CAPÍTULO 5
Capítulo 5
A típica chuva inglesa caía também em Livstarshire. Parecia ainda mais forte na cabana do delta. Talvez fosse só por que o velho teto era cheio de goteiras. Eu, poeticamente acho, que era por que o lugar era amaldiçoado. Belladonna não acreditava nesse tipo de besteira. Típico. Algo a ver com o senso de justiça herdado do pai.
Ela deu a volta na casa para entrar pelos fundos. A porta da frente, que dava para o mar, não funcionava há anos. Desde que... Bem, desde que a velha senhora Bennett morrera.
-Quem está aí? – uma garota perguntou sentada em uma cadeira de balanço nos fundos do casebre. – Donna? – ela perguntou sem virar o rosto.
Era pálida e pequena. Tão pálida que nem ao menos parecia ter sangue. Os cabelos eram pretos e os olhos não tinham cor. Suas mãos finas seguravam uma flauta doce, que parecia ser o objeto mais reluzente da casa. Os botões de seu casaco de lã estavam em casas erradas. E também calçava uma meia marrom relaxada e outra que algum dia chegou a ser branca, mas agora era de um encardido sem graça.
-Sim, sou eu. – Donna disse quando alcançou o abrigo precário que a pequena varanda lhe oferecia. – Sua audição sempre foi assim? Pensei que não fosse ouvir meus passos através da chuva.
-Você quebrou alguns galhos. – ela falou. Sua voz era doce como as notas que ela tirava de sua flauta.
-Isolde, está sozinha?
-Sim, papai... Sumiu. De novo.
-Eu sei que não deve ser fácil perder quem se ama. Mas seu pai deveria ver que se embriagar... Desculpe, eu não deveria estar me metendo. - Donna disse se sentando num banco rusticamente esculpido.
-Você já se meteu demais, Donna. – Isolde falou sem olhar nos olhos da ruiva. – Nós somos como areia movediça, sempre te sugando para baixo...
-Não diga isso, Isolde.
-Digo sim. Você já se meteu tanto, que sua opinião deve ser levada em consideração tanto quanto a minha.
-Está esfriando, não? Olha o que eu trouxe para você. – Donna disse entregando um livro nas mãos da amiga.
-Sim, está cada vez mais frio. Logo as luvas vão me atrapalhar a tocar flauta.
-E vão também me atrapalhar a passar as páginas.
-Faz tempo que você não vem. – Isolde disse sem parecer ressentida – Vamos ler logo?
-Certo. Esse se chama Orgulho e Preconceito...
Dizem que quando primos se casam há grandes chances de a criança nascer com algum problema.
Bem, os Bennett eram primos, mas eu não acho que isso esteja relacionado com o fato de Isolde nascer cega. Não quando se tem tanta coisa maligna compondo a estrutura dessa família.
-Vocês brigaram?
-“Vocês” quem? – Draco perguntou cinicamente. Era óbvio o que o velho falava e ele em particular detestava quando as pessoas se faziam de desentendidas. Mas era maior sua vontade em irritar as pessoas.
-Você e Belladonna Maggot. Já ouviu falar? – disse o Sr. Parsons rindo asmaticamente depois.
-Hum, já sim. É aquela que vem aqui bagunçar os livros. Não, eu e essa senhorita não brigamos.
-Certo, Logan, se prefere omitir os fatos... Mas você sabe que Livstarshire tem cerca mil habitantes, não?
-E desde quando isso vem ao caso?
-Desde que toda a cidade comenta que “o novo ajudante do Parsons” discutiu com “a menina Maggot” na barbearia. – falou erguendo as sobrancelhas.
Draco bufou irritado. E se bem o conheço, posso até ouvi-lo pensando “...se metendo na vida dos outros... bando de desocupados... Avada Kedavra...”.
-Vocês deveriam fazer as pazes.
Draco continuou calado. Não queria ofender o homem.
-Não sei por que, mas eu me simpatizei com você. Mesmo com toda a cidade dizendo que eu não deveria confiar nesses jovens que eu contrato. Mas eu me sinto na pele de vocês...
Eu acho uma coisa muito nobre.
E muito rara também.
Sentir-se na pele. Já se sentiu na pele do Destino, por exemplo?
Tendo que abençoar alguns, azarar outros...
E também acho que é aí que entra aquilo de “amar o próximo” e blá blá blá.
-Isolde, eu fiz um novo amigo.
- E como é a voz dele? – a garota perguntou tirando os lábios da flauta.
-Não me lembro muito bem, você e essa mania de sons...
-Tente se lembrar. Pra mim a voz é mais importante do que a aparência. Posso sentir muito através da voz. Por que não o traz aqui? Talvez eu possa saber se ele está falando a verdade. Uma vez soube que papai estava mentindo assim. Sua voz tremeu tanto que...
