Ver gente, sabe? Antes que vire um alcoólatra e, pior, fã incondicional do programa de fim de noite da Oprah.

- Não sei o que eu tinha na cabeça quando resolvi ter essa conversa com vocês – disse Ronald, fazendo menção de se levantar, mas desistindo no momento seguinte e pedindo uma nova garrafa de cerveja para o garçom. Ele prosseguiu – Eu só sei que a mulher apareceu na minha casa, e disse que aquele apartamento é dela. Fred, Jorge, será que ela está...

- Morta? – completou Fred, como se lesse os pensamentos do irmão. - Hummm... não sei. Quando a gente era criança, lembro que mamãe não gostava de nada que fosse relacionado a espíritos, não é mesmo, Jorge – e aqui, o irmão parou para fazer uma teatral expressão de pavor. - Ela tinha verdadeira aversão quando eu e Jorge decidíamos alugar filmes de terror, os nossos preferidos, e desligava a televisão da sala quando passava algum. Numa certa madrugada, quando você ainda era muito pirralho, Rony, ela acordou gritando, dizendo que havia uma alma que tinha vindo puxar o pé dela, ou coisa que o valha. Mas, vou confessar uma coisa: naquele dia, no alto dos meus 9, 10 anos, eu fiquei com um pouco de medo. Você era pequeno demais, acho que não entendeu muito bem o que aconteceu. Mas nunca se sabe, não é mesmo? Fantasmas, assombrações e essas coisas...

- Viu só! Até você admite a possibilidade de que a tal mulher do meu apartamento seja um espírito!

- Mas a chance de ser apenas uma alucinação da sua mente embriagada me parece muito mais plausível – comentou Jorge, expressando sabedoria.

- Ah, cara. Beba sua cerveja e vamos embora...

- Ei, Rony, tive uma idéia! – disse Fred, de repente, batendo a mão na testa com uma força ligeiramente maior do que pretendia, o que fez com que ele produzisse uma careta enquanto Ronald comentava:

- Provavelmente isso irá me meter em alguma encrenca. Vocês têm uma tendência natural para arrumar confusão.

- Então não falo nada – disse Fred, cruzando os braços diante do corpo e piscando um olho de maneira nada discreta para Jorge.

- Ora, pro diabo! Claro que vai falar! Anda logo!

- E se você verificasse com a imobiliária quem era a antiga dona do apartamento? – disse Fred, com um ar de Sherlock Holmes se dirigindo a seu assistente Watson.

Ronald pareceu hesitar por um momento, procurando uma brecha na sugestão do irmão. Encarou-o, e depois a Jorge, e ambos apenas esperavam que ele respondesse. Por fim, esboçou um ligeiro sorriso e completou:

- E não é que isso é uma ótima idéia? Obrigado, Fred.

- Rony! Aonde você vai? – perguntou Fred ao ver o irmão se levantar repentinamente da mesa e se afastar do bar. – Não é por nada, mas a imobiliária está fechada agora! Rony! RONY!

Mas Ronald já estava abrindo a porta do carro do outro lado da rua, deixando para trás os irmãos. Fred apenas praguejou, resmungando que teria que pagar novamente a conta do folgado – e alcoólatra – do seu irmão caçula. Jorge remexeu os bolsos para retirar alguns trocados amassados e pensou no estrago que certas coisas podem fazer na vida de um homem. E ele não falava de mulheres nem de cerveja.

Ronald chegou ao apartamento ligeiramente afetado pela bebida. Não sabia por que tinha saído tão rápido do bar, já que era sexta-feira, madrugada, e ele não conseguiria fazer contato com a mulher que havia lhe alugado o apartamento até segunda. Ao entrar na sala, deu de cara com os porta-retratos que ele mesmo havia colocado em cima da televisão. Molduras coloridas e cenas alegres que não combinavam com o que ele sentia ao olhar para elas.

Procurando se desviar das incômodas lembranças e da fisgada no estômago que provocavam, o ruivo correu os olhos pela casa, fixando-os na janela pontilhada pelas luzes noturnas de Londres. Instintivamente, pegou-se pensando na estranha mulher, até mesmo desejando que ela aparecesse novamente. Adormeceu com a roupa do corpo e a luz acesa.

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