A Surpresa da Madame Rosmerta



O sol vespertino descortinava um horizonte azul claro nas charnecas vicejantes ao largo de Hogsmeade. Sapos coaxavam tranqüilamente, anunciando o fim da madrugada fresca, enquanto agarravam mamangavas com sua língua viscosa. Duas manticoras escorregavam sua pele escamosa para as sombras do bosque, fugindo dos raios do sol e escondendo as presas compridas sob a barba ruiva. Em pouco tempo, as criaturas noturnas estavam todas recolhidas, escapando da luminosidade crescente, dando lugar a pequenos esquilos, lagartos preguiçosos de sangue frio e um bando de pássaros roks, de quatro asas e dentes serrilhados. As aves haviam escolhido o antigo moinho da vila para construir seus ninhos. Vivendo somente perto das comunidades bruxas, pois se alimentavam exclusivamente de gnomos de jardim, os pássaros carniceiros eram considerados de mau agouro e os bruxos e bruxas de bem não gostavam de sua presença. O velho moinho, depois de se tornar um viveiro involuntário destas aves, se transformara em um prédio proscrito da comunidade. Ninguém se aventurava nos seus domínios, motivo pelo qual a atual ocupante se mudará para o interior da construção abandonada.

Passando pelas tábuas enviesadas e mal pregadas, pendendo frouxas da janela de madeira carcomida e apodrecida, um gato de listras cinzas e olhos amarelos saltou lépidamente para o chão de gramíneas altas e ervas daninhas que infestavam o local. Com dois círculos levemente argênteos ao redor dos olhos, aquele gato, decididamente, não era um animal comum. Caminhando decidido pela trilha sinuosa que saía do velho moinho, o felino andou em linha reta até descer a pequena colina onde estava, atingindo uma rua vicinal de Hogsmeade, sem se perturbar pelo caminho, ignorando solenemente os dois ratos que correram assustados e um pintassilgo que chilreou agudamente, voando para longe.

O gato parou ao lado de um casebre e olhou rapidamente para os lados, como se procurasse alguém. O sol recém se levantara e a vila se espreguiçava lentamente, aproveitando os últimos dias do verão. Mesmo assim, o felino procurou avidamente por olhos furtivos a espreita, sem encontrar viva alma. Satisfeito, ele abaixou a cabeça, em um momento de grande concentração. Para qualquer trouxa que vagasse por aquela região, talvez o comportamento estranho do gato fosse algo digno de nota, mas a grande maioria dos bruxos reconheceria um companheiro em processo de transfiguração pessoal. Aumentando subitamente de tamanho, os pêlos do felino diminuíram até sumir por completo, assim como a cauda. Os olhos amarelos foram substituídos por duas íris cor de cobre, finas e sérias. Óculos redondos surgiram magicamente no corpo adulto de uma bruxa empertigada e já um pouco idosa, o chapéu pontudo negro combinando com as vestes sóbrias e a expressão fechada. Os lábios estavam tão finos que pareciam sumir na face encovada da Professora Minerva McGonagall,, ou melhor, ex-professora – pensou, amargurada.

Limpando as vestes do orvalho matinal, a velha senhora seguiu rapidamente seu caminho, não transparecendo por um segundo que estivesse cansada ou que sentisse o peso da idade – afinal, ela já era professor de Hogwarts há quase quarenta anos e já poderia ser considerada uma bruxa de meia idade. Atravessou o beco em que se transformara, dobrou à direita no final da rua e seguiu até o final da viela, passando pelo malfadado bar Cabeça de Javali. Dois bruxos bêbados dormiam sob o sopé da porta, provavelmente escorraçados para fora pelo taciturno dono do estabelecimento, o truculento mestre Aberforth Dumbledore.

A Sra. McGonagall olhou com desprezo para as duas figura patéticas, roncando alto sob o chão de madeira empoeirada, fungando alto com impaciência. Obviamente, ela não considerava aquele um comportamento exemplar, ainda mais para um bruxo que vivesse tão próximo da sua Escola.

Dobrando à esquerda, seguiu pela rua principal, passando rapidamente pelo Zonko’s, onde lançou outro olhar de reprovação, a Dedosmel e o Correio Bruxo. Apressando o passo, seguiu descendo a rua até se encontrar na frente do Três Vassouras, o mais famoso bar de Hogsmeade, bastante conhecido e freqüentado pelos alunos e professores de Hogwarts. Mesmo atravessando quase toda rua principal, não encontrara ninguém nas imediações, com exceção de dois cães vagabundos que fuçavam em uma lata de lixo. Indiferente ao horário matutino, a Sra. McGonagall bateu com força na porta do bar, o som ecoando pela manhã tranqüila com uma certa impetuosidade.

