Desprevenido
Que nem ouvi tocar o alarme de perigo
E você foi me conquistando devagar
Quando notei já não tinha como recuar
Eu quero deixar meus olhos fechados para o resto da vida. Juro que não vou mais abri-los. Também vou ficar parado aqui até que a dor passe, porque é tão forte que eu não consigo nem me mexer. Pudera, nem sei há quanto tempo eu estou aqui! Era pra ser um ou dois dias, mas parece muito mais. Sei que devem ter se passado poucas horas, mas eu sinto como se já estivesse aqui há décadas. Fiquei aqui a mercê desse monstro que eu jurei chamar de Lorde. E a prova desse juramento ainda queima em meu braço, como no dia em que fui tatuado a fogo.
Essa maldita Marca Negra, que faz questão de me lembrar todos os dias de minha existência que eu escolhi lutar do lado errado, agora não significa nada, já que a dor das Maldições recebidas me parece ser tão maior. Meus pulsos ainda sangram por conta das algemas cheias de espinhos que eles usaram para me prender. Quando pus os pés aqui, ainda estava encapuzado. Não vi qual foi o caminho pelo qual me trouxeram. O fato é que só tiraram o pano negro que encobria meus olhos quando eu já estava na sala de tortura, diante do meu Mestre e de Severo Snape. Os olhos do ex-professor estavam impenetráveis. Eu sabia que não conseguiria ver nada. No entanto, no fugaz momento em que ele me encarou, tentei penetrar sua mente como ele havia me ensinado. Fiquei com medo ao constatar que ele esboçou um ligeiro sorriso, enquanto sua mente se trancava como se fosse uma parede de aço.
Foi então que me colocaram as malditas algemas. Não são comuns, daquelas que os trouxas usam para prender criminosos. Perto destas aqui, aquelas lá parecem uma brincadeirinha de criança. As que eu usei há pouco são objetos mágicos poderosamente encantados, espinhos afiados que vão aos poucos dilacerando a carne, rasgando o punho, contudo, sem dar fim à vítima. Uma demonstração da crueldade e do sadismo daquele louco que eu ainda tenho que chamar de Mestre. Cheguei a pensar que morreria logo, mas Snape disse que eu viveria. Trouxe-me para cá, embebeu meus braços inutilizáveis em essência de murtisco (ou algo que fedia tal e qual) e me abandonou nesta cela imunda guardada por dementadores. Conclusão número um: estou em Azkaban. Conclusão número dois: os incompetentes do Ministério não conseguiram conter a rebelião e os dementadores finalmente estão jogando do lado do Lorde.
Draco Malfoy, isso definitivamente não era o que você pensava quando se aliou à “causa”. Afinal, papai sempre dizia que o único objetivo de vida de um membro da família Malfoy deveria ser a honra de servir o Mestre. Eu só estava seguindo o caminho que me foi destinado desde o berço. Mas tinha que ser por uma estrada tão difícil? E eu tinha que ter Severo Snape no meio dela? A grande pedra Snape, no meio do caminho de Draco Malfoy. Se ele não tivesse interferido, talvez eu tivesse proferido o feitiço e matado o Velho Gagá. Ou não... ok, Draco, “não” é a resposta mais correta. Afinal, por mais que odeie lembrar, fui eu quem me consolei com a Murta-que-Geme no Banheiro dos Monitores quando vi que não conseguiria cumprir a minha missão.
Mas eu não sou um covarde! Afinal, eu tentei de outras formas cumprir aquilo que me foi ordenado. Eu entreguei o colar de opalas para a Katie Bell, mas ela o tocou antes mesmo de chegar a Hogwarts. Erro meu confiar numa estúpida grifinória metida a valente. Depois, envenenei o hidromel para que Slughorn presenteasse Dumbledore no Natal. Mas aquele monte de banha guloso abriu a bebida e ofereceu-a ao pobretão do Weasley. Em todo o caso, se o Potter Perfeito não estivesse lá para se lembrar do maldito bezoar, era um a menos para a Ordem bando-de-idiotas da Fênix. No entanto, no momento em que precisei proferir um simples feitiço, doze letras, duas palavras, seis sílabas e um aceno de varinha contra um velhote desarmado, eu simplesmente travei. E mostrei porque, afinal, fui para a Sonserina, e não para a Grifinória. De fato, sempre me preocupei mais com meu próprio pescoço do que com arroubos de histeria corajosa e inconseqüente. Deixo para o testa rachada a salvação do mundo. Eu só quero salvar minha própria pele. Ou aquela que ainda resta, depois de tantas escoriações e marcas espalhadas pelo meu corpo.
Escuto um barulho, mas não quero me mover. Jurei que não abriria os olhos, mas acho que alguém está entrando na cela. Só me faltava essa! Nem direito a aposentos privativos a minha linhagem nobre me garantiu neste lugar? Se bem que eu acho que traidores não têm direito a nada, e preciso me considerar um felizardo por ainda estar vivo, quando tudo indicava que eu morreria assim que chegasse à presença do Lorde das Trevas.
Ao que parece, trancaram novamente o pesado cadeado, e as criaturas se foram, estes asquerosos e esvoaçantes dementadores, cobertos de feridas e com um cheiro que faz Azkaban inteira feder. Alguns dias neste lugar e eu já consigo odiá-lo mais que a Hogwarts! A sujeira parece ser secular, e com o monte de ferimentos que eu tenho espalhados pelo corpo, o que pode mesmo acontecer é eu pegar uma infecção que vai me...
