Prólogo



Nota prévia: Existem algumas coisas que eu queria, desde já, deixar bem claras. A primeira é que, embora a fic seja passada no séc. XIX, eu não pretendo usar linguagem de época. É levemente mais cuidada, variando consoante a classe das pessoas que falam, mas eu realmente não tenho essa pretensão. É apenas uma opção, de escrita e para que a leitura fique mais simples. Segunda coisa, Flecther Hall não existe realmente (excepto na minha imaginação XD), mas eu imagino-a algures entre a Inglaterra e a Irlanda. Terceira, eu omiti deliberadamente o Percy, porque não saberia o que fazer com ele e, como tal, vou deixar quieto XD Quarto, eu pretendo ser o mais fiel possível à época, ainda que algumas coisas possam aparecer fora de contexto. Mas, por favor, se encontrarem algum erro grosseiro, teria o maior prazer que indicassem. Gosto muito dessa época, mas dificilmente sou uma historiadora. Quarto, essa fic terá cenas para maiores de idade (refiro também violência). Quinto, eu sei que há coisas que não vão compreender de início. Mas confiem, eu (ainda) sei o que estou fazendo. Quem teve coragem de ler essa nota prévia gigante, merece definitivamente essa história.

Prólogo

Fletcher Hall

Novembro de 1813

Houve um tempo em que as pessoas sonhavam com justiça. O mundo experimentava um avanço significativo, novas descobertas eram feitas a um ritmo mais acelerado do que em qualquer outro momento histórico. O conhecimento que era alcançado contribuía para que todos sonhassem com uma época de esplendor redobrado.


Os governantes de Fletcher Hall eram pessoas dignas e honradas, que incitavam a supressão das desigualdades entre os seus cidadãos, num modelo de comunidade perfeita. Os Weasley eram uma das famílias mais respeitadas e antigas e possuíam um cargo importante na Casa dos Representantes, encarregada de garantir a continuação da forma de governo e dos ideais que vigoravam.


Algures nas sombras, durante muito tempo oculto de olhos vigilantes, um homem tecia uma teia que colocaria em causa tudo aquilo por que haviam lutado. Através de esquemas e jogos de poder, colocou sob as suas ordens muitos homens influentes, que desejavam para si o poder conquistado pela região de Flecther Hall. Poucos acreditaram que ele conseguisse realmente triunfar, devolvendo-os a todos para a tirania e subversão.


Construiu os seus domínios no Sudeste, num ermo em que nenhuma forma de vida proliferava. Em tempos idos, talvez muitos o tivessem julgado como um demónio. Mas em pleno século XIX, época da razão plena, foi julgado como aquilo que era realmente – um homem sem nenhum tipo de escrúpulos.


Um dia, quando a noite caía, os seus soldados apoderaram-se das casas do governo, prendendo e torturando todos os homens válidos que lhes fizeram frente. A brutalidade e o horror daquele dia perduraram ainda por muito tempo, presas na retina daqueles que testemunharam os seus actos.


A última casa que visitaram foi a mansão Weasley. Lord Voldemort, o tirano, reconhecia que apenas ali garantiria a sua vitória. Derrubá-los era triunfar e aniquilar uma importante fonte de resistência.



Ginny estava sentada na grande mesa de madeira da cozinha, observando pela janela as nuvens negras que se aproximavam. A velha criada, Mrs. Galloway, estava perto do fogão, debruçada sobre uma enorme panela de ferro. Mexia com o pouco vigor que lhe sobrava o doce de uva, o predilecto da sua pequena Ginny e do seu menino Ron.


A menina fixava o céu como se quisesse forçar que uma gota de chuva caísse. Adorava tempestades, nada a fazia sentir-se tão forte e segura quanto uma trovoada ecoando pelos ares.


Enquanto remexia na sua trança ruiva, revirando o nariz perante o aroma da guloseima, ouviu ao longe cascos de cavalo que se aproximavam. Puxou o xaile que lhe cobria os ombros e olhou para a porta, a face ainda miúda cheia de curiosidade por aqueles visitantes inesperados.


