Luz de inverno
Um doce aroma de flores entrou pelas narinas de Harry assim que ele adentrou a modesta casa, apoiando-se sobre a bengala que tinha em uma das mãos. Ginny, segurando firmemente em seu outro braço, amparava a si mesma para que não fosse de encontro ao chão.
Soltou-se dele, e fechou a porta atrás de ambos, bloqueando a entrada de uma brisa gelada e cortante que marcava o início de uma nova estação.
Corações chamam
Corações caem...
Embebidos pela chuva
Harry puxou uma cadeira, diferente de todas as outras que se dispunham singulares ao redor da mesa, e sentou-se. Em sua frente, a jovem mulher tirava o casaco e o pendurava em um gancho, próximo a porta. Os cachos avermelhados caíam-lhe graciosamente pelos ombros, enquanto ela, desajeitada, alcançava a porta do pequeno armário na ponta dos pés. Não era sequer capaz de calcular quanto tempo havia se passado desde que não colocava os pés ali, onde sempre se sentira tão confortável e amado. Sugou o ar para dentro dos pulmões longamente, enquanto captava o aroma de flores que impregnava o local.
“Aqui... beba enquanto está quente” Nem havia percebido a frágil figura aproximar-se de si, com uma caneca fumegante entre os dedos pálidos. Harry apenas fitou-a demoradamente, até que ela desviou de seus olhos e em seus lábios formou-se um sorriso encabulado. Ele apenas apanhou o objeto de suas mãos.
“Obrigado” Ele disse, antes de levar a caneca aos lábios. As bochechas de Ginny ganharam um tom róseo, e num toque de sua varinha, o fogão se apagou.
Harry já havia fixado os olhos em um ponto distante, além da pequena janela encardida, quando a jovem voltou a se aproximar.
Ele indicou com a cabeça o ponto que estivera observando. Uma árvore erguia-se do chão, enquanto suas folhas secas cobriam o gramado já não tão verde de inverno.
Quem sabe...?
A vida se desenrola
Faceira e tão vaidosa
Os olhos de Ginny encontraram o mesmo ponto, e seu coração falhou uma batida. Aquela árvore havia sido plantada por ambos, anos antes, para que seu amor florescesse. E ali estava ela, frágil, sem uma folha sequer, corroída pela estação fria.
Contendo uma lágrima que queria formar-se atrás de seus olhos, ela apanhou a mão de Harry e o ajudou a erguer-se.
“Vamos...” Os olhos verdes de Harry encontraram os amendoados de Ginny, e ela sorriu enigmaticamente. Ele sabia, no entanto, que ela havia se lembrado do amor incondicional que a árvore emanava, mesmo em seu atual estado. Aceitando a pequena mão, seguiu-a em direção à porta de madeira.
Ginny abriu-a e puxou Harry delicadamente, fazendo com que ambos tocassem os sapatos na grama surrada. Ele enlaçou o braço no dela, surpreendendo-a a princípio. Um sorriso bobo brotou em seus lábios, quando se lembrou de que Harry nascera para ser um eterno cavalheiro.
Ele não deixou escapar o leve rubor nas faces da jovem mulher, e também percebeu quando ela sorriu sem jeito e mirou o chão, encabulada com algum de seus pensamentos. Harry sentiu os próprios lábios contraírem-se em um sorriso, e repousou a outra mão sobre a pequenina de Ginny, fazendo-lhe pequenos círculos com o polegar, carinhosamente.
A pele de pêssego sob seus dedos arrepiou-se, acostumando-se em seguida com o calor humano jamais esquecido.
Imagina, sob a luz de inverno
O travesso e o sensato
Leva a testemunha à salvação
E a vida se inicia mais uma vez...
Uma repentina angústia tomou conta do peito de Ginny, fazendo-a levar a própria mão à boca, para conter um suspiro de dor. Já haviam chegado ao seu destino, e Harry esperou que ela se sentasse na grama para que fizesse o mesmo.
Ele apoiou as costas na madeira ressecada da árvore, e fitou a jovem. Seus olhos amendoados estavam fixos em um ponto inexistente, e as sobrancelhas ruivas apertavam-se, como se ela segurasse o choro. Num gesto impensado, ele colocou uma das mãos sobre o ombro frágil e ossudo de Ginny, mas o que conseguiu foi que o soluço que ela estivera segurando ecoasse no ar úmido da tarde.
Grossas lágrimas escorreram-lhe pelas maçãs do rosto, coradas pela temperatura fria, sem que a jovem tentasse limpá-las. Seus olhos estavam agora fixos em Harry, como se quisessem desenhá-lo no ar, imortalizando a dor que lhe arrebatava o peito.
“Não... Não chore! Desculpe, por qualquer coisa que eu tenha feito e a machucado...e..” Ele foi interrompido pelo som de mais soluços desamparados. Ginny havia tentado lacrá-los mordendo os próprios lábios, em vão.
“Harry...” Ela começou, jogando para trás uma mecha ruiva e umedecendo-a com a mão salpicada de lágrimas. “Não é algo que você fez... não é...”
