Capítulo 2
Takeso fechou o zíper da calça e deu descarga, logo depois lavando as mãos na pia. Talvez fosse mais proveitoso voltar para casa, sem que nenhuma das pessoas no quarto ao lado vissem, mas já que estava ali, segurando um dado e um pino, resolveu jogar. Não poderia ser tão ruim, afinal, gostava de jogos de tabuleiro.
Abriu a porta do banheiro e se dirigiu ao quarto de Alec, mas não havia ninguém lá. Os dados estavam dentro da tampa da caixa e o tabuleiro disperso no chão da mesma forma que antes, porém, os participantes não se encontravam no aposento. Saiu do quarto e desceu a escada, obviamente eles deviam ter ido pegar os salgadinhos que sobraram da festa para comerem enquanto jogavam.
- Ahn... a senhora sabe onde eles estão? – Perguntou Takeso à mãe de Kellyn, ao chegar à cozinha e perceber que eles não estavam lá.
- Ora, estão lá em cima, jogando o jogo que o Alec ganhou de aniversário, não? – Respondeu a mãe de Kellyn, limpando as mãos em um pano de prato.
- É, devem estar sim. – Respondeu Takeso, saindo da cozinha. Afinal, onde eles estariam?
Subiu novamente as escadas, e entrou no quarto. Não importava realmente onde eles estavam. Iria ganhar de Kellyn, nem que tivesse que trapacear. Olhou para a tampa da caixa, colocou a mão com o dado sobre ela e desceu o dado, o número seis virado para cima, vagarosamente até próximo da superfície de papelão, soltando o dado logo depois.
Erick abriu os olhos. Havia uma grossa camada de poeira sobre um piso de lajota e, muito próximo do seu rosto, ele viu um sapato antiquado de cor cinzenta, cheio de poeira também. Sentou-se no chão e viu que se encontrava em uma sala muito grande, com paredes de concreto, e que o sapato que havia visto pertencia há um rapaz de uns vinte anos, que aparentava haver estado ali por muito tempo, coberto de teia de aranha e pó. Logo Erick percebeu que o rapaz não era o único ser humano no salão, e que havia centenas de outros, todos cheios de poeira e teias de aranha, com um tom de cinza.
Com certeza havia dormido na casa de Kellyn. Tinha que ser, já que isso não era realmente lógico. Tudo que se lembrava era de ter jogado os dados na tampa da caixa do Off, e logo depois abrir os olhos e estar nessa sala estranha. Talvez tivesse morrido? A casa fora a baixo, um avião caíra na rua ou mesmo uma bala perdida. Não era realmente incabível, apesar de ele preferir acreditar na hipótese do sonho, e que logo mais ele acordaria. Demorou um pouco para perceber, no meio de toda aquela cor cinza, uma pessoa de cabelos pretos caída no chão. Não importa o que estivesse acontecendo, Kellyn estava junto dele, mesmo que inconsciente. Aproximou-se do corpo inerte da garota, o boné dela caído no chão ao lado, e percebeu que ela respirava, mesmo estando um tanto mole. Sentou-se ao lado dela. O que poderia fazer? Sua única alternativa era esperar que ela, assim como ele, acabasse despertando.
A mãe de Kellyn subiu as escadas levando alguns docinhos e salgadinhos que sobraram da festa, além de uma garrafa de refrigerante, para animar a jogatina dos seus filhos e convidados. Ao abrir a porta, segurando a bandeja, se deparou com o quarto vazio e o tabuleiro do jogo espalhado pelo chão. Espantada, imaginou que eles talvez tivessem ido para a casa de Takeso ou de Erick, para jogar um outro jogo qualquer, e, meio desapontada, imaginou que Alec talvez não tivesse gostado do tal Off. Desceu as escadas e, ao chegar à sala de estar, pegou o telefone e pôs-se a discar o número da casa de Erick. Esperou, mas ninguém atendeu. Tornou a discar os números. Um, dois, três, quatro toques e nada. Achou que talvez eles realmente tivessem ido para lá, e que, muito provavelmente, dormiriam lá como várias outras vezes já acontecera. Ligaria novamente amanhã, caso eles não dessem notícias.
