Travessa do Tranco
Era noite, e conseqüentemente a Travessa do Tranco estava mais cheia do que na maior parte do tempo. De todos os locais completamente bruxos conhecidos e populares, aquele era com certeza o mais macabro. Nas lojas se vendiam itens medonhos, e nos compartimentos mais obscuros itens dos mais valiosos de magia negra. Era um ligar conhecido por ser "da pesada", lotado de bruxos das trevas... E se perder por ali era quase uma morte certa, se o indivíduo fosse de sorte.
De fato, os boatos não eram errados. Dez entre dez daquelas pessoas tinham envolvimento com o lado negro ou estavam perdidas. Era engraçado o fato do Ministério nunca ter interferido realmente, mesmo naqueles tempos duvidosos, mas era como se todos tivessem certo "respeito" pelo local... Ainda que fosse algo absurdo. Se viam, fingiam que não viam. E não fingissem...
Dentre a extensa rua de lojas com pouca coloração, uma estava praticamente vazia. Nela se encontravam apenas duas pessoas. Uma, pela silhueta fina e levemente ondulosa, era facilmente reconhecida como uma mulher. A outra, mais alta e larga, podia-se presumir ser um homem. Ambos vestiam-se de trajes negras, com capuzes, e devido à fraca iluminação que ajudava na formação do ambiente era possível ver a fina boca da mulher. Falando muito próximos entre os itens nas prateleiras e bibelôs, eram difíceis de se notar. Trocaram pequenos pacotes, e enquanto falavam, repentinamente o homem apertou o próprio braço com força, como se sentisse o mesmo queimar. Pareceram ficar mais alertas, e logo o homem aparatou, deixando a mulher próxima ao balcão pensativa.
Um homem observava a cena discretamente através da vitrine, enquanto conduzia o dedo pela mesma como se escolhesse o item desejado. Tinha cabelos grisalhos e nariz curvado grotescamente, que em conjunto com os pequenos olhos negros dava-lhe uma aparência um tanto quanto irritante. Não demorou muito para que a mulher reparasse em sua presença e caminhasse lentamente em sua direção, de forma quase cautelosa.
- Boa Noite... Está procurando alguma coisa?
O homem demorou um pouco para responder-lhe. Olhando tudo em volta, passou reto por ela, andando lentamente pela loja. Ela, irritada com a ousadia, repetiu a pergunta. Ele então virou-se para ela e olhou-a nos olhos, sério.
- Quem era aquele homem?
Ela sentiu uma sensação gélida percorrer-lhe o corpo, mas ficou calada, olhando-o severamente. Ele não se assustou, e de súbito passou a mão por uma prateleira, quebrando a maioria das poções no chão. Ela fechou os olhos por uns instantes, com as narinas trêmulas.
- O que você quer? - ela perguntou, voltando a olhá-lo raivosamente.
Ele se aproximou. Era grande, mas tinha altura bastante para ouvir a respiração da bruxa. Tirou rasteiramente a varinha do bolso, a empunhou próximo à sua face.
- Ouça, isto é uma operação. Se você cooperar, serei gentil. Quero saber quais são suas ligações com Severo Snape... E o que ele acabou de comprar da senhora.
Longe dali, um vulto se materializa. Se houvessem habitantes no local, certamente já teriam se acostumado. Mas não haviam. Não haviam, nem lá e nem nos próximos cinqüenta quilômetros arredores. Giuseppe Ville há muito não via alma viva se não os bruxos que aparatavam por lá de quando em vez. Muitas vezes. De fato, já era um hábito comum.
Não havia motivo certo pelo qual aquele lugarzinho no meio do nada em territórios Italianos estava abandonado, mas uma coisa era certa: não podia ser mais conveniente. O governo bruxo não dava muita assistência ao local, de modo que aquele era um local muito propício para ações escondidas. A proteção de aparatação clandestina era facilmente contornada com os contatos certos. Além do mais, todas as atenções estavam quase sempre voltadas para a Inglaterra. Era como uma superpotência bruxa, cujo império não tinha data para acabar... Assim como o do senhor da casa habitada mais próxima. Ou ao menos era o que acreditavam seus servos... Em sua maioria.
"[Belatriz podia dar uma limpezinha aqui para variar..." pensou o homem que aparatara, olhando em volta. Não havia sequer entrado direito na casa, mas já era possível reparar o seu mau aspecto. O papel de parede que cobria todos os cômodos estava amarelado, rachado e cheio de bolhas, contando com manchas de sangue tímidas em alguns cantos. A luz era precária, e os pequenos vãos que existiam entre o amontoado de móveis estava coberto de sujeira. Não entendia como o grande Lorde não se irritava com aquilo, mas ele não parecia se incomodar. Tampouco Severo. Acostumado às Masmorras e sua casa em Londres, que era muito pior, não tinha do que reclamar. Mas ainda assim, não perderia a chance de implicar, ainda que em pensamento, com a bruxa. Não se afeiçoava em demasia pela mulher, não gostava do jeito que tratava o lorde. Não seria nada mal se ela se pusesse em seu devido lugar.
"E falando no diabo..." ele pensou, crispando os lábios num quase sorriso ao vê-la no topo da escada. Não costumava sorrir. Além de achar que aquilo passava uma falsa segurança e sensação de intimidade para o receptor, não via muitos motivos em geral para aquilo. Ela arqueou uma sobrancelha para ele veementemente. Ele tirou o capuz.
- Já era hora... - ela reclamou, virando-lhe as costas e subindo para um quarto.