-Não posso trazê-lo. Nós discutimos. – Donna despejou o resto da água da chaleira em sua xícara.
-Por que?
-Eu fiz uma brincadeira que ele não gostou. Mas não vou pedir desculpas.
-Deixe de ser orgulhosa. Vai acabar se arrependendo. Ah, por falar em se arrepender, onde está a gaita que te dei?
-Por incrível que pareça, eu a trouxe hoje. – disse Donna tirando-a do bolso interno do casaco.
-E o que aprendeu a tocar? – Isolde parecia fascinada. Seu mundo se resumia à cabana do Delta e as pequenas mudanças que nela ocorriam. A chegada de Belladonna foi um dos únicos acontecimentos realmente épicos na casinha.
-Só aprendi as sete notas musicais. – e tocou.
Isolde apreciava a música com os olhos fechados. Não que precisasse fechá-los, sua cegueira era total. Mas talvez fosse só para barrar o vento em seus olhos.
-Enquanto você tocava, fiquei pensando no que me falou. Você realmente deveria pedir desculpas. Sabe, às vezes fazemos algo sem intenção de magoar, mas acabamos atingindo o ponto fraco. Se lembra da primeira vez que veio aqui? Se não pedisse desculpas, provavelmente não estaríamos aqui hoje.
-Mas é diferente. – Donna disse recolhendo sua gaita e seu livro. Pegou também o guarda-chuva remendado que estava pendurado a um canto.
-Por que?
Donna olhou para sua frágil amiga. Ela era tão indefesa... E parecia sumir aos poucos na sua frente. Parecia que quando o vento soprava carregava lentamente grãoszinhos de Isolde. Como numa duna de areia. Ou talvez só um montinho de poeira esquecido num canto qualquer.
-Quer saber como é a voz dele? Como um sussurro contido. E também parece um sibilar venenoso. Ele parece amuado e perigoso. Por que acha que eu deveria fazer as pazes com ele?
-Por que eu sei muito bem como é a solidão. E sei que também que não se cura ela nem com música, nem com bebida, nem com palavras.
-Eu... tenho que ir.
-Certo, muito obrigada pela a visita, Donna. – disse a garota tateando o ar com as mãos.
-Não fale assim. – falou Donna abraçando-a – Soa como se eu fosse uma estranha.
Depois de três dias o sino tocou, mas Draco não levantou a cabeça. O sininho nunca tocava. Só quando Donna entrava na loja, mas ele jurava que ela seria orgulhosa a ponto de deixá-lo pra lá. Esquecê-lo junto com os trapos velhos que ele chamava de roupa, o cabelo crescido e sua carótida.
-Vim pedir desculpas. – disse clara e objetiva.
-Peso na consciência ou algo do tipo?
-É. Algo do tipo. – disse Donna disfarçando um sorriso. Draco bufou impaciente. Detestava respostas incompletas. Draco detestava muitas coisas, concordo com você. Mas o que mais detestava era ser ignorado. Por isso não queria perdoar a garota. Se ela explodisse em cima dele, o esmurrasse ou desse uma machadada em sua cabeça, ele não sentiria tanta raiva quanto sente.
Mas, mesmo assim, não passou em sua mente, nem remotamente, não perdoar a garota. Ela era uma das únicas pessoas que queriam falar com ele. Uma das únicas que o queria vivo, que seria capaz de devolver-lhe a alma.
-E então, Logan McCready? – ela perguntou percorrendo com o olhar a estante próxima.
Como não obteve resposta, olhou para ele pela primeira vez. Draco estava como sempre fora. Qualquer tipo de veste, cinza e desbotada, um espanador pendendo na mão ao lado do corpo e com os olhos vibrantes. Os olhos que denunciavam que ele estava vivo. Por que até a respiração era rasa. Quase imperceptível.
Logan McCready parecia ter uma beleza mascarada. Como se lhe tivessem dado uma segunda demão de tinta um tanto quanto descuidada. E se você descascasse esse verniz, e polisse bastante, acharia tijolos belíssimos.
-Certo, se sair do meu pé... Quem sabe sua consciência não volte a ser como uma pena. - disse por fim.
-Por falar em pena, eu queria te pedir um favor.
-Não posso, eu trabalho.
-Vamos lá, Logan. Vai ser divertido! – ela já parecia ter voltado ao normal. Aquele entusiasmo infantil e aquela urgência em viver de sobra.
Transbordavam tanto que logo molhariam os pés de Draco. Quem sabe cruzar essas duas vidas não tenha sido uma de minhas melhores peripécias?
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