Capítulo 3



Alec olhou atentamente a escada, temeroso de que a pedra caísse quando ele se movesse. Mas ela não se moveu, tremeu ou se deslocou de alguma forma. Aliviado, ele alcançou a escada de corda e começou a descê-la, vagarosamente, sem se atrever a olhar pra baixo, tampouco para cima. Desceu, ouvindo o som do vento e mais nada, já que a altura era excessiva e havia poucos seres ali além dele, que preferiam permanecer em silêncio enquanto observavam Alec pendurado na escada de cordas. Os urubus sobrevoavam Alec, ele cada vez com mais medo, eles cada vez com mais fome. E assim ele prosseguiu, num silêncio quase que absoluto, sua descida para o vale via escada de corda. Depois de cerca de trinta minutos descendo a escada, ele já estava ao lado das árvores, e podia até mesmo ver a grama, mesmo que não se atrevesse. Parou por um momento, pendurado, e pensou que seria muito bom se o chão estivesse mais próximo, ou a pedra que segurava a corda fosse mais baixa. No mesmo instante, ele percebeu que o degrau onde ele estava tinha praticamente tocado o chão e havia, agora, escada sobrando, ao invés de ser exatamente a medida. Pulou da escada e ficou feliz de alcançar a terra, que tinha uma grama verde cheia de orvalho, e que parecia estar em pleno desenvolvimento enquanto ele pisava nela com o tênis. Sentou-se encostado em uma árvore, e começou a pensar como estava cansado, e como daria tudo para que estivesse num lugar mais confortável do que aquela terra macia que se desenvolvia silenciosamente e aquela árvore de casca grossa, porém suave e até mesmo... fofa?

- Então, senhor Raphael, poderia dizer onde estamos indo? – Perguntou Erick, educadamente, ainda carregando o corpo inerte do garoto que resgataram da sala cinzenta.
- Vamos passar por Seltsam, para evitar os lugares que ainda não estão coloridos, e logo depois vamos para minha casa, onde eu explicarei tudo a vocês. – Disse Raphael, sem olhar para trás, caminhando pela grama em direção a um declínio. - Tudo que sei, pelo menos – disse ele, parando subitamente e colocando o dedo enluvado próximo a boca, como se estivesse pensando em algo absolutamente importante. – Enfim, se não se apressarem não chegaremos logo. – pulou, abriu o guarda-chuva no ar e desceu suavemente o que parecia ser o fim da linha, um grande barranco marrom.
- E como você espera que a gente desça? – gritou Kellyn, olhando o grande barranco.
- Pela lateral, obviamente! – Respondeu a voz de Raphael, vindo lá de baixo do barranco.
Havia realmente uma pequena passagem coberta de grama alta e flores multicoloridas, por onde seria possível alguém passar com um cavalo. Por que Raphael descera via guarda-chuva era algo que Kellyn iria perguntar mais tarde. Aproveitou-se, no entanto, para falar a sós com Erick.
- E então, ele é confiável? – perguntou Kellyn à Erick, descendo a pequena ladeira cheia de grama.
- Não sei, mas acredito que não temos muita escolha. – disse Erick e ajeitou o garoto nos braços, enquanto descia também a ladeira. – E além do mais, ele já salvou nossas vidas uma vez, não é?
- Talvez ele tenha motivos para fazer isso – disse Kellyn, olhando furtivamente para os lados, como se esperasse ver Raphael saltar de uma moita. – Talvez ele nos tenha trazido para cá ou...
- Ou talvez ele simplesmente foi bondoso e nos salvou. – afirmou Erick. – Ele pode ser meio louco e agir de uma forma estranha, mas não sabemos onde estamos e nem o que é estranho por aqui.
- É, você tem razão. – disse Kellyn, mais para si mesmo do que para Erick, e ficou olhando então para o chão, calada, pelo resto do percurso.
Ao alcançarem o fim do pequeno morro, encontraram Raphael profundamente entretido com uma pequena moeda, que ele girava por entre os dedos com uma habilidade digna de filme, e que, logo quando os viu, guardou no bolso do smoking.
- Muito bem, daqui até Seltsam não é muito longe, mas acho que você vai cansar de carregar este ser inútil até lá. – disse Raphael, indicando o garoto que Erick carregava no colo. – Vamos, deixe ele por aí, assim chegamos lá mais rápido.
- De jeito nenhum. – disse Erick com veemência. – Já o carreguei até aqui, não custa nada ir um pouco além.
- Custa. – disse Raphael, tirando o relógio do bolso mais uma vez – Custa o meu tempo e as suas calorias. Mas já que insiste, pode carregá-lo, e se ficar para trás, o problema é seu. – E saiu andando pela planície, usando o guarda-chuva como bengala.
- É, continue carregando o garoto, Erick – disse Kellyn, sorrindo. – Precisa MESMO perder algumas calorias.
- Cale a boca. – disse Erick, acompanhando Raphael.