Ginny parou por um instante, a visão embaçada e o coração acelerado. Não faria qualquer sentido para Harry o que quer que ela lhe dissesse dali para frente. Então por que podia ver tanta ternura, e até medo, em seus olhos verdes? Ele nunca seria capaz de compreender.
Harry assentiu com a cabeça para que ela continuasse, fazendo com que alguns fios negros obstruíssem sua visão.
“Você é quem me machuca, Harry!” Tomado pela surpresa que as palavras de Ginny o fizeram sentir, ele passou os braços pelos ombros da jovem e a trouxe junto a si, deixando-a enterrar o rosto em seu peito.
Agora, o céu está limpo e ao seu redor
Aah... Aah...
A sombra do amor irá lhe perseguir
Noite adentro
“Eu entendi... no começo, quando você quis me proteger... Mas quanto mais isso se repetia, mais eu queria estar perto de você para ajudar ou até mesmo consolar suas angústias e preocupações, Harry. E quando você perdeu a memória e eu não estava lá, havia ainda toda a culpa por não ter te desobedecido! Eu poderia... poderia ter perdido a memória no seu lugar, Harry... porque eu sei que me apaixonaria por você novamente, e quantas vezes mais fossem necessárias!” A fala fora interrompida por uma sucessão de soluços, e Harry pôde sentir os pálidos dedos de Ginny fecharem-se sobre seu suéter, prendendo a frágil jovem ao seu corpo.
Ele continuou segurando-a contra si com firmeza, e tocou o topo da cabeça ruiva com o queixo. Os fios estavam molhados com o que Harry descobriu segundos depois serem suas lágrimas, ao tocar a própria bochecha sob os óculos e sentir rastros ainda quentes e úmidos descendo por seu rosto. Todo o sofrimento que ele impunha a si mesmo por anos não era nada... NADA! Comparado ao que sentia agora, ao ter Ginny tão vulnerável nos braços, sentindo suas lágrimas e sua dor por culpa de uma mentira que ele acreditara ser necessária a ambos. A autopunição que ele vinha impondo por tantas mortes e desastres pelas quais Harry acreditava ser responsável vinha atingindo Ginny de todas as formas. E ele, que tanto a amava, não havia sido capaz de protegê-la do tormento de ser esquecida.
Fechando os olhos, Harry sentiu mais lágrimas escorrerem por seu rosto e encostou os lábios nos cabelos úmidos de Ginny.
Ela sentiu o gesto e o abraçou mais firmemente, para que pudesse continuar.
“Você não me protegeu, Harry, do maior mal que poderia ter me atingido. A sua ausência me fez preferir, muitas vezes, estar sob a Maldição Cruciatus.” Ginny, então, ergueu o rosto e o fitou intensamente com seus olhos vermelhos e inchados, ainda chorando.
Ao perceber que Harry também chorava, porém, não desviou o olhar do dele, e levou um dos polegares até a bochecha do jovem, limpando uma lágrima. Ele fez o mesmo, e empurrou uma mecha ruiva para trás da orelha de Ginny. O contato visual não havia, ainda, sido quebrado.
Estrela, brilhando no crepúsculo
Diga-me a verdade..
Espero seus suspiros para que possa segui-los
Até que me ame também..
“Me perdoe... por querer te proteger, e mesmo assim machucá-la tanto. Não, espere.” Ele posicionou os dedos sobre os lábios dela antes da interrupção. Ela apenas sorriu, permitindo que Harry continuasse. “Me perdoe, também... por amá-la demais e subestimar sua força. Acontece... Ginny...” Ele sorriu, enquanto os olhos dela se arregalavam em surpresa e terror. “...que eu não suportaria te perder”
Ginny se soltou, erguendo-se da posição em que se encontrava, como se um choque passasse por seu corpo. Havia mágoa, acima de tudo, em seus olhos ainda vermelhos. Ela piscou longamente, e um sorriso triste tomou conta dos lábios trêmulos.
“Não... Não finja que...” Ela começou, mas Harry já havia avançado sobre si, calando-a com as próprias palavras.
“Então não finja, Ginny.” Um tremor tomou conta do corpo da jovem mulher ao ouvir o nome pronunciado por aquela voz que ansiara tanto tempo escutar. “Não finja que sou só uma lembrança. Eu fui egoísta, imaginando que seria melhor para você que eu desaparecesse no passado, mas...”
Harry foi interrompido por um soluço, e depois outros, até perceber que Ginny havia levado a mão à boca para controlar o choro, mágoa e dor ainda presentes em seus olhos. Ela ergueu-se na grama, sob o olhar observador de Harry, e parou, em pé.
“Você se lembrava... todo esse tempo...”
Aah... Aah...
Ele não teve forças sequer para assentir, e apenas abaixou a cabeça, fitando a grama. O peso do olhar de Ginny sobre si fazia arder à culpa, como se um líquido fumegante e amargo descesse por sua garganta.
