Capítulo 2
Um barulho de vidro quebrado e um lampejo de feitiço na cozinha interromperam as lembranças de Draco. Num ímpeto, o jovem se levantou e empunhou a varinha, a adrenalina correndo nas veias. Era óbvio que aquele que tinha realizado o feitiço o havia proferido de forma não-verbal.
Depois que o vidro se estilhaçou, a casa voltou a ficar silenciosa, e Draco se perguntou se realmente havia ouvido algo ou se estaria delirando. Não conseguia sair do lado da poltrona velha, onde antes estava sentado, e ir averiguar o que estava acontecendo. Julgava já ter emoções demais para digerir em uma só noite. Ao invés disso, esperou com os ouvidos atentos. Caso o bruxo que efetuou o feitiço saísse pela porta da cozinha, ele estaria pronto para se defender. E foi o que aconteceu em seguida:
- Expeliarmus!
- Protego!
A varinha de Draco voou longe com a força do feitiço que repeliu o seu próprio. Contrariado, o jovem bufou e encarou o homem que permanecia parado na porta da cozinha. Sua expressão era uma verdadeira incógnita. Ele encarava o loiro como se estivesse pronto para testá-lo. Ou talvez... persuadi-lo? Draco não conseguia entender as intenções daquele homem. Ele continuava o mesmo de antes, a capa negra e com aspecto de suja enfunando na barra, os cabelos oleosos e mal cortados caindo pelo ombro e o nariz em formato de gancho, como se tivesse sido quebrado. Ele era seu professor desde que chegara a Hogwarts, e também o diretor da Sonserina. Mas agora estavam longe dos muros protetores da Escola e ele se via apenas diante de Severo Snape, o assassino de Dumbledore. E, porque não mencionar, Draco sabia que o fato de não estar mais sob as asas de Dumbledore mudava aquela relação. Snape e Draco não eram mais professor e aluno. Eram cúmplices num crime que entraria para a História da Magia moderna.
”E serei lembrado como um covarde” - Draco engoliu em seco, a boca amarga diante da incipiente perspectiva, enquanto Snape continuava a encará-lo com um olhar incompreensível. Isso irritou de tal forma o garoto que ele se viu enfrentando o Comensal como se fossem inimigos:
- O que você quer de mim, Snape? – questionou-o, sem a menor vontade de tratá-lo respeitosamente. – Pretende me tripudiar e se gabar perante aquilo que fez em meu lugar? Se você tivesse deixado, se ao menos tivesse me dado uma chance, eu mesmo teria acabado com...
- Silêncio, Draco – foi o bastante para que o jovem se calasse, embora não fosse um feitiço. – Eu dito as regras em minha própria casa, se a sua estupidez infantil assim o permitir.
E assim Snape continuou a encará-lo. O loiro olhava para a varinha, desejando tê-la em mãos novamente, mas não se atrevia a fazer qualquer movimento. Os olhos negros como noite sem lua brilhavam, ameaçadores e condescendentes ao mesmo tempo. Então, Draco sentiu um assomo de sentimentos e lembranças dos últimos acontecimentos invadirem sua mente, como se ele estivesse revivendo cada um deles. Uma careta dolorosa e Draco rompeu o contato visual com Snape, acusando-o em seguida:
- Você está usando Legilimência contra mim! Para quê diabos quer invadir minha mente? Você sabe tudo o que aconteceu esta noite! Estava lá e fez o favor de estragar minha missão!
- Draco... – Snape usava de ironia na voz, como se falasse a uma criança incapaz de entender um feitiço particularmente difícil. – Se eu não estivesse na Torre de Astronomia hoje, provavelmente Dumbledore estaria vivo e você seria membro da Ordem da Fênix.
- Eu jamais faria parte daquela corja de traidores e imundos sangues ruins! – Draco gritou em protesto, os olhos acinzentados comprimidos num esgar de fúria. – Jamais seria aliado daqueles que desprezo!
- Você é jovem – Snape caminhou pela sala e pegou a varinha de Draco, depositando-a nas mãos do menino com um olhar de desprezo. – Não entende o que é se aliar a alguém. Acha que por carregar a marca do Lorde pode ser considerado eternamente fiel a ele.