Mrs. Galloway, já um pouco surda de um ouvido, apenas notou a aproximação das montadas quando estas entraram no carreiro para a casa principal. Olhou para a porta e Ginny notou a sua súbita preocupação.


Arthur Weasley, patriarca da família, irrompeu pela cozinha, olhando desvairado de Ginny para a velha mulher.


- Catherine, eles estão vindo. Fique aqui com a Ginny, não saiam por nada! – a filha sentiu o desespero na voz normalmente pausada do homem e levantou-se, andando para ele.


- Papai, o que se passa? – rodeou a mesa, tentando segurar-lhe a mão grande.


- Ginevra, obedeça a Mrs. Galloway. Seja forte, minha querida. – lançou um olhar suplicante à ama, antes de deixar a cozinha.


Ginny ficou de pé, a camisa de noite cobrindo-lhe o corpo franzino de doze anos, observando a figura alta desaparecer pelo corredor mal iluminado até à porta da sala. O seu pai era sempre tão divertido, compreensivo. A ruivinha lembrava-se de como era raro que ele não a pegasse pela cintura e rodopiasse com ela, chamando-a de Esquilo. Normalmente, uma atitude tão séria e fria era sinal de problemas graves.


Continuava especada diante de porta, os olhos muito abertos, quando ouviu batidas impetuosas na grande porta principal. Catherine Galloway, carinhosamente chamada de Cathy, servente da família há mais tempo do que aquele que podia se lembrar, puxou-a sem qualquer tipo de delicadeza pela mão.


A garota resistiu um pouco, fincando os pés no chão. Queria saber, precisava saber. Algo estava para acontecer, algo que mudaria as suas vidas para sempre. Ela podia sentir a tensão no ar, assim como sentira o medo e a raiva fria do seu pai.


A ama arrastou-a até à grande despensa das traseiras e empurrou-a energicamente lá para dentro, entrando em seguida. Uma fresta da porta ficou aberta e Ginny continuava a ter um vislumbre da ampla janela da cozinha.


Novas batidas soaram na grande porta, desta vez seguidas de gritos em vozes altas e irritadas. A cada pancada na porta, Ginny podia sentir o seu coração encolher como uma pequena noz. As mãos de Mrs.Galloway colocaram-se sobre os seus ombros, tremendo como folhas frágeis ao vento de Novembro.


Quando a primeira gota caiu, molhando a vidraça, um estrondo ecoou e Ginny ouviu vozes exaltadas encherem a sala ao fundo do corredor. As mãos da idosa apertaram-se mais nas suas costas, fazendo-a soltar um gemido abafado de dor.


- Arthur Weasley, detentor do primeiro assento da Casa dos Representantes, encontra-se na posse da informação de que o poder passou para as mãos de Lord Voldemort?


- Foi o que eu ouvi dizer. Apenas lamento que esta notícia me seja confirmada pelo senhor, Tenente Hunter. Desconhecia que a sua lealdade estava à venda, ou tê-la ia comprado para a manter do lado certo. – a ruiva conseguiu filtrar todo o rancor e aversão na voz bem timbrada do seu pai.


- Arthur mantenha a calma. Admito apenas essa exaltação comigo, porque sei que deve estar sujeito a um grande choque. Mas saiba que tenho ordens para executar livremente quem resistir!


A ameaça clara atingiu Ginny como uma rocha maciça. Num ímpeto, libertou-se das mãos protectoras de Cathy e voou pelo corredor. Assim que entrou na grande sala de entrada, dois braços seguraram-na com firmeza. Olhou para cima, desvairada, e reconheceu Charlie, um dos seus irmãos mais velhos. Fred e George estavam ali também, bem como Ron, todos ladeando o pai.


- Fique quieta, Ginny. – ouviu Charlie ordenar-lhe em voz baixa. Reparou que a sua mãe, Molly Weasley, jazia sentada num sofá elegante. Quando os seus olhares se cruzaram, a mulher sorriu suavemente e Ginny admirou-a pela postura digna que mantinha, apesar de tudo.


