Hermes
Jorge Weasley suava, o cabelo vermelho e comprido caindo pela testa enquanto mexia o caldeirão sob um fogareiro conjurado no meio do quarto. De quando em quando consultava um livro grosso, de capa verde, que deixara sob a mesinha de cabeceira.
- Anda logo, Jorge! Acho que ela está começando a se recuperar – Fred Weasley estava sentado na cama onde Mia permanecia ainda desmaiada. Segurava uma varinha apontada para ela e murmurava Renervate!.
- Ah, não começa, Fred! Você sabe muito bem que Poções nunca foi meu forte – bufou Jorge, passando as costas da mão pela testa para afastar algumas mechas insistentes. - Nos tempos de Hogwarts, eu sempre preferia dar um jeitinho de matar as aulas do Ranhoso com um caramelo incha-língua ou alguma vomitilha, lembra?
- Ô se eu lembro. Mas eu era ainda mais deprimente em Poções, por isso, mexa logo esse caldeirão. Acho que o feitiço está surtindo efeito na nossa sobrinha – sorrindo, Fred voltou novamente a atenção para Mia e murmurou o encantamento para tentar reanimá-la pela décima vez, se contara corretamente.
- Ei, Fred! E se déssemos uma vomitilha para ela? Talvez o susto a reanime... – Jorge questionou, com um olhar esperançoso.
- Você não pode estar falando sério... Mexa isso aí, Jorge! Olhe, ela está acordando.
Movendo-se com dificuldade na cama, Mia abriu os olhos, que continuavam pesados. Uma fadiga tomou conta do corpo da menina e ela suspirou.
”Droga! Não era um sonho, é tudo verdade! Meus pais continuam desaparecidos e eu ainda estou na casa do tio Fred e do tio Jorge. Mas... mas...”
- O que é isso? – Mia sobressaltou-se ao ver a ripa de madeira na mão de Fred. Este buscou escondê-la atrás das costas mas, com um gesto de Jorge, achou melhor voltá-la, pois a ruiva já tinha visto o “brinquedinho”.
- Isso, Mia – começou Jorge, deixando a Poção para Animar de lado e aproximando-se da cama. – É uma varinha mágica. E aquilo aquecendo no caldeirão é uma Poção. Você a tomará para que diminua um pouco a dor de cabeça e a tontura, pois sabemos que não é nada agradável rodopiar por esse armário sumidouro.
- E é menos agradável ainda ouvir o doido do Oráculo – Fred completou com um olhar acolhedor e um meio sorriso de compreensão.
Então os gêmeos sabiam da existência do Óraculo. Claro! Como não pensara nisso antes? Se aquele armário e os tantos outros objetos que Mia encontrara na sala enigmática eram de seus tios, como ela não descobrira logo que eles conheciam Wyrda? Era tudo tão novo e tão diferente para a ruiva que muitas coisas escapavam de sua compreensão. Levou a mão à testa, apertando a têmpora e franzindo o cenho, enquanto Jorge enchia uma xícara com o líquido borbulhante retirado diretamente do caldeirão.
Ao ver que a dona abrira os olhos, Bichento pulou na cama e começou a ronronar. Fred coçou a cabeça do gato enquanto repousava a varinha na mesa de cabeceira. Depois, ajudou Mia a arrumar os travesseiros para que ela pudesse se sentar e beber a poção, que aceitou de bom grado, buscando nela algum alívio para o mal estar que sentia depois da viagem pelo armário. Sorvendo o líquido devagar e assoprando de quando em quando, Mia encarou ambos os tios, sentados a frente dela, com o olhar mais indagador que pôde produzir:
- Quem é que vai me explicar o que aconteceu comigo? Porque arrancar algo daquele Oráculo maluco é praticamente impossível. Acho que ele prevê somente o futuro e se esquece que, para que ele aconteça, é necessário que se entenda o passado.
- Muito bem pensado, Mia – Fred encarava a sobrinha e continuava acariciando Bichento, que já deitara de barriga para cima, rendido. - Portanto, vamos explicar o que pudermos para você. São coisas muito complexas e algumas fazem parte de planos maiores que você ainda não pode conhecer. Ainda – apressou-se em dizer quando viu o olhar furioso produzido pela ruiva. Logo em seguida, baixou o tom de voz até ficar quase inteligível. – Bom, o fato é: Ronald e Hermione são bruxos. Eu e seu tio Jorge também. Aliás, toda a família Weasley é.
Diante do olhar incrédulo de Mia, os gêmeos Weasley explicaram sobre o mundo bruxo, Voldemort, Harry Potter, a Ordem da Fênix e a Última Batalha.
