O Sobrevivente



Mia não percebeu o momento exato em que passou a visualizar uma nova perspectiva. Viu-se na prisão de vidro, o coração ribombando no peito e o sangue correndo nas veias misturado à mais pura adrenalina. Ela era novamente a misteriosa dama de vermelho. A porta da prisão, outrora trancada, escancarou-se para dar passagem a um jovem de cabelos loiros dourados e rosto suado. Ele ofegou diante dela, respirando com dificuldades. Um corte no ombro havia ultrapassado a cota de malha que ele usava, o sangue escorrendo pela camisa branca. O machucado provocou um enjôo profundo que embrulhou o estômago da dama de vermelho. O braço do rapaz estava inerte, posicionado ao lado do corpo. A espada estava ao lado da cintura, envolvida pela bainha verde incrustada de pedras preciosas. No cabo da arma, que ficava para fora da bainha, havia uma enorme jade brilhante, que refletia a luminosidade difusa da prisão de vidro conforme os movimentos do corpo do rapaz. A varinha, no entanto, estava posicionada, em riste na mão direita.

Ele não disse nada ao cruzar a soleira da porta. Trancou-a atrás de si, lacrando-a com um aceno da varinha. Os olhos da dama de vermelho permaneciam fixos em cada movimento do rapaz. Como se julgasse que faltava algo, esperou que ele a encarasse para então questionar, num sussurro:

- Onde está...ele?

- Você confia em mim? – os olhos negros do jovem brilhavam, enigmáticos. - Confia em mim? – repetiu a pergunta mais uma vez.

A dama de vermelho queria gritar que sim. Dizer que seria capaz de dar a vida para que ele a levasse dali, antes que os homens que diziam pregar a palavra de um ser divino e masculino chegassem e a queimassem como herege. Antes que o dom que ela carregava dentro de si se tornasse um martírio. No entanto, Mia sabia e sentia que a dama de vermelho preferia morrer, se preciso fosse, a negar sua verdadeira natureza. Ela queria gritar que deixaria para trás todo luxo e riqueza, e um casamento de convenções, para se entregar completamente àquele que, ela julgava, seria incapaz de traí-la, fosse pelo que fosse. Mia não sabia explicar como, mas sabia que estava enganada.

Mesmo com desejo de expulsar tudo aquilo do peito, a dama de vermelho apenas conseguiu acenar em concordância para responder à insistente pergunta do jovem rapaz. No segundo seguinte, ele agarrou a mão de dedos finos e delicados da moça e correu rumo à janela redonda de vidro, que tomava conta de grande parte da parede da Torre. Ela só teve tempo de fechar os olhos antes de ouvir o rapaz gritar:

- Então pule!!!

Mia estava preparada para sentir o baque do vidro se quebrando quando eles o atingissem. Mas, no momento exato da pancada, o vidro sumiu, reaparecendo em seguida, depois que eles já o haviam ultrapassado. No rosto da dama de vermelho, logo acima da pálpebra direita, ficou uma pequena fissura, por onde escorria um filete de sangue. A magia feita às pressas não tinha sido cem por cento eficiente, mas não havia tempo para pensar num machucado ínfimo. Os dois corpos cruzavam o espaço em queda livre. O vento assobiava no ouvido, os cabelos castanhos da dama de vermelho se embaraçavam e voavam diante de seu rosto. Uma das mãos continuava agarrada à do jovem rapaz, cada vez com mais força. Ela podia até mesmo sentir que enterrava as unhas em sua carne. Antes de deixar o medo dominá-la e fechar os olhos, tudo o que conseguiu enxergar foi a velocidade das imagens passando borradas, como focos de luz entrecortados pelas brumas que recobriam a paisagem. O medo provocado pela queda certa para a morte deu lugar, repentinamente, a uma sensação de paz quando ela cerrou as pálpebras. Era como se a liberdade estivesse chegando aos poucos, tomando espaço na vida da dama de vermelho. Ela já não era mais uma confinada na prisão de vidro. Era um pássaro, uma astuta águia voando livre pelo céu, de encontro à sua verdadeira essência.

A sensação de voar foi interrompida por um baque repentino, porém suave. Aquilo não podia ser o chão, era delicado demais, mas ao mesmo tempo grosseiro, como uma camada de couro firme e poroso. A dama de vermelho se assustou quando a superfície se moveu abruptamente, ganhando altura como se voasse. Engoliu o ar rápido demais e tossiu, os olhos se enchendo de lágrimas. Forçou-os, então, a se abrir. E o que viu quase fez seu coração parar: ela e o jovem estavam montados no dorso de um enorme dragão, as asas vermelhas cortando o vento e reluzindo com as luzes do sol de fim de tarde envolto pela neblina.

Assustada, a dama de vermelho encarou o jovem, que apenas disse:

- Mia! Mia!

Aquilo não fazia sentido. Foi então que a ruiva focou a visão em Hermes, que balançava uma das mãos freneticamente diante de seus olhos vidrados. Lúthien parecia se divertir com a situação. Ainda estavam sentados no chão da sala secreta, o exemplar de Hogwarts, uma história aberto no colo da loira. Mia tentava entender o que havia presenciado, e estava assustada por sonhar acordada desta vez. O que significava tudo aquilo? Pareciam... lembranças. Mas como se pode ter lembranças de algo que não se viveu?