No instante seguinte, ele sentiu a jovem sobre si, chacoalhando-o de leve pela gola do suéter, presa entre seus dedos brancos. Os rostos estavam próximos, e Harry podia sentir o desespero de Ginny emanar de sua pele. E, por fim, ela parou de mover-se, mantendo-se de cabeça baixa, as lágrimas já não mais amparadas salpicando a grama.
“Por que...?!” Quando ele deixou que seus olhos encontrassem os dela, quis ter para si todo o sofrimento que deles emanava. Ela estava ali, fraca, beirando à loucura, apenas por ter dado tudo de si a um mentiroso. Harry esticou o braço para alcançá-la, mas o movimento foi em vão.
“Não me toque... por favor... não me atormente mais.” Ginny encolheu-se no chão, abraçando o próprio corpo para se proteger. Ele voltou a encostar-se à árvore, e observou-a. Ainda não imaginava como havia sido capaz de magoar alguém tão pura e frágil, quando tudo o que ele um dia desejou foi sua proteção. Ainda podia lembrar daquela tarde, semanas antes, quando a enfermeira adentrou o quarto de hospital durante uma visita diária de Ginny e comunicou que ele receberia alta assim que seus movimentos voltassem. Sem pestanejar, a jovem oferecera sua casa para acolhê-lo, mesmo se isso a fadasse a viver para sempre com o fantasma de um amor impossível. Ela não havia sido egoísta daquela forma desumana e cruel. A cada dia, Ginny mostrava o amor incondicional que sentia por Harry. E ele, cego em seu egoísmo, levava-a as lágrimas.
Agora, o céu está limpo e ao seu redor
Aah... Aah...
A sombra do amor irá lhe perseguir
Noite adentro
Com turbilhões de pensamentos invadindo-lhe a mente, Ginny não percebeu que alguns trovões soaram no céu nublado, anunciando a chegada de uma chuva. No entanto, quando sentiu as gotas geladas salpicarem sua pele, percebeu que o céu também chorava.
Harry percebeu o movimento, e ergueu os olhos até encontrar a figura da jovem mulher diante de si, deixando-se banhar pela chuva. A água misturava-se às lágrimas de ambos, sem que eles se incomodassem com o toque frio da estação. O desconforto físico era ignorado.
“Não me perdoe...” Ele sussurrou, mas não baixo o bastante para que ela não escutasse. Ginny fitou-o em surpresa, e encontrou o sorriso triste exibido em seus lábios.
“Já é tarde, Harry...” Os olhos cor-de-mel exibiam um brilho diferente do magoado que o rapaz fitava há poucos instantes. Um sorriso tímido brincava nos lábios rubros e úmidos pela chuva, enquanto um certo divertimento aparecia em seu semblante. Ele não parecia compreender o que Ginny acabara de dizer.
Ela piscou, antes de continuar, colocando para trás uma mecha ruiva e molhada.
“Harry... percebe que...que mesmo assim, não importa?”
“Como não...” Começou, mas foi interrompido pelo toque gélido dos dedos da jovem sobre seus lábios. Sua pele acetinada estava salpicada pela chuva, e pelas lágrimas já esquecidas.
“A mágoa... e toda a vontade que eu tenho de mandá-lo desaparecer... é apenas... apenas infinitamente menor do que a felicidade que sinto por não ter sido esquecida” Ela terminou, a palma da mão pousada carinhosamente sobre a bochecha de Harry, enquanto ele mantinha um sorriso compreensivo.
“Ginny... eu... não sei como pude fazer tanto mal a você e a mim, pensando que seria o melhor.”
Estrela, brilhando no crepúsculo
Diga-me a verdade..
Espero seus suspiros para que possa segui-los
Até que me ame também..
“Você quis que eu esquecesse a Guerra, e todos os meus vínculos com a mesma, para me recuperar da morte de minha família em paz” Completou Ginny, sentando-se ao lado de Harry sob a árvore.
“Como você...?” Ele virou-se lentamente para ela, encontrando o brilho de dois olhos cor-de-mel.
“É algo que apenas você, e mais ninguém, iria desejar.”
Harry concordou com um aceno de cabeça, e aproximou-se dela até que suas testas se tocassem.
“Se você não estivesse aqui, Harry... não faria qualquer sentido me recuperar...” Algumas lágrimas escorreram por seu rosto, e ele rapidamente as removeu com o polegar, tocando as bochechas coradas delicadamente. Ela fez o mesmo, deixando uma das mãos repousar sobre a nuca dele, entre os fios negros de seu cabelo. E fechando os olhos, Ginny se inclinou para frente, fazendo seus lábios roçarem. Agora, tendo certeza de que Harry sabia quem ela era, e amando-a incondicionalmente.
Ah... Ah... Ah...
Em um galho alto, abria-se tímida uma flor. O brilho róseo voltava a iluminar o gélido inverno.
Nota: A música se chama Winter Light e é da Linda Ronstadt, e pra quem gosta do filme O Jardim Secreto, a música é a que toca no final. =D
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