- Leia o edital, Hunter. Não percamos mais tempo com conversa de circunstância, ambos sabemos o modo como eu sairei daqui hoje.


O soldado sorriu de forma fria, e até algo cruel, antes de retirar um papel do bolso e ler alto. Era alto e ainda bastante jovem; os olhos e os cabelos pretos como carvão, em conjunto como uma fisionomia altiva e compenetrada, tornavam-no temível.


- Por ordem dos oficiais do exército de Lord Voldemort, que governam actualmente Fletcher Hall, declara-os sob custódia e ordeno a prisão no Sudeste. Todos os bens serão apreendidos, excepto a casa, que permanecerá sob governo da própria família Weasley. Assim eu declaro no dia 22 de Novembro de 1813.


Ginny sentiu o corpo do irmão retesar-se ao seu lado e perguntou-se onde estaria Bill. Provavelmente havia escapado assim que soaram as novas do golpe, reunindo-se a outros homens. Embora fosse ainda muito jovem, a garota tinha noção de que essa tomada de poder não tinha sido totalmente imprevisível – ainda que não pudesse ter sido evitada. Algures, a resistência estava sendo convocada.


- Muito bem. – quando o seu pai estendeu os pulsos, sendo prontamente agrilhoado, Ginny sentiu um frio gelado ocupar um lugar no peito que ela aprendera a associar ao coração. Olhou para os seus irmãos, todos mortalmente pálidos e impotentes.


- A senhora deve acompanhar-nos também. – o Tenente dirigiu-se a Molly. Ela levantou-se, com um golpe seco, erguendo a mão para impedir que os filhos fizessem qualquer gesto para a defenderem. Caminhou com passos enérgicos até ao Tenente, a barra do vestido azul arrastando levemente no chão. – O seu filho mais velho, onde está?


- Quanto a isso, não faço a mais pálida ideia. – os cabelos ruivos da mulher, já algo pontilhados de cinzento pela poeira dos anos, presos numa travessa elegante, pareceram flamejar com intensidade.


- Se soubesse, dir-nos-ia? – o riso quase sádico do homem foi prontamente retribuído com um sorriso seco da dama.


- Obviamente que não. – as correntes foram colocadas e juntou-se ao marido perto da porta, rodeados por uma formação de soldados fardados de negro.


- Aos que ficam, digo apenas que tudo isso não se trata de um acontecimento pontual e infeliz. Os vossos pais não voltarão para casa amanhã, se chegarem sequer a regressar. Como tal, considerem-se avisados e tomem a noite de hoje como exemplo. – o seu olhar recaiu sobre Ginny, que foi imediatamente protegida da sua vista pelo corpo de Charlie que se interpôs entre ambos.


Ginny não esqueceria aqueles olhos negros, segredando-lhe palavras de dor e desesperança. Nem devia esquecer. A imagem daquela cara seca, o maxilar quadrado e o sorriso retorcido, perduraria na sua memória até ao dia em que o reencontrasse.


Os soldados voltaram-se e empurram os prisioneiros para a rua. Antes que algum dos rapazes pudesse impedir, Ginny esgueirou-se atrás deles.


- Mãe! Pai! – gritou, correndo atrás deles pelo relvado bem tratado da frente da casa, a chuva molhando-a até à alma – Não!


A marcha do grupo abrandou e Ginny registou o momento em que o Tenente Hunter a encarou, levantando uma pistola na sua direcção. Ele precisava de um exemplo. Uma história que fosse repetida de boca em boca, que implantasse o temor no coração de todos os oponentes do seu amo. Ele sabia disso e, agora, a garota também o sabia.


- Ginny, volte aqui! – Charlie gritava desesperado, não ousando aproximar-se mais.


Com uma coragem que desconhecia, a jovem levantou a cabeça e deu um passo em direcção aos seus pais acorrentados. Hunter sorriu de forma maligna e fez mira.


Um estampido. Ela caía. Dor. Tanta dor. Sangue.