Draco meneou a cabeça, incrédulo. O que Snape pretendia com aquele discurso? Afinal, ele estava falando com o homem que enganara Dumbledore! Aquele que viveu sob a proteção do bruxo durante pelo menos 14 anos e mesmo assim foi capaz de traí-lo e arquitetar sua própria morte. Pensando melhor, não era mesmo de se estranhar que ele julgasse a capacidade de Draco ser fiel ao Lorde das Trevas. Ele mesmo enganou e tripudiou a fidelidade que dizia prestar ao velho gagá.
Mas a família Malfoy seria eternamente fiel ao Mestre. Foi então que a figura do pai despontou em sua mente sem que Draco pudesse controlar. Lembrou-se de uma tarde em que havia voltado de Hogwarts em seu primeiro ano. Estava feliz na altura de seus doze anos, aprendendo a realizar feitiços mais complexos do que aqueles ensinados em sua própria casa e ainda convivendo com verdadeiros bruxos puro-sangue na Sonserina. Além de tudo, havia o estúpido do Potter, com quem ele podia se divertir de vez em quando. A tarde estava com um clima agradável e ele se lembrava de ter abraçado a mãe ao descer do Expresso de Hogwarts, sentindo o perfume familiar de seus cabelos a invadir suas narinas. Procurou pelo pai, mas, como sempre, ele estava ocupado demais trabalhando e não pôde vir. Era sempre assim. Draco não podia contar com o apoio e o carinho da figura masculina que tinha em casa. Sempre esteve acostumado a passar seus dias com a mãe e os elfos domésticos, divertindo-se em importuná-los e infringir-lhes castigos quando não cumpriam suas ordens. Mesmo assim, esperava que o pai viesse recepcioná-lo após um longo ano passado longe da família.
Vendo que as vestes do filho estavam com um aspecto envelhecido por conta do uso prolongado durante o ano letivo, Narcisa decidiu levá-lo para o Beco Diagonal para adquirir roupas novas. Draco adorava o Beco Diagonal, e ficou absolutamente empolgado com uma nova perspectiva que lhe veio à mente. Queria visitar a Travessa do Tranco e olhar alguns objetos de Artes das Trevas na Borgin & Burkes. Lembrava-se da loja porque, certa vez, ouviu o pai comentando sobre ela com alguns amigos durante uma reunião de adultos na Mansão Malfoy. Ele sabia que o estabelecimento guardava artigos poderosos e impregnados de Magia Negra. Queria conferir isto de perto, já inclinado que estava a seguir os passos do próprio pai e talvez, assim, tentar chamar-lhe a atenção e fazê-lo notar que Draco também podia ser grande. Tão grande quanto Lúcio Malfoy.
Draco se aproveitou de um momento em que a mãe conversava com Madame Malkin e decidia os últimos ajustes nas novas vestes escolares, e escapuliu pela porta da loja, ganhando as ruas movimentadas do Beco Diagonal. Passou pela Olivaras, perguntando-se porque aquela varinha velha e empoeirada continuava descansando na vitrine da loja. Depois, alcançou a sorveteria Fortescue e registrou mentalmente a vontade de tomar um sorvete. Mas naquele momento tinha coisas mais interessantes para fazer e precisava aproveitar o tempo em que a mãe não notaria sua ausência, pois provavelmente ela estaria ocupada em fazer alguns vestidos novos para o seu já abarrotado guarda-roupas. Draco parou quase em frente ao Gringotes e observou a movimentação na rua principal do Beco. Concluiu que nenhum bruxo prestava atenção nele antes de se esgueirar pela viela que levava à Travessa do Tranco.
A rua era fétida e escura, e os bruxos que por ela caminhavam procuravam se esconder sob as capas. Draco fez o mesmo e puxou o capuz para cobrir a cabeça, mesmo sob o calor ameno que fazia naquela tarde. Lembrou-se então que vestia o uniforme de Hogwarts e cruzou os braços diante do peito para que pudesse esconder o distintivo da Sonserina. Não sabia se bruxos menores de idade podiam andar livremente pela Travessa e não queria ser importunado por ninguém. Caminhou pela calçada de pedras sujas e divisou ao longe a placa que encimava a Borgin & Burkes. Seu coração batia apressado no peito quando empurrou a porta da loja e entrou decidido. Olhou ao redor e não viu ninguém, então se pôs a observar um amontoado de produtos que se concentrava sem ordem aparente pelo amplo e empoeirado galpão que formava a loja. Havia crânios que pareciam ser de humanos, já gastos e de coloração amarelada. Em um canto, dentro de um enorme baú, estavam jogados diversos amuletos de prata e ouro com pedras preciosas e formatos que Draco nunca havia visto. Havia ainda um baralho manchado de sangue e um olho de vidro arregalado, que ficava girando loucamente dentro de um copo de algo que se parecia muito com água suja. Mas, numa pequena prateleira, havia um objeto que chamou a atenção do menino. Draco se aproximou e visualizou uma almofada coberta de mofo com uma mão murcha por cima. Numa etiqueta logo abaixo do produto, o anúncio dizia que aquela se tratava da Mão da Glória. Na época, Draco não sabia direito o que era aquilo e não havia mais informações na etiqueta.