Ele não demonstrou emoção, e seguiu-a pela escada. Em pouco tempo abriu a porta do mesmo quarto. Lá estavam ela, com seu olhar arrogante de costume; sua irmã, com os longos cabelos loiros presos a um coque; e um indivíduo cujo rosto não se podia ver, pois estava encurvado sobre a escrivaninha, aparentemente lendo algo, mas que se podia identificar longos dedos esbranquiçados que percorriam o pergaminho em questão. Pareciam ter encerrado uma discussão há pouco, pelo tom levemente corado da mulher e sua boca que entreabria-se de tempo em tempo, esperando uma chance para argumentar. Porém, esta chance não foi dada. O recém-chegado andou até a escrivaninha sem hesitar, a luz do abajur iluminando seu nariz em forma de gancho desfavoravelmente. Tirou o pacote já falado do bolso das vestes, e o pôs abruptamente sobre o móvel, perto ao rosto do homem.
Este moveu a cabeça na direção contrária alguns centímetros, pela ação inesperada. Olhou o embrulho por uns segundos, e levantou os olhos púrpuros ao homem.
- Obrigado, Severo. - ele falou, com um meio sorriso. Ajeitou a postura e levantou o pacote até a luz, dando uma conferida na pedra. Era extremamente necessária e havia tempos que a procurava, mas somente Snape tinha influência o bastante para consegui-la. É claro que o homem não sabia a serventia, mas devia ter uma idéia... Afinal, era um conselheiro muito útil, e assim sendo, tinha certo conhecimento do seu proceder. Aquilo o tornava perigoso, mas sua lealdade havia sido testada. Havia matado o único pelo qual poderia trair Voldemort, o único que era tão ou mais poderoso em relação a ele, que lhe empunhava receio e que o conhecia.
Severo piscou demoradamente em reconhecimento. Ele começou a averiguar o frasco, como que para comprovar se era aquilo mesmo. Então ele desviou o olhar. Sua atenção acabou por cair sobre a mulher loira. Narcisa estava com profundas olheiras, e olhos inchados. Não era grande surpresa. Afinal, há tempos ela não mudava aquele olhar, há tempos ele não via sua expressão de desprezo. Agora via-se um olhar de semi-súplica. Lucius e seus companheiros não haviam conseguido liberdade ainda, e seu mundo parecia estar desabado. Ela sustentou o olhar dele, de braços cruzados e rosto baixo. Bellatriz analisava-os, com as mãos sobre os ombros do lorde. Parecia sempre desconfiada de tudo, com suas pesadas pálpebras e olhar inexpressivo. Narcisa quebrou o contato, baixando os olhos. Snape voltou-se então discretamente ao lorde. Este enfim deu-lhe atenção.
- Muito bem... Vou precisar de você mais tarde, Snape, mas não agora. De nenhum de vocês. Podem ir aos seus aposentos... - ele permitiu, embora o conhecimento de todos ali indicasse que aquilo era uma ordem. Snape então confirmou com a cabeça, e se retirou do cômodo, mas parou à porta e observou-os dentro. Narcisa estava inquieta, não parecia querer se mexer. Ao invés disso, parecia reunir forças. O homem à mesa pareceu notar, pois replicou-lhe severamente – Já tomei minha decisão, Narcisa. A não ser que queira fazer mudanças... Mas não tenho certeza se irá gostar delas. – ele terminou, com um olhar sagaz. Ela entendeu. A porta fechou-se atrás deles alguns segundos depois. Bellatriz revirou os olhos para a irmã, e saiu.
- Bem... Boa noite. - murmurrou Narcisa, antes de sair furtivamente pelo corredor. Severo não a observou. Olhava a um ponto fixo na parede, pensativo... Após alguns momentos resolveu mexer-se também, e seguiu pelo mesmo corredor até a última porta, que dava para seu laboratório; ; e a porta trancou-se sonoramente às suas costas.
Já na Travessa do Tranco, as coisas não iam tão serenas.
-Não conheço ninguém com este nome. –respondeu, altiva e de queixo erguido, a vendedora.
-Uuh, tenho certeza que conhece – ele sorriu com desdém – Ora, não me julgue um incompetente, querida. Não interrogo quando não tenho certeza...
Ela o interrompeu.
-Então isto é um interrogatório? – ela ergueu-lhe as sobrancelhas, os grandes olhos negros destacando-se na pele de mesma cor. – Acho que vai descobrir... Que tenho certos direitos, senhor. – Finalmente desviou o olhar, e virou-lhe as costas, andando pela loja. – Ao contrário de meus vizinhos, nunca ouviu-se uma única queixa de meu humilde estabelecimento. – Suas mãos emolduraram o local, amplamente – E sua gentileza... – Virou-se novamente, já distante dele, e fez um sinal com a cabeça para os vidros quebrados – Não sairá ilesa.
Ele pareceu hesitar, analisando-a.
-Ora...Não me enrole, garota.
-Não me trate assim, como se fosse uma idiota – ela vociferou, agora no controle da situação. – Acho que deve no mínimo educação... E quem sabe não presto uma queixa. – Um sorriso prepotente sobressaiu-lhe na grande boca, mas logo fechou-se quando ela desembainhou a varinha – Quem é você?
O homem não gostou da reação. Encarou-lhe, de cara fechada. Não demorou muito para começar a andar em sua direção, sibilando rispidamente:
-Acha que pode falar comigo assim, hã? Sou do ministério, maldita. Não preciso de acusações para fechar esta porcaria... – ele cuspiu no chão junto a eles. - Agora diga, vá... – Imprensou-a contra a parede, com a ponta da varinha em sua cintura – Quem era o rapaz?
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