Abriu os olhos e viu a face de Mrs. Galloway, que lhe sorria deitada sobre si. A velha mulher suspirou e fechou os olhos. Cansada. Mortalmente exausta.


As lágrimas caíam em catadupa enquanto desviava o corpo de Cathy, que se interpusera entre ela e a morte, oferecendo-lhe uma vida que ela não desejava ter. Soluçava descontroladamente quando os seus pais a olharam uma última vez, antes de serem empurrados para o interior de uma carruagem fechada.


Os seus olhos castanhos gravaram aquela imagem. A sua mãe sorrindo e chorando e o seu pai, corajoso e honrado, seguindo rumo a uma estadia de puro terror, enquanto ela soluçava agarrada ao corpo frio de Cathy.


Lembrou-se da última viagem que os seus pais haviam feito, há mais de um ano. Estariam fora por apenas alguns dias, mas crivaram-nos de conselhos e recomendações. Relembrou-se da voz meiga e autoritária da sua mãe, segredando-lhe ao ouvido “Olhe por eles, querida”.


Quando os seus irmãos chegaram junto dela, abraçando-a e gritando por ter-lhes desobedecido, a ruiva sentia-se como se tivesse saído do seu corpo e pairasse algures, muito longe dali.


Não sabia exactamente como voltara para o seu quarto. Não se lembrava de como passara aquela noite, imaginando e antevendo o que os esperava. Nem sequer se lembrava do que tinha sido dito no funeral discreto de Cathy, embora estivesse certa de que haviam sido palavras de grande apreço e louvor.


Quando acordou para a realidade, vários dias tinham passado desde aquela fatídica noite e, fitando a despensa que se esvaziava a um ritmo preocupante, sem que eles tivessem um único tostão para comprar o que quer que fosse, Ginny compreendeu que não era mais uma criança.





Novembro de 1816


Desceu o último degrau de mansinho, tentando fazer o mínimo de barulho possível, enquanto colocava o cachecol de lã preta e baça em volta do pescoço.


Naquele ano a neve viera mais cedo, com as primeiras folhas caídas de Outono. Lembrava-se com perfeição de que, há três anos atrás, as chuvas tinham fustigado as janelas altas do seu quarto durante dias a fio.


Foi até à cozinha e colocou um pedaço de lenha raquítica perto das brasas que ainda resistiam no fogão. Esfregou as mãos, tentando aproveitar aquelas ondas de calor para aquecer o corpo mal descansado.


Sacudiu o velho vestido cinzento e puído, cheio de remendos feitos pelas suas próprias mãos, preparando-se para enfrentar o frio cortante da madrugada.


Assim que saiu pela porta da cozinha, as botinas enterrando-se automaticamente na fofura crocante da neve acabada de cair, uma vaga de gelo ocupou o lugar do sangue nas suas veias. Daria tudo para ainda estar na cama, aquecida pelos velhos cobertores, protegida do mundo pela porta que guardava os seus domínios. Mas não podia. Não agora, que todos os seus irmãos estavam dependentes de si.


Entrançou rapidamente o longo cabelo ruivo, que alcançava a base das suas costas, e ocultou-o numa boina escura, prosseguindo o caminho que conduzia ao centro da cidade.


Três anos vivendo como proscritos, como miseráveis que, na realidade, acabaram por ser. Lord Voldemort permitiu que eles permanecessem na sua casa, mas roubara-lhes todas as formas de sustento.


A nenhum dos homens Weasley era dado trabalho, salvo raras excepções que não duravam mais do que alguns dias e que apenas rendiam o suficiente para enganar a fome. Ela, a única menina, podia considerar-se afortunada. As pessoas tinham pena dela, dando-lhe alguns trabalhos remunerados para fazer ou, simplesmente, uma esmola que a envergonhava – principalmente, porque sabia que não podia recusar. Uma recusa era deixá-los a todos sem nada no estômago por vários dias, algo que não podiam suportar no rigor dos longos Invernos de Fletcher Hall.