Erick percebeu que Kellyn finalmente abria os olhos. Antes mesmo que ela se desse conta de onde estava, Erick tentou explicar, mesmo sem entender, a situação.
- Não Kellyn, eu não sei onde nós estamos – Disse Erick, quando ela se sentou. – Tenho algumas suposições, mas nenhuma delas faz realmente sentido. – Pegou o boné dela que se encontrava caído no chão – Aqui, pegue. Realmente não sei o que podemos fazer, tão pouco. Talvez tudo isso sej...
- O que é aquilo? – Perguntou Kellyn, apontando para o centro do saguão cheio de pessoas, de onde vinha uma luz fraca e alaranjada.
- Boa pergunta – Respondeu Erick, olhando para o local onde ela apontava e reparando pela primeira vez a luz laranja. – Venha, vamos ver o que é. – Disse ele, se levantando e estendendo a mão para Kellyn, que se levantou sem utilizá-la.
Os dois caminharam pela floresta de pessoas, todas elas cinzentas e em pé, observando a expressão no rosto das mesmas. Kellyn reparou que, apesar da expressão de felicidade do rosto delas, seus olhos não tinham brilho, não refletiam nada. Quando se aproximaram do centro da sala perceberam que a estranha fonte de luz era, na verdade, uma abóbora decorada como aquelas de festa de Halloween. O brilho não era intenso, mas clareava o suficiente para tornar as pessoas próximas alaranjadas, ao invés do cinza monótono do resto da sala. Ficaram ali, observando a abóbora esculpida, que aparentava sorrir para eles, até sentirem um movimento às suas costas e perceberem que algo havia acabado de cair do teto. Olharam para o chão, aproveitando-se da iluminação da abóbora, e viram um coelho, vivo, com os olhinhos vermelhos arregalados. Erick Automaticamente olhou para o teto, mesmo supondo que um coelho jamais sobreviveria se caísse de tal altura, e se surpreendeu ao ver descendo vagarosamente do teto um par de sapatos e um guarda-chuva aberto. Cutucou Kellyn e esta olhou exatamente no momento em que foi possível perceber que era uma pessoa, segurando o guarda-chuva, que descia vagarosamente do teto, como se o guarda-chuva fosse um pára-quedas. Abismados, Kellyn e Erick viram a pessoa pousar graciosamente no chão, fechar o guarda chuva e olhar atentamente para eles.
- Alô. Creio que não temos muito tempo. Vamos andando então?
E a pessoa, que usava um smoking preto, luvas brancas, uma capa de mágico e uma gravata borboleta, além de um nariz de palhaço e uma cartola, saiu andando em direção a uma porta que parecia ter se materializado do outro lado da sala. Kellyn e Erick se entreolharam, mas permaneceram estáticos, até a pessoa virar-se para olhá-los e dizer:
- Vocês vão ficar aí parados?
- Ahn... com licença... senhor...? – Começou Erick, em tom desconfiado.
- Raphael. Não temos tempo. Saímos agora, vocês fazem perguntas depois. – Tirou um grande relógio de ouro do bolso interno do smoking – Pois é, temos menos de três minutos. Acompanhem-me, se prezam suas vidas.
- Ah, então nós estamos vivos? – Continuou Erick, aliviado de se livrar de uma de suas hipóteses.
- Ora, claro que sim. Continuam respirando certo? Então estão vivos. – Disse ele, num tom impaciente. – Agora, se continuarem aqui por muito tempo, não respirarão mais e, conseqüentemente, não estarão mais vivos.
E deu as costas aos dois mais uma vez, continuando sua caminhada até a porta.
Kellyn olhou para Erick, que ainda estava um tanto estupefato, e acompanhou Raphael em sua pequena caminhada até a porta, sendo seguida por Erick logo depois.
A pessoa de cartola fuçava calmamente a fechadura da porta com um dos dedos da mão coberta por uma luva. Murmurava números e letras, e parecia muito concentrado em sua tarefa, pois aparentemente não percebeu que Kellyn estava atrás dele.