Quando abriu a boca para falar, foi interrompida por um estampido, seguido de um barulho de vidro quebrando e vários gritos, que só poderiam vir da sala de jantar da mui antiga e nobre casa. O trio se lembrou, então, instantaneamente e ao mesmo tempo, de que ainda deveria estar acontecendo um jantar de Natal. Lúthien fechou o livro e o abraçou, com um olhar surpreso e mais esbugalhado ainda, se é que isso poderia ser possível. Mia e Hermes se entreolharam, um nó se formando na boca do estômago de cada um, antes da ruiva se voltar novamente para Lúthien:

- Esconda o livro num lugar onde possamos recuperá-lo antes de irmos embora – exclamou, as palavras se atropelando por conta da pressa. – Enquanto isso, eu e Hermes vamos ver o que aconteceu!

- Não demore muito – Hermes ainda teve tempo de completar para Lúthien, já com a mão na maçaneta da porta da sala secreta. – Afinal, eles irão estranhar caso você não reapareça conosco.

Lúthien apenas acenou com a cabeça em sinal de concordância. E foi tudo o que Mia conseguiu ver antes de Hermes trancar a porta atrás de si e correr de volta para a sala de jantar, com a ruiva em seu encalço. Ao passar em frente à porta da cozinha, a menina percebeu que o chão ainda estava molhado e notou que os gêmeos não puderam conter a enxurrada dos canos da cozinha, que agora ensopava quase todo o hall de entrada da casa. Hermes, que corria na frente, espirrou água gelada na menina, e um ligeiro arrepio percorreu a espinha dorsal de Mia. Sem, no entanto, dar atenção a isso, continuou a seguir Hermes, até que ambos chegaram derrapando os solados molhados no piso da sala onde os Renegados se reuniam.

O local era o retrato falado do caos. A mesa ainda continuava com os pratos intocados de comida, embora já se tivessem passado pelo menos duas horas desde que ela foi posta. A toalha do canto esquerdo do móvel estava levemente puxada, e uma tigela cheia de molho de mostarda havia caído e se espatifado, espalhando o líquido amarelo pelo chão. Alguns bruxos seguravam firmemente as varinhas, apontadas para o que tinha acabado de acontecer no centro da sala. Tia Gina havia retornado, provavelmente aparatando de surpresa no local. Ao que tudo indicava, a ruiva é que havia levado a toalha durante o procedimento mágico, pois se encontrava sentada no chão em cima de um pedaço dela. Por cima da perna esquerda da ruiva, ao invés do loiro de cabelos platinados que era seu marido e com o qual Mia e Hermes a viram desaparatar momentos antes, havia um homem com os cabelos muito negros, embora entremeados por alguns fios brancos. O rosto dele, embora estivesse com a cabeça ligeiramente voltada para baixo, traduzia o mais puro terror ao se ver naquele ambiente, como se tivesse lutado para não estar lá. A senhora Weasley e Vovó Molly eram as principais responsáveis pelos gritos e lágrimas que tentavam se sobressair aos comentários gerais que invadiam a sala. O senhor Wesley misturava, ao mesmo tempo, uma expressão de incredulidade, vaga lembrança e desentendimento total. Luna permanecia plácida, mas encarava a cena no centro da sala com o máximo de atenção que lhe era possível expressar. Neville, ao seu lado, parecia não entender muito bem a movimentação, a boca entreaberta num comentário que nunca veio. Os outros presentes na sala estavam, no mínimo, assombrados, como se ali tivesse aparecido um fantasma. O primeiro a tomar uma atitude foi tio Gui, os olhos sem querer acreditar no que viam. Desvencilhou-se do abraço protetor de uma estupefata Fleur e se aproximou do homem, que estava meio sentado, meio deitado, numa estranha posição. O Weasley tentou encarar o rosto abaixado sem sucesso e perguntou, como se o estranho fosse capaz de responder alguma coisa no estado em que estava:

- É... você?

- Nunca! – Fred e Jorge exclamaram ao mesmo tempo, abismados.

- Eu? Eu o quê? – a voz do homem estava alterada e deixava transparecer ainda mais o sentimento de confusão que o dominava. - Onde estou? Morri e estou no céu, é isso? Ou é o inferno? Não, só pode ser o inferno, com todas essas cabeças vermelhas e... destino!!!

Os olhares da sala convergiram todos para a porta, onde Mia estava parada com Hermes observando a cena. Ela tentava processar tudo da melhor maneira possível, sem no entanto conseguir atingir o objetivo. O que raios o pai de Daniel estava fazendo sentado ali, com uma cara de assustado, como se houvesse acabado de aparatar com Tia Gina e...

- Putz! Esqueci de te contar um negócio, Mia... – Hermes olhava para a amiga, assim como todos os outros Renegados - Minha mãe comentou hoje à tarde que achava que tinha encontrado alguém importante. A briga com meu pai começou por causa disso. Ela disse que, se as suspeitas fossem confirmadas, traria esta pessoa para o jantar, o que deixou meu pai bastante transtornado.

Os olhos verdes, que agora apontavam para Mia, eram quase como uma prova. Mas agora que o estranho trazia a cabeça levantada, ninguém precisava especular mais nada. A cicatriz na testa, embora ligeiramente encoberta pela cabeleira espessa e mal cortada, não deixava dúvidas, ao menos para a maioria dos presentes. Mia sentiu o corpo vacilar: afinal, Daniel Barish era filho de ninguém menos que Harry Potter!




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