Todas as ajudas eram dadas pela calada, no silêncio das ruelas sombrias ou no recolhimento de uma cozinha fechada, longe de olhares delatores. Os Weasley, outrora a família mais venerável da região, eram considerados traidores do regime e nenhuma forma de auxílio era tolerada. Ser conivente com eles era assinar uma sentença de prisão ou, no pior cenário possível, de morte.


Alguns dias depois da prisão dos seus pais, Ginny percebera que lhes fora dada uma falsa esperança. A sua liberdade tinha sido mantida, mas era esperado que a morte chegasse para todos eles em pouco tempo.


E agora a pneumonia. Charlie e os gémeos tinham caído de cama e Ron aguentava-se apenas o suficiente para terminar um dos poucos trabalhos que conseguira naquele ano, um pouco longe de casa, num barco a vapor.


Cruzou-se com um homem elegante, que passeava um caniche de aspecto aristocrático. Diabos, até aquele cão tinha um aspecto melhor do que ela. Provavelmente, também comia mais e melhor. O cavalheiro olhou-a com desinteresse e ela baixou os olhos, torcendo as mãos dentro das luvas cortadas que deixavam os seus dedos finos de fora, para conseguir trabalhar melhor. O tempo ensinara-lhe o dom da invisibilidade.


Entrou na rua principal e teve um vislumbre do movimento de alguns homens e mulheres bem vestidos, entrando e saindo das lojas, rodeados de criados que seguravam os embrulhos.


Não precisava de indicações dos seus nomes para saber que aqueles deviam ser partidários originais de Voldemort. Embora a população não vivesse numa pobreza tão extrema quanto a sua, todos viviam subjugados e apenas com alimento suficiente para garantir que continuariam a ser capazes de trabalhar e produzir, enriquecendo ainda mais o tirano e os seus lacaios.


Lacaios esses que, segundo aquilo que observara, não tinham a menor ideia do quão criados dele eram. Mesmo ali, posando de grandes damas e cavalheiros da sociedade, eram tão serventes de Lord Voldemort quanto o mais reles cocheiro era deles – talvez até mais, pois tinham trocado a sua dignidade pelo poder que ele lhes oferecera.


Passou por uma menina de tranças louras, provavelmente dama de companhia de alguma senhora rica e reparou nos seus olhos cinzentos. Eram enormes e tristes, como duas jóias que se esqueceram de brilhar, que perderam o valor.


Não. Ali, algures, ela via que nem tudo estava perdido para aquela criança. Ela podia servir alguém, mas essa pessoa não se servia dela. Ela sabia, e aquela menina tão inocente talvez também já tivesse descoberto, que aquilo fazia toda a diferença.


Cortou por uma rua transversal e bateu com os nós dos dedos numa porta de madeira carcomida. Aguardou alguns instantes, os dentes batendo pelo frio cortante que sentia.


A porta abriu-se e a luz da candeia de óleo, que ardia ali perto, iluminou a figura de uma mulher robusta e baixinha, de olhos e rosto endurecido pelos anos e pelo sofrimento.


- Como está, Marie? – cumprimentou a ruiva, polidamente. A matrona franziu o nariz, olhando em volta rapidamente. Ginny sabia que ela confirmava que ninguém a veria tendo aquela conversa com um dos Weasley.


- Ginevra, eu não tenho nada para você. – as palavras saíram atropeladas, como se ela quisesse experimentar a velocidade máxima a que as podia dizer e, ainda assim, ser entendida.


Marie Lois, uma descendente de franceses do Poitou, era uma costureira prendada e dava alguns trabalhos a Ginny, pagando-lhe de forma justa por eles.


- Eu não viria aqui se eu não precisasse realmente. – a ruiva afastou um pouco o cachecol fazendo-se ouvir mais claramente – Há mais de uma semana que eu não ganho nada, nem pedindo esmola. Marie, eu estou desesperada!


- Eu sei, Gin. – a mulher demonstrou alguma da sua bondade natural, bem como uma nota de preocupação – Os seus irmãos ainda estão doentes?