Neste momento o menino se sobressaltou com um som de vozes que pareciam vir do fundo da sala. Escondeu-se entre uma das prateleiras e um estranho armário velho que estava encostado na parede, a porta entreaberta e parecendo quebrada. Então, viu seu pai e um velho com poucos dentes e de aparência suja surgirem dos fundos da loja. Ambos conversavam em sussurros, mas Draco conseguia escutar o que diziam, devido à proximidade em que se encontrava do balcão. Primeiro foi o vendedor e provável dono da loja quem falou:
- Este diário parece impregnado de magia negra. No entanto, não consigo descobrir exatamente o que é. Talvez ele só se revele para aquele que escolher.
- É, faria sentido – Lúcio respondeu, visivelmente contrariado pela forma como o vendedor manipulava um livro de capa preta, antigo e esfiapado nas bordas, com uma tira de couro vermelha para fechá-lo, que estava quase escapando da lombada gasta. – De qualquer forma, agradeço a consultoria, Borgin. – e dizendo isto, Lúcio tomou o livro das mãos do homem, que sorriu e deixou à mostra os poucos dentes podres que ainda restavam em sua boca.
Lúcio pareceu absolutamente enojado com a aparência do homem, assim como Draco também estava. Passando a manga das vestes no misterioso livro, guardou-o com cuidado no bolso interno da comprida capa que usava. Já ia se dirigir para a porta quando o senhor Borgin, querendo parecer simpático, questionou-o:
- Seu filho Draco retorna hoje de seu primeiro ano letivo em Hogwarts, não é senhor? Soube que ele foi selecionado para a Sonserina.
- Ah, é, Borgin? Não me lembrava sobre o retorno de Draco ser hoje – Lúcio meneou a cabeça, visivelmente contrariado com a intromissão do homem em sua vida particular. - De qualquer forma, Narcisa deve cuidar disso, afinal, ela é a mãe não é mesmo? Isto são assuntos para mulheres.
Borgin concordou com um aceno de cabeça e convenceu-se a encerrar o assunto. Lúcio Malfoy saiu da loja e rumou para o Beco Diagonal enquanto deixava para trás um filho perplexo e completamente magoado pela atitude de desprezo do pai. Afinal, ele nem ao menos sabia sobre o retorno do garoto de Hogwarts. Quando percebeu que Borgin já havia voltado para os fundos da loja, Draco colocou novamente a capa sobre a cabeça e saiu decidido do estabelecimento. Um dia, provaria ao pai que merecia sua estima e apreço. Mostraria então a ele que podia ser um bom Malfoy tanto quanto ele queria. Seria o filho que Lúcio sempre quis. E faria de tudo para isso, até mesmo dar sua própria vida. Ou tirar a de alguém que julgasse inferior a ele.
De repente, Draco voltou a enxergar o rosto de Snape parado diante dele. Seu coração se sentia confuso com a lembrança, pois o Draco de agora estava cansado de tentar provar o seu valor. Foram 16 anos, os últimos cinco deles de forma consciente, tentando agradar um homem que ele considerava como um herói, mas que queria moldá-lo como achava correto. Draco se pegou pensando que nunca fora ele mesmo durante toda a sua vida quando estava na presença do pai, e que suas atitudes sempre foram guiadas e direcionadas de acordo com a vontade de Lúcio Malfoy. Ao mesmo tempo, o jovem conviveu com o desprezo, mesmo ao fazer todas as vontades do pai. Ele nunca estava satisfeito, sempre exigia mais e cobrava resultados.
“No que foi que eu me transformei?” - o loiro perguntava para si mesmo. - ”Será que era isso que eu queria ser de verdade? Será que, se tivesse contrariado os desejos de meu pai, teria sido tudo diferente?”
Envolvido pelas lembranças, Draco não percebeu quando o rosto de Snape esboçou um sorriso, como se tivesse ganhado um presente bom demais para ser escondido.
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