Takeso mais uma vez abriu os olhos. Não estava realmente interessado em sair andando por um lugar sem cor, que não conhecia e nem ao menos ouvira falar. Ficou ouvindo o som do vento, o barulho da água que calmamente ondulava em sua volta e achou aquilo tão relaxante que poderia passar o resto da vida ali, dormindo. Não sabia como viera parar ali, se estava sonhando, ou se havia morrido. E nem se preocupava, tampouco.

A mãe de Kellyn acordou durante a noite. Foi beber um copo de água na cozinha, lembrando-se dos sonhos perturbadores e do cansaço que estava sentindo. Já não era a mesma que fora há anos atrás, quando podia andar livremente sem sentir dores nas pernas ou nos pés. Absorveu a água com gosto, como se sua garganta estivesse absolutamente seca há dias, e logo depois subiuu a escada. Deitou-se de novo. Dessa vez ela não sonhou com coisa alguma, apenas dormiu instantaneamente, enquanto ouvia Elvis Presley tocar na TV do quarto da vizinha que, aparentemente por inveja, tinha ido beber um copo de água também, no mesmo momento. Coisa de vizinha mesmo.

Raphael parou no alto de um morro pequeno. Erick e Kellyn ficaram olhando o seu smoking balançar com o vento enquanto subiam o morro. Assim que chegaram no topo e tiveram uma visão de algo que parecia ser uma cidade da era vitoriana, porém com os prédios muito tortos, ouviram Raphael dizer:
- Esta é Seltsam.
Era tudo num tom de cinza ou preto, como se não houvesse cor por ali, quando adentraram a cidade, as pessoas pareciam seguir uma rotina mecânica, andavam como se estivessem sobre trilhos, e todas elas usavam roupas de gala. Os homens, smoking, e caminhavam com bengalas de madeira. As mulheres, vestidos gigantes, cheios de rendas e costuras, alem de chapéus sóbrios. Tudo como uma vila vitoriana deveria ser. Alguns, no meio da praça onde havia um chafariz sem água, conversavam entre si, e Erick e Kellyn puderam ouvir a conversa quando se aproximaram juntamente com Raphael.
- Ora, mas vejam só, o Leiteiro esqueceu-se das minhas duas garrafas hoje! – Exclamou uma senhora gorducha, de ar aristocrata como todos, com um leque na mão.
- Sim, e a porta continuou emperrada até o meu marido perder a paciência e chamar o motorista da carruagem para arrombá-la. – disse uma outra senhora, não menos gorducha, para, a primeira. – E agora ele quer pedir aumento!
- O engraçado é que o Leiteiro não esquece nunca. Talvez algum gato tenha derrubado minhas garrafas, ou mesmo um ladrão pode ter pego as pobrezinhas!
- Então demitimos o cocheiro e estamos agora atrás de outro.
- Elas estão conversando... entre si? – Perguntou Kellyn a Raphael, que olhou-a e negou com a cabeça. – Mas então...?
- Elas não vivem de verdade. Todos os dias, cada um dos seres desta vila repete as mesmas ações. Interagir com eles é o mesmo que interagir com este poste – disse, indicando um alto poste torto de iluminação. – Vão continuar fazendo o que estiverem fazendo.
- E por que eles ficam assim, esse tempo todo? – Perguntou Erick.
- É uma boa pergunta. Talvez eles tenham feito esse mesmo dia muitas vezes por que alguém achava isso engraçado, e então se acostumaram a continuar fazendo. – respondeu Raphael, com um ar pensativo. – Ou talvez eles gostem da rotina que levam.
Ah ,aqui é a saída de Seltsam. E lá, – disse, indicando com o dedo da mão direita. – é a minha propriedade.
O morro, que era absolutamente íngreme, como se alguém o tivesse puxado e logo depois arrumado sua ponta, tinha o pé rodeado de cercas, todas elas brancas, e um pequeno portão, também branco. Havia um caminho sinuoso que ia do portão até uma casa azul no alto do morro, tão torta quanto as construções de Seltsam, porém era uma explosão de cores do sopé do morro até a chaminé da casa. Tudo muito multicolorido, tudo muito torto. O morro, verde com manchinhas brancas, abrigava, além da casa de Raphael, uma grande armação de madeira, de onde pendia um sol feito também de madeira e também multicolorido.
Raphael caminhou com Kellyn e Erick alegremente até a cerca, abriu o portão e deixou ambos passarem, atravessando logo depois e o trancando. Kellyn então reparou que as manchinhas brancas que ela vira eram, na verdade, algo que pareciam ser orelhas de coelho.
- O que são essas coisas brancas saindo da terra? – perguntou ela a Raphael, que já subia o morro.
- Ah, isso? – Disse, indicando uma muito próxima. – São orelhas. Veja. – Se agachou e, com a mão direita, puxou as orelhas brancas, tirando de dentro da terra um coelho branquinho e um pouco sujo, que ficou olhando para todos com um ar de pavor, até que Raphael o enfiou na cartola.
- O senhor... planta coelho!? – Perguntou Kellyn, estupefata.
- Sim, por que, não devia plantá-los? – Perguntou Raphael, olhando para Kellyn inocentemente como se esperasse uma boa resposta. – Mas são tão úteis, e tão fáceis de cultivar...
- Acontece que coelhos não podem ser plantados! – Exclamou ela, e olhou para Erick como quem pede ajuda, mas este permaneceu em silêncio, talvez pelo choque, talvez por achar que tudo podia acontecer ali.
- Claro que podem, e é até bem simples. – Disse Raphael. Cavou então, com uma pá próxima, um buraco na grama. – Olhe, é só fazer o seguinte: Pegamos um coelho... – ele arrancou um da grama. – Pegamos uma tesoura...- tirou uma tesoura relusente do bolso – e cortamos as orelhas. – Disse, e cortou-lhe as orelhas fora. Não houve sangramento, mas o coelho deu um leve guincho, enquanto Erick e Kellyn fizeram caretas. – Então enterramos ambas as orelhas e o coelho. Em 1 dia o coelho terá suas orelhas de volta, e em dois dias as orelhas terão virado coelhos. Ah, e pode-se enterrar um coelho inteiro e, em cerca de duas horas, ter-se outro coelho de tamanho igual no mesmo buraco. – E olhou, então, sorridente para Kellyn e Erick, que não estavam sorrindo. – Mas, vamos entrar, então?