- Sim… – a garota cedeu, mordendo o lábio – Se eu não levar nada para casa hoje, para que eles possam comer uma refeição minimamente decente, eles vão morrer.


Surpreendeu-se apenas parcialmente com a crueza da sua voz. Era uma verdade. Apenas mais uma das suas cruéis verdades.


- Gostaria de ajudar, você sabe bem! Mas ontem um oficial andou rondando a rua, eu acho que eles suspeitam que eu dou cobertura para os seus movimentos.


A ruiva fechou os olhos por momentos, com força. Sempre que ganhava um aliado verdadeiro, mais tarde ou mais cedo a colaboração era descoberta e o elo rompido. Era isso ou o exílio e Ginny não culpava ninguém por escolher a primeira opção.


- Tudo bem. Eu realmente lamento ter causado problemas, Marie. – preparou-se para partir, mas a francesa puxou-a suavemente para a soleira da porta.


- Eu é que lamento, querida. Cuide-se. – apertou-lhe a mão com uma força gentil e, quando desapareceu atrás da porta, a ruiva carregava consigo uma moeda na mão bem fechada.


Escondeu-se atrás de uma carroça que estava sendo carregada de legumes, roubando uma maçã de caminho, e observou a moeda. Daria para uma refeição completa, mas não para comprar um extracto no boticário, necessário para que os irmãos se restabelecessem.


Mastigou rapidamente a fruta. Odiava ter que roubar, mas era indispensável em certas situações. A sua consciência, formada pelos anos de educação rigorosa e carinhosa dos seus pais, sofrera muito nos primeiros tempos.


Lembrava-se do dia em que roubara um pedaço de pão da montra do padeiro, a primeira vez que comera algo que não lhe pertencia por direito. Nessa noite chorara lágrimas amargas na solidão do seu quarto, mas percebera que era uma opção desesperada. Talvez a mais branda das atitudes que podia tomar para se manter viva.


Andou pela rua, a mente toldada pelas memórias dos últimos três anos. Os momentos felizes pertenciam a uma outra vida, que lhe fora arrancada prematuramente. A garota que era agora nada sabia ou conhecia dessa felicidade, dos dias claros, do amor desinteressado.


Sem ter verdadeira consciência, parou diante da loja de Kate Garrett. Uma tabuleta de madeira oscilava ao vento e um floco de neve caiu do céu cor de chumbo, aterrando em cima dela. As letras negras “Cabelos e Perucas” chamavam-na de forma tentadora.


Resgatou a trança de dentro da boina e olhou-a demoradamente, mordendo o canto do lábio. Conseguiria o dinheiro necessário, a qualquer preço.


Entrou na loja e viu a velha Kate penteando uma longa cabeleira encaracolada para mulher. Plantou-se bem diante dela e acenou com a cabeça à mulher. Não precisava dizer mais nada. Há muito tempo que aquela mulher ambicionava ter os seus cabelos vermelhos na sua colecção grotesca. Pois bem, agora teria a sua oportunidade.


- Dez moedas, certo?


- Claro! – a mulher sorriu, a dentadura apodrecida e parca aparecendo completamente. A ruiva franziu a testa, quase rindo aquele detalhe caricato, e sentou-se na cadeira diante do espelho.


A mulher agarrou uma tesoura comprida e desprendeu o longo cabelo da jovem, escovando-o com os dedos. Ginny fez uma careta quando ela desfez um nó com violência.


- Pronta? – o sorriso de Kate era de um contentamento mórbido. Abriu e fechou a tesoura como um carrasco particularmente agradado com a execução de um condenado.


A ruiva engoliu em seco e apertou os olhos por momentos. Quão degradante era vender o seu próprio cabelo? A velha repetiu a pergunta, insistente.


- Corte.

Olhou o espelho uma última vez, gravando a imagem que ele reflectia, e fechou os olhos, tentando bloquear a visão devastadora das suas madeixas ruivas cedendo sob a tesoura impiedosa, manejada pela mão daquela velha de hálito acre e olhos tristes.