- Senhor... – Começou Kellyn, tentando parecer displicente – Por que devemos sair daqui... rapidamente?
- Quarenta... ou talvez Doze A... Hum... Óbvio, não é minha cara? – Disse ele, sem olhar para Kellyn – Isto aqui vai explodir, em pouco tempo.
- Explodir?! – Exclamou Kellyn, absolutamente abismada com a calma que Raphael dizia tal coisa. – Como assim explodir?!
- Estourar, arrebentar, detonar. Vocês realmente não conhecem essa palavra? – Perguntou ele, ainda de olho na fechadura, seus dedos enluvados percorrendo os parafusos da porta.
- É claro que eu sei o que é uma explosão! – Exclamou Kellyn, indignada.
- E essas pessoas? – Perguntou Erick, indicando com a cabeça as centenas de pessoas que se encontravam no saguão.
- Ora, vão ser trituradas, dizimadas, destruídas. – Respondeu Raphael, finalmente se erguendo, mesmo sem tirar os olhos da fechadura.
- Não podemos... isso não pode...! – Gaguejou Erick, estupefato, olhando para as pessoas cinzentas atrás de si.
- Não só pode como vai acontecer. Não me resta escolha. – Raphael tirou a cartola, e puxou, de dentro dela, mais um coelho. – Muito bem, você é o último do meu estoque. Faça o que deve ser feito. – e soltou o coelho no chão.
O coelho branco imediatamente começou a arranhar a porta até que fiapos marrons começaram a pular da porta de aço, e aos poucos foi perfurando a grossa camada cinzenta. Podiam ver a luz saindo do pequeno buraco, que se tornava cada vez maior à medida que o coelho progredia em sua escavação. Raphael, apoiado no guarda chuva, observava satisfeito o relógio de ouro.
- Não podemos deixar essas pessoas aqui! – Exclamou Erick, quando metade da porta já havia sido perfurada. – Simplesmente não podemos. – E avançou para a mais próxima, um garoto de aproximadamente 15 anos, olhos sem vida, roupa tão cinzenta quanto toda a cena em si, além dos cabelos castanhos claros que davam a impressão de estarem desbotados.
Quando Erick o tocou, e a porta veio a baixo, o garoto ofegou como se tivesse acabado de sair de uma piscina, após muito tempo sem respirar. Caiu de joelhos, e ficou respirando, em grandes arquejos, o ar sujo da sala, agora iluminada pela luz clara e radiante que vinha da porta. Erick, Kellyn e Raphael pareciam ter congelado. O garoto, ainda ofegando, caiu de borco no chão, desmaiado, mas respirando ainda assim.
- Veja só o que você fez. – Disse Raphael a Erick, sem desgrudar os olhos do reluzente relógio. – Não temos tempo. Vamos, pegue-o no colo, temos que correr. – Disse, indicando o garoto caído no chão.
Erick obedeceu, pegou o garoto no colo, e correu em direção a porta, com Kellyn em seus calcanhares. Depois de correrem por cerca de cem metros, perceberam que Raphael não havia saído de dentro do que agora percebiam ser um grande galpão cinzento de concreto, que parecia ser uma fábrica. Entreolharam-se, e, por mais antiético que isso pudesse parecer, decidiram em comum acordo deixar Raphael para trás, temendo não terem tempo de irem até o galpão e voltarem para uma distância que eles nem ao menos sabiam se era segura. Correram mais duzentos metros e ouviram a explosão atrás de si. Sentiram pequenas pedras de concreto acertando-os nas costas. Muita fumaça, muitas pedras caindo, e nem sinal de pedaços de corpos ou coisas do gênero. Até que, em meio à fumaça, viram que Raphael, mais uma vez, planava com seu guarda-chuva preto até o chão coberto de grama que havia do lado de fora do que, até pouco tempo, era um galpão.
- Por que ficou lá?! – Perguntou Kellyn, histérica, empurrando Raphael com as mãos e fazendo a cartola sobre sua cabeça ficar torta. – Podia ter morrido!