- Malfoy? O que você está fazendo aqui?
Não. Por favor, isso não. Eu jurei que não abriria os olhos. Além do que, isso deve ser uma alucinação. Existem alucinações sonoras? Acho que sim... pelo menos neste exato momento elas existem, porque eu escutei claramente a voz daquele exemplar feminino de filhote de pobre. Oh, não, uma Weasley aqui não! Vou tampar os ouvidos e fingir que não estou ouvindo até essa alucinação passar e eu voltar ao normal. Eu devo estar enlouquecendo, só pode. Além do quê...
- AI!!! Não toque em mim, sua traidora do sangue!
Pronto. Abri os olhos. E cuspi as últimas palavras da forma mais fria que me foi possível articular com toda essa dor. Ela está parada diante de mim, os olhos castanhos cheios de lágrimas não combinam com a determinação de leoa no rosto como um todo. O cabelo também me lembra um felino, já que está tão embaraçado e armado que seu vermelho parece o sol. Mas o que é o sol? Azkaban só tem noite o tempo inteiro.
Deixando minhas divagações de lado, volto a observar a Weasley. Os músculos da pobretona estão visivelmente rígidos, como se a adrenalina estivesse se elevando rapidamente a ponto de ela explodir a qualquer momento. Seu olhar perfura o meu e eu apenas me limito a encará-la com minha melhor expressão de desdém. No entanto, acho que não devo estar muito convincente, já que faço caretas esporádicas a cada momento em que sinto doer um lugar diferente do corpo. Ela está um trapo, as roupas rasgadas e o rosto meio sujo de fuligem, com alguns pequenos cortes, ainda pior do que costumava ser em Hogwarts. Talvez ela tenha tentado fugir antes de ser capturada, ou então foi torturada, assim como eu. A idéia me deixa feliz por alguns instantes, até ela voltar a falar:
- O que é que você está fazendo aqui, seu traidor?
- Ei, vamos com calma, pobretona – eu já estava de pé diante dela, embora o esforço fosse algo sobre-humano. - A única traidora que temos aqui é você, e isso vem da essência da sua imunda família. Enquanto os Malfoy ganham nobreza como herança, você herda a sujeira do sangue da sua família.
Eu sei que ela quer revidar. Vejo a fúria nos olhos dela e a forma como as sardas logo abaixo dos olhos castanhos e grandes enrubesceram, ganhando uma coloração tão vermelha quanto os próprios cabelos. As orelhas também fumegavam. Mas eu sou mais rápido. E a minha situação é mais desesperadora também. Tudo o que me resta fazer é agarrar a grade da cela com o mínimo de força e dignidade que me resta e bradar aos quatro ventos:
- EU NÃO QUERO FICAR PRESO COM UMA TRAIDORA DO SANGUE!!!
Já tudo que a maldita Weasley fez foi se sentar num pedaço de espuma velho que utilizo como um de meus colchões e abraçar as pernas, olhando fixamente para mim, até que eu me cansei de gritar e caí desacordado na cama de pedra do lado oposto a ela.
Acordei um tempo depois e decidi fazer um pacto com o diabo. Prometi a ele que, se levasse a pobretona embora, minha alma seria dele. Não é lá uma troca muito vantajosa no estado em que ela se encontra, mas o que eu tenho para oferecer além disso? Com o corpo tão machucado, imagino que nem o diabo iria me aceitar no inferno. Só então me dei conta de que já estou nele. Só falta o fogo, porque eu sempre imaginei o inferno bem quente. Mas Azkaban consegue ser ainda mais gelada que as masmorras sonserinas de Hogwarts, o que fica potencialmente pior pelo fato de eu estar em mangas de camisa e calça de tecido fino, sem nenhuma capa que possa me aquecer. Fogo aqui é artigo de luxo. Acho que os dementadores não gostam, porque o fogo aquece e dá esperanças. Mas o que é um Malfoy falando de esperanças quando já não tem mais nada o que esperar?
Já que não pode vencê-los, junte-se a eles. Quem foi o estúpido que inventou esse ditado? Não sei porque ele surgiu na minha mente agora que vejo que a pobretona Weasley adormeceu sentada no colchão, ou ao menos parece ter adormecido, pois está com os olhos fechados. Ela tem as costas encostadas à parede de pedra. Se o ar daqui já é gelado, o material do qual consistem os muros de Azkaban é ainda pior. E como eu não quero uma ranhenta fungando de cinco em cinco minutos e transmitindo vírus pela cela inteira, vou ceder meu cobertor para ela. Mas só por esta noite.
Aproximo-me devagar, para não acordá-la. Mas como os globos magicamente luminosos do corredor têm uma luz fraca e fria, não consigo ver direito onde piso e acabo chutando um prato de metal que continha minha escassa ração diária, obviamente intocada. O conteúdo se espalha no chão e o barulho do metal acorda a pobretona. Ela me encara próximo a seu rosto, com o cobertor estendido nas mãos. Não devo estar com minha melhor cara, afinal, estou irritado de verdade por vê-la aqui. Percebo um misto de medo e incerteza passar pelos seus olhos. Acho que ela pensou que eu fosse sufocá-la com o cobertor.
- Saia daqui, Malfoy! Me deixe em paz!
Desprezível. Ela não merece o cobertor. Volto para a minha cama de pedra batida e me enrolo nele até cair no sono.
E, como se tudo isso não bastasse, a dor piora nos meus sonhos
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