Sempre se orgulhara do seu cabelo, um orgulho quase desmedido. O cabelo que a sua mãe acariciava quando lhe contava histórias à noite. O cabelo que ela tinha que esconder do mundo, pois denunciava-a como uma Weasley em qualquer lugar onde fosse. O cabelo que ela associava à sua força, cortada e constantemente restaurada, crescendo viçosa apesar de todas as provações e dos poucos cuidados que recebia.


No final, quando a mulher deu a tarefa por terminada, os cachos ruivos acabavam no seu queixo. Bom, pelo menos seria mais fácil escondê-los a partir daquele dia. Enquanto Kate prendia os restos mortais da sua farta cabeleira com uma fita de seda, Ginny olhou em volta, tentando evitar a imagem que o espelho insistia em devolver-lhe.


- Ginevra?! – a garota voltou-se ao ouvir o seu nome e deparou-se com uma mulher extravagante, que a fitava descrente pela porta que dava para a rua. Era Madame Rubidoux.


Corine Rubidoux, conhecida apenas por Madame Rubidoux, era uma das mais influentes mulheres de Fletcher Hall. Também era a mais neutra de todas. Não era verdadeiramente apoiante de Voldemort, nem tão pouco sua inimiga. Era, isso sim, uma cortesã ambiciosa e muito esperta.


Nos últimos anos, já só atendia os clientes que desejava e dedicava-se, nos tempos mortos, a administrar o salão onde um dia fora apenas mais uma. Os anos tinham sido generosos para ela, os cabelos loiros continuavam a ter um brilho invejável e os olhos azuis reluziam como duas safiras.


A ruiva retribui-lhe o olhar, colocando nele todo o seu desprezo, antes de voltar a sua atenção para as moedas que Kate lhe entregava.


- O seu cabelo…mas o que…? – a pergunta tornou-se desnecessária diante da visão da transacção – Oh, Ginevra, porque não me pediu…?


- Porque sei o que me pediria em troca, Rubi. – Ginny enfiou a boina, escondendo o que lhe restava de cabelo debaixo dela – Eu não estou minimamente disposta a isso.


- Ora, Gin! Esses moralismos idiotas não vão levá-la a lugar algum. O seu estômago continuará a rosnar de fome, Lord Voldemort continuará no poder e os Weasley que sobram continuarão a viver à margem.


- Eu tenho apenas quinze anos, Rubi. Não pretendo tornar-me num dos seus brinquedos! - rosnou a garota, atingida pelas palavras duras, ainda que verdadeiras, da mulher.


- Com a sua idade eu já era uma das melhores, Ginevra. Você certamente poderia ser uma, também.


- Nunca! – a garota praticamente cuspiu a palavra na cara da cortesã, avançando pela rua.


- O nunca pode estar mais perto do que pensa, menina! Poderia ser grande e ter uma vida melhor. Pense nisso.


À medida que a garota desaparecia da sua vista, a mulher não podia deixar de pensar na dignidade que, um dia, também ela tivera. Mas a moral não a salvara, tal como também não salvaria Ginevra Weasley. Ela tinha um brilho próprio, uma força rara, para além de uma beleza pura e algo selvagem. Qualidades que qualquer um dos seus clientes admiraria e pagaria caro para possuir.






Ao final da tarde, a meio de um dos seus percursos para levar água aos irmãos para que a febre baixasse, a ruiva reparou que uma carruagem fechada parara perto da velha mansão, que ficava imediatamente a seguir à grande casa da sua família.


Desde que se conhecia por gente, aquela casa triste permanecia vazia e fechada. Por detrás das heras que trepavam pelo alpendre, da fuligem que beijava as paredes e dos arbustos que passeavam no jardim, Ginny ainda conseguia ver alguma beleza. Aquela casa tinha potencial para ser a mais bela de todas as de Fletcher Hall, mas inesperadamente ninguém parecia desejá-la.


Desviou a curiosidade à medida que trocava as compressas na testa de Charlie. Ele abriu os olhos e ela viu a sua imagem reflectida neles, uma imagem de uma flor cujas pétalas tinham sido parcialmente arrancadas, ainda que um dia pudessem voltar a crescer.