Quando Alec acordou, percebeu que o dia não estava mais nublado, e percebeu também que se sentia sozinho. Desejou estar com alguém, fosse quem fosse. E abaixou os olhos, tristes, para olhar a grama. Passados pouco mais de cinco minutos, ele ouviu o que parecia ser passos, e quando ergueu os olhos, viu um par de tênis de cor meio prateada, que calçavam os pés de uma pessoa que usava uma calça jeans cinza e um suéter grosso e cinzento. Olhou o rosto da pessoa e viu que era uma garota, loira com os cabelos não muito curtos, o suficiente para emoldurar seu rosto, e que ela usava uma boina, também cinza. O loiro de seus cabelos era pálido, desbotado, e ela sorria. Ele piscou, e ela estendeu a mão, sorrindo.
- Não vamos perder tempo, vamos nos divertir.
- Quem é você? – Perguntou Alec, olhando fixamente no rosto da garota, ainda sorridente.
- Sou Mellanie. Vim aqui para lhe fazer companhia. E você vai pegar minha mão para eu te ajudar a levantar ou posso abaixá-la?
Alec pegou a mão de Mellanie e levantou-se. Sorriu. Estava feliz de ter alguém para conversar.

O Interior da casa de Raphael era composto por móveis que, apesar de presentes em casas normais de pessoas do mundo de Kellyn, não tinham o mesmo design. Era tudo mais arrojado, tudo mais combinado, tudo mais exótico, e com temas que, no geral, lembravam mágicas. Havia um único cômodo que servia de sala e de cozinha, e duas portas que Erick imaginou darem para o banheiro e o quarto. Na parte da sala, havia um sofá de dois lugares branco, sendo que os braços do sofá eram ocos. Havia também uma poltrona, cujos braços eram de alturas diferentes e, à frente de ambos sofá e poltrona havia uma mesa baixa com perna em forma de triangulo, estando sobre ela uma bandeja com uma chaleira e algumas xícaras. Logo a frente da mesinha se encontrava uma TV, que era torta e tinha a tela também torta. Ao lado do sofá de dois lugares havia uma luminárias alta, de três pés, e o lugar onde devia estar aquelas coisas cônicas que provavelmente ninguém sabe o nome, e que servem para impedir a luz de iluminar diretamente o ambiente, havia uma cartola. A cozinha tinha, por sua vez, uma mesa que era divida em quatro quadrados e cada um dos quadrados eram coloridos de preto ou de branco sendo que dava uma aparência de xadrez. Em volta da mesa, havia quatro cadeiras, também pretas e brancas, variando conforme a mesa. A geladeira tinha a porta do congelador na cor preta com a maçaneta branca, e a porta da geladeira em si branca com a maçaneta preta. Dois imãs estavam presos na geladeira: uma cartola e uma cabeça de coelho. O fogão seguia o mesmo padrão de cores que o resto da cozinha, e parecia estar com o forno ligado quando Erick, Kellyn e Raphael entraram.
- Ah, não! – exclamou Raphael, subitamente, e correu até o fogão, desligando um de seus botões. – Meu bolo de cenoura... todo queimado. – tirou então de dentro do forno uma assadeira e um cheiro acre invadiu o aposento. – Ora, o que posso fazer? Vai ter que ir pro lixo... Mas de qualquer forma, você, venha até aqui, por favor. – disse indicando Erick. – Vamos colocar o garoto no meu quarto. – E abriu uma porta, revelando outro aposento.