- É, podia. E acho que você não sentiria minha falta. – Sorriu gentilmente para Kellyn, que bufou, enquanto ajeitava a cartola. – De qualquer forma, eu fiquei lá por um motivo importante.
- Que seria...? – Perguntou Erick, ainda carregando o garoto.
- O gran finalle, é claro! – Disse Raphael, em tom indignado – Não valeria a pena vir salvar vocês sem poder mostrar meu senso de estilo.
Era meia noite quando a mãe de Kellyn resolveu ir se deitar. Não tinha recebido notícias dos filhos, mas sabia que eles estavam bem. Era uma intuição de mãe, daquelas que nunca falham. Mesmo estando supostamente sossegada, ela custou a pegar no sono, talvez por ter comido de mais, talvez por estar incomodada com a tonelada de louça que ela não havia lavado, ou talvez com as contas do banco. Preocupava-se de mais com seus filhos, em especial com Alec, que ainda estava crescendo. Queria que eles fossem felizes, a qualquer custo. E assim, pensando em coisas como essa, além da idéia perturbadora de ter perdido um capítulo da sua novela preferida, ela caiu num sono perturbado por galãs de novela que viajam em uma velocidade supersônica contra alienígenas laranjas que galopavam em menus interativos de um DVD pirata qualquer.
Realmente, a coxinha que estava verde não lhe fizera muito bem.
Takeso abriu os olhos e percebeu que se encontrava numa ilha no meio de um lago, que tinha uma cor esverdeada, e aparentava ser raso. No fundo do lago, havia centenas de milhares de pedras, todas elas ovais, sem pontas, e às margens do lago era possível ver um imenso pasto que se perdia de vista. A coisa que deixou takeso intrigado, logo de cara, foi que tudo parecia ter sido posto numa televisão velha e sem cor, já que o verde do lago aparentava estar meio cinzento, assim como todo o resto da paisagem. Na ilha, só havia ele, uma grama seca e baixa, e alguns dentes-de-leão. Sem pensar muito, ele pegou um dos dentes de leão próximos e soprou, observando as pequenas sementes se perderem na brisa calma que reinava no lugar. Tudo parecia monótono, monótono de mais. As cores cinzentas e desbotadas estavam lhe dando um pouco de aflição, como se sua visão tivesse sido prejudicada. Ele então fechou os olhos e se deitou, bem no centro da ilha, sobre alguns dentes-de-leão branquinhos.
Logo que Alec voltou a si, não reparou se quer onde estava. Entrou em uma espécie de transe, onde não via nada, não sentia nada, e não ouvia nada. Até que, após cerca de vinte minutos, uma lufada de vento cheia de dentes-de-leão o fez despertar, e perceber que se encontrava sobre uma enorme rocha que se encontrava posta sobre outra, que por sua vez estava na beirada de um penhasco. Era realmente alto, e ele não ousou se mexer, com medo de uma das pedras despencar. Permaneceu ali, observando um cânion muito grande, que parecia abrigar um pequeno vale cheio de árvores, mesmo não dando pra ver direito se eram árvores, ou mesmo se era um vale. O tempo passou, e ele começou a sentir medo, e um desespero gigantesco se apoderou dele. Tinha se perdido de sua irmã, não sabia onde estava, não sabia se quer como viera parar ali. Enquanto esses sentimentos se tornavam cada vez mais alarmantes, as nuvens começaram a cobrir o sol, e o dia ficou nublado, tencionando para uma chuva. O Cânion ficou ainda mais assustador, e algumas árvores lá em baixo pareceram secar. Tudo parecia se tornar cada vez mais desolado. Começou a pensar que, talvez, se ele tivesse uma escada poderia descer até o vale, e lá pensaria melhor no que fazer. Mas, obviamente, ele não tinha uma escada, muito menos uma escada que chegasse até o vale, no fundo do desfiladeiro. Não tinha até aquele momento, quando, na borda da rocha onde se encontrava, cravaram-se duas estacas de metal, segurando dois pedaços de corda. Assustado, Alec se arrastou vagarosamente até a borda da pedra e percebeu que havia se materializado ali, uma escada de cordas que ia até o vale.
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