O irmão sorriu, um sorriso triste e feito para a tentar enganar. O mesmo sorriso que a mãe lhe dera antes de partir para o Sudeste, um gesto que disfarçava a sua própria incerteza de que tudo fosse, algum dia, ficar bem.


- Gin, você está linda… – o ruivo acariciou-lhe os cabelos, a mão grande e calejada tremendo. A garota cobriu a mão dele com a sua, dando-lhe um beijo repenicado e pediu para que ele dormisse. Logo traria o jantar: sopa, pão, queijo e leite. Um autêntico banquete.


Passou pelo quarto dos gémeos, que dormiam a sono solto. Sorriu, cobrindo-os e atiçando o lume na braseira. Aqueles dois só paravam quietos e calados quando doentes, já que nem a situação em que viviam lhes quebrava completamente o espírito. Beijou-os no rosto, observando, aliviada, que a infusão que lhes dera fizera efeito rapidamente.


Como estaria Bill? A última vez que o vira fora na noite a seguir à prisão dos seus pais. Ele partira para se juntar novamente à resistência, tal como ela pensara. Algures no Sudeste a guerra decorria, mas a força de Lord Voldemort era tão incontestada que as chamas do conflito ainda não tinham atingido o coração da região. Pelo que ouvira contar, em becos e alas, o pequeno exército que lutava contra o tirano vinha ficando maior, sem dúvida devido à longa privação a que muitos eram sujeitos – especialmente as famílias dos que haviam sido presos na tomada de poder. Um dia, mais cedo ou mais tarde, o conflito estender-se-ia e eles provariam um pouco do seu gosto.


Desceu para a cozinha, saindo pela porta das traseiras para apanhar alguns gravetos que servissem para cozinhar o jantar. Sentiu, mais do que ouviu, a movimentação na casa ao lado.


Olhou por cima do ombro, empilhando os últimos pedaços de lenha, mas concluiu que a cerca que separava as casas era demasiado alta para ter uma visão completa.


Num impulso quase infantil, que ela pensava ter abandonado há já muito tempo atrás, aproximou-se da vedação de madeira e colocou um pé numa reentrância. Num impulso ágil, de menina que ainda era, içou o corpo para cima e apoiou-se completamente nas tábuas divisórias.


A jovem esticou-se, espreitando por cima da cerca, e seguiu os movimentos de um homem, coberto por uma capa escura, que tentava abrir caminho através da neve até à porta de entrada da velha mansão. Não demonstrava muita destreza e, por isso, já devia ter uma certa idade.


Quando o caminho ficou desimpedido, tanto quanto permitiam os flocos de neve que ainda caíam, observou-o fazer um sinal para a carruagem.


Uma figura masculina, envolta por uma capa de viagem, saiu pela portinhola. O capuz não permitia ver o aspecto nem a idade aparente daquele misterioso homem. Pela expressão corporal, Ginny diria que ele avaliava o local.


Pareceu dar-se por satisfeito, porque levou as mãos à cabeça e descobriu o rosto. A garota observou-o de perfil: era ainda jovem, quase tanto quanto ela, mas o seu corpo apresentava um grau de desenvolvimento assinalável. Os cabelos eram negros e as mãos grandes, mas o que mais atraiu a jovem foi o cansaço que ele tinha estampado em cada linha do seu rosto.


Viu-o fechar os olhos e levantar o queixo, como se apreciasse a sensação dos flocos que caíam na sua face. Ele parecia absurdamente livre, experimentando uma plenitude que era impossível alguém sentir com uma coisa tão simples.


Continuava a analisá-lo quando ele se voltou para sorrir ao homem que o acompanhava, depois de deitar um olhar à casa.


Continuava a lê-lo quando conseguir vislumbrar os olhos dele. Verdes. Espantosamente verdes.


E ainda não conseguira descolar o olhar quando os seus olhos encontraram os dele pela primeira vez, provocando-lhe um desequilíbrio e uma queda aparatosa.

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