Quando Erick entrou, carregando o garoto que permanecia desacordado, viu um quarto muito vazio, no qual havia apenas uma estante abarrotada de livros, uma poltrona vermelha das mais comuns e mais empoeiradas, um tapete felpudo onde havia o desenho de uma cenoura e uma daquelas caixas que os mágicos usam para o truque de serrar a senhorita assistente de palco em duas partes. Raphael se encaminhou para a caixa, abriu ambas as tampas e esperou Erick se aproximar. Erick pode ver que dentro da caixa havia um colchão, um edredom não muito grosso e um travesseiro, e depositou o garoto lá dentro. Raphael fez menção de fechar as tampas, mas Erick impediu.
Kellyn apertava insistentemente o botão da tv, procurando um canal que não apresentasse o chiado de canal fora do ar. Ouviu Erick e Raphael voltarem a sala, e desligou a televisão, sentando-se no sofá de dois lugares.
- Não pega. À meses venho tentando fazê-la dar algum sinal, mas aparentemente não temos emissoras de televisão. – disse Raphael calmamente enquanto sentava-se na poltrona, e Erick sentava ao lado de Kellyn. – Muito bem. Creio que devo explicar tudo a vocês senhores... uh...
- Kellyn. – afirmou ela, e logo depois olhou para Erick. – E Erick.
- Sim. Pois bem, é tudo muito simples e eu vou contar tudo de uma vez para doer menos, como quando as pessoas arrancam o curativo bem depressa. Este não é o mundo que vocês vivem.
- Jura?! – perguntou Kellyn, sarcástica.
- Sim. Admiro que não tenha percebido ainda. Enfim – disse Raphael, fitando os dois como se tentasse encontrar uma expressão enigmática em dos dois rostos. – não faço idéia de como vieram para cá, mas é melhor explicar que este mundo não é algo físico.
“Tudo que vocês puderem ver neste mundo, exceto esta casa, Seltsam e talvez os grandes edifícios cheios de gente, são criadas por vocês mesmo. A partir do momento que vocês desejem muito algo, que o seu cérebro pense em algo que poderia agradá-los, o mundo se adapta ao que o seu cérebro propõe. Ele também é regido por suas emoções, ou seja, se vocês estiverem felizes ver ão raios de sol atravessarem o mundo alegremente, saltitando como se ainda fossem pequenas crianças, dentre outras muitas coisas que eu não tenho de fato idéia do que podem ser. Porém, dos quatro jogadores que eu presumo terem entrado neste mundo, um deles pode controlar conscientemente a forma física do mundo, simplesmente pensando “eu gostaria de determinada coisa”. Não me perguntem por que isso acontece. Eu ainda não descobri.”
- Então... – começou Erick, tentando engolir toda informação que lhe fora atirada de uma única vez. – Este mundo... atende pedidos?
- Não. – disse Raphael com veemência. – Ele é apenas bondoso o suficiente para agradar quem vêm visitá-lo.
- Por que quase todos os lugares por onde andamos estavam desbotados, sem cor? – perguntou Kellyn, achando que entendera toda a ladainha do mundo leitor de mentes.
- Por que o jogador que pode alterar o mundo quando quer ainda não alterou essas partes.
- E por que a sua casa e Seltsam não podem ser alteradas? – perguntou Kellyn, curiosa.
- Por que os últimos jogadores gostaram desses lugares e não os alteraram. – Disse Raphael, ligeiro. – Assim como eu não posso deixar de existir por um mero capricho do jogador responsável por mudar o mundo. As pessoas gostam de mim, então acabei me tornando algo permanente. Até por que, modéstia à parte, eu sou o máximo.

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