Uma janela a duas casas de distância se abriu e a professora notou que um bruxo careca e de olhos grandes e amendoados metera a cabeçorra para fora. A Sra. McGonagall o reconheceu de imediato, inspirando profundamente para controlar os nervos. Era Thomas Newyt, o bruxo mais fofoqueiro e mexeriqueiro de Hogsmeade e, provavelmente, de toda a Grã-Bretanha. Ela lhe lançou uma olhar penetrante e, tão rapidamente como surgira, o velho desaparecera, fechando a janela torta com um baque.

- Hmpf! – fungou, batendo novamente na porta azul do Três Vassouras. Logo após, ouviu o inconfundível barulho de uma grande tranca sendo desaferrolhada. A porta abriu em um rompante.

- Professora McGonagall?!! – exclamou Madame Rosmerta, a vistosa proprietária e administradora do bar.

- Não tenho muito certeza quanto ao professora, mas enfim... – resmungou a Sra. McGonagall, que dispensou um convite para entrar, abrindo caminho pelo hall de entrada e ingressando no salão vazio. Madame Rosmerta, ainda de xale lhe cobrindo o pijama de seda oriental em tons avermelhados, fez um gesto com a varinha e tirou duas cadeiras do alto de uma mesa.

A Sra. McGonagall, que nunca estivera no bar tão cedo, examinou com eficiência o tampo dos balcões limpos e as mesas arrumadas. O lugar não estava tão asseado como o grande salão de Hogwarts, mas servia para a maioria da clientela que freqüentava o lugar – imaginou, erguendo uma sobrancelha. Mais uma vez, a lembrança da antiga escola lhe apertou o coração e ela sentiu um calafrio de frio. Madame Rosmerta notou rapidamente o desconforto da sua visita inesperada.

- A senhora está bem? Quer um pouco de chá? – perguntou, oferecendo uma cadeira para a professora e fazendo menção de lançar um feitiço em direção à cozinha.

- Não, não, não... Eu estou bem! Não se preocupe, querida – disse a Sra. McGonagall, se recompondo e olhando diretamente para a dona do estabelecimento enquanto tomava seu assento.

Depois de um breve momento de silêncio, Madame Rosmerta resolveu facilitar as coisas para uma das suas mais antigas freqüentadoras.

- Bom, Minerva, não posso dizer que não esteja surpresa com sua visita – disse, colocando as mãos sob os joelhos e abrindo um sorriso sincero.

Houve um novo silêncio. A Sra. McGonagall parecia procurar as palavras certas.

- Julie, eu preciso de um favor – disse, afinal, e era óbvio que a eficiente ex-professora fazia um enorme esforço para admitir o fato.

Madame Rosmerta ergueu uma sobrancelha. Ela sempre se dera muito bem com os professores de Hogwarts; afinal a escola estava a apenas alguns minutos de caminha de Hogsmeade. No entanto, nunca fora íntimo de nenhum deles, com exceção, talvez, de Dumbledore e Hagrid. Mas os dois eram casos especiais. Dumbledore oferecera sua inestimável ajuda quando ela passara por momentos realmente muito difíceis, há muito tempo atrás, e a bruxa se tornara extremamente agradecida. E Hagrid... bem, Hagrid era alguém impossível de não gostar. Ótimo freqüentador do estabelecimento, o ingênuo gigante e protetor da escola, inúmeras vezes abrira seu coração para ela, encharcado de vários galões de cerveja amanteigada.

Em relação a Sra. McGonagall, ela sempre fora muito reservada e Madame Rosmerta desconfiava que esta aparente distância fizesse parte de sua personalidade – anos atrás de uma mesa de bar a deixaram com uma espécie de sexto sentido para estas coisas. De qualquer forma, nunca se sentira ofendida com os modos secos da professora. Obviamente, ela não conseguia esconder seu ar de surpresa ao receber a visita da professora em horário tão inoportuno.

A Sra. McGonagall pareceu captar os pensamentos dela no ar.

- Eu sei que nós nunca fomos grandes amigas, Julie – começou, no seu jeito duro e sincero.

- Deixe disso, Minerva – respondeu prontamente, eliminando a perplexidade da expressão e examinando com atenção a velha senhora.

A Sra. McGonagall abriu levemente a boca em um esgar que vagamente lembrava uma salamandra enrugada tentando sorrir.

- Eu preciso de um emprego, Madame Rosmerta – disse, afinal, sustentando olhar absolutamente abobalhado com que Julie lhe respondeu.

O queixo da administradora do Três Vassouras atingiu os joelhos e voltou lentamente para o lugar, a cabeça dando mil voltas pelo caminho. Subitamente, ela notou as roupas levemente esfarrapadas da ex-professora e se lembrou das notícias espalhafatosas dos últimos dias no Profeta Diário. Lentamente, a sua mente voltou a funcionar e ela juntou os fatos, quase em um tranco.

- Oh, céus, Sra. McGonagall... Se a senhora estiver precisando de dinheiro, eu... – ofereceu ela, amaldiçoando em silêncio a própria falta de tato.

- Não, Julie, eu acho que você não me entendeu – cortou, agradecendo o oferecimento espontâneo com um gesto – Hogwarts supriu todas as minhas necessidades nos longos anos em que estive... a seus serviços – completou, a amargura transparecendo em cada sílaba. Ela pigarreou antes de continuar.

- Eu tenho uma boa quantia depositada em Gringotes, minha cara – acrescentou, com um certo desdém, como se tais preocupações mundanas não a afetassem. Madame Rosmerta a encarou, sem compreender.

- O que eu preciso... O que estou lhe pedindo, Julie, é um emprego.

- Porque?

A professora encarou Madame Rosmerta. A sinceridade da mulher o surpreendera por um minuto, mas ela já estava esperando esta pergunta. Ela não tinha certeza se poderia confiar plenamente na voluptuosa administradora do Três Vassouras, mas sabia que não poderia ocultar toda a verdade.

- Dumbledore quer alguém aqui para vigiar seus alunos e... os novos professores – disse, quase rosnando as últimas palavras.

- Oh! – exclamou Madame Rosmerta, levando a mão na boca em um espanto – Então... ele não vai voltar... Minerva, ele vai para Azkaban? – perguntou, nervosa.

- Não seja tola, Julie – respondeu a Sra. McGonagall, com uma certa rispidez que traiu o que deveria demonstrar uma absoluta confiança – Fudge seria crucificado vivo se cometesse um destino destes.

- Mas a escola...

- Vai ficar nas mãos dos Malfoy... por enquanto – rosnou, sentindo a fúria lhe arrebentar as têmporas.

Madame Rosmerta olhou diretamente para Minerva. Ela herdada o comando do bar dos seus pais há vários anos e, como qualquer profissional da área, bruxa ou não, sabia quando alguém precisava desabafar.

- Minerva, querida, se você precisa conversar... sobre qualquer coisa, eu...

- Não se preocupe com isso, Julie – cortou a Sra. McGonagall, recuperando novamente o autocontrole, os olhos frios e duros – E então? Posso contar com sua ajuda? Dumbledore me garantiu que...

- Eu faria qualquer coisa por Dumbledore – respondeu Madame Rosmerta, cortando as palavras da professora com um gesto, parecendo levemente magoada com a insinuação – É claro que eu vou ajudar vocês e quaisquer outros bruxos que lutem contra aquele... demônio – vociferou com raiva.

- Ótimo! – disse Minerva, suspirando aliviada – Quando posso começar?

- O bar abre às onze horas. A senhora precisa chegar perto das dez.

- Então... Nos vemos mais tarde, sim? – disse a professora, dando o assunto como encerrado.

- A senhora tem onde ficar? Eu posso lhe arranjar...

- Não se preocupe, Madame Rosmerta. Eu aluguei um... lugar adequado, aqui mesmo em Hogsmeade.

Julie acenou com um sorriso, levemente aliviada. Há muito tempo não morava com ninguém e não imaginava ter que dividir seus aposentos com alguém tão irascível quanto a eficiente Minerva McGonagall.

- Até mais, Minerva – se despediu, enquanto a ex-professora saia para a luz brilhante do sol matutino, os olhos ardendo depois de passar um bom tempo dentro da penumbra do Três Vassouras.

Julie Rosmerta fechou a porta com um estalo, olhando para seu bar que lhe pareceu duas vezes mais vazio agora. Nunca tivera alguém trabalhando com ela, pois nunca precisara. E, tinha que admitir para si mesma, Minerva era a última pessoa no mundo que ela convidaria para dirigir seu bar.

“Bem, na verdade, ela seria a penúltima pessoa” - pensou, com um certo sarcasmo. Antes, certamente, estava o professor Snape, que provavelmente espantaria metade de sua freguesia com seu ar de empáfia e seu jeito resmungão.

Mas ela devia sua vida à Dumbledore e, se o velho bruxo estivesse certo – e ela nunca o vira errar uma única vez -, Voldemort retornará e precisava ser detido.

“Aquele-que-não-deve-ser-nomeado acabou com minha vida uma vez” – resmungou para si mesmo, fechando as mãos em uma garra. E ela não deixaria que ele tivesse uma segunda chance.

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