- ... E quando nós percebemos que Harry tinha desaparecido, grande parte da Ordem já estava dizimada. Os comandantes do exército de aurores deu ordens para que fugíssemos do campo de batalha e aguardássemos o desfecho final. Muitos achavam que Harry Potter, a única esperança do mundo bruxo, havia sucumbido. Poucos sabiam que ele fora levado para Azkaban. Eu e Jorge não sabemos o que aconteceu por lá, mas Hermione e Rony tentaram resgatá-lo e conseguiram retirá-lo de lá.
- O problema – continuou Jorge – foi que os dois estavam muito fracos e eram inexperientes. No momento em que tentaram fazer uma aparatação acompanhada com Harry, ele se perdeu no caminho e nunca mais foi encontrado.
- Desde então, os Renegados vivem como trouxas, proibidos de usar magia e vigiados de perto pela Polícia Negra, com aquele besteirol de Vida Longa ao Lorde e blablablá – finalizou Fred.
Mia deu por si mesma mexendo levemente a caneca com a Poção para Animar, completamente mergulhada nas palavras dos tios. Sua família era toda composta por bruxos. Mas ela... ela não era uma bruxa. Nunca havia feito magias. Mas também, nunca havia tentado, não tinha uma varinha, nunca fora instruída para tal. Havia Hogwarts, uma escola onde os bruxos jovens aprendiam a controlar e utilizar corretamente os dons que a eles pertenciam. Mas Mia fora privada de tudo isso por um tal de Lorde das Trevas que instalara uma ditadura no mundo bruxo e a impedira de conhecer suas próprias origens. E o pior: ele raptara seus pais! Naquele momento, Mia jurou a si mesma que, mesmo que não fosse mágica, daria um jeito de mudar aquela situação. Deu um último gole na poção já fria, sentindo-se bem melhor que quando saíra do armário sumidouro. Só faltava questionar uma coisa mais urgente:
- Como é que vocês dois mantém todo tipo de objetos mágicos nessa casa sem que sejam detectados pela Polícia Negra?
Fred e Jorge olharam um para o outro e sorriram, de um jeito debochado. Os gêmeos perfeitamente idênticos se levantaram da cama, abraçaram um ao outro e exclamaram juntos:
- Mais um trabalho das Gemialidades Weasley!
E Jorge completou:
- Sem mais por hoje, mocinha! Agora, descanse. A Poção para Animar e os feitiços logo deixarão você cem por cento. E poderá ir para suas aulas, afinal, já que está duas semanas atrasada.
Dois dias se passaram e a melhora de Mia era evidente. Vovó Molly recebeu alta do hospital e ambas voltaram a ocupar o apartamento próximo a estação de Kings Cross. A avó da ruiva continuava com falta de memória, mas já se lembrava de quem eram as pessoas de seu convívio e sabia que um de seus filhos havia sido seqüestrado. Os Gêmeos orientaram Mia a não explicar nada do que eles haviam contado para a avó, para que o choque não a prejudicasse ainda mais. Quando chegasse o momento certo, eles seriam capazes de descobrir uma forma de fazê-la recuperar a memória.
Logo que voltou ao apartamento, Mia se lembrou de Daniel. Há muito tempo que não falava com ele. A imagem no espelho da casa dos tios ainda intrigava a menina. Fred havia explicado à sobrinha que aquele era o Espelho de Ojesed. Ao mirar-se nele, as pessoas eram capazes de ver a si mesmas acompanhada daquilo que desejavam do fundo do coração. O homem mais feliz do mundo veria apenas sua própria imagem refletida. Mas Mia viu perfeitamente as duas coisas que mais ansiava na vida: seus pais de volta e...e... Daniel. Mas o rosto refletido pelo espelho estava triste. A ruiva podia jurar que vira até mesmo uma gota de lágrima escorrer pelo semblante. Por que, ao realizar seu maior desejo, Mia não estaria feliz?
Foi sem vontade nenhuma que Mia amanheceu naquele dia, já no meio do mês de agosto, para a volta às aulas. Vestiu uma jeans usada e uma blusa verde de malha para conter o vento fresco da manhã. Arrumou o caderno de capa dura na mochila e jogou duas canetas lá dentro. Saiu sem tomar café da manhã, sob os protestos de vovó Molly, porque definitivamente não sentia a menor vontade de comer. Já na rua, vestiu o capuz da malha e cruzou os braços para espantar o frio. Caminhava a passos largos e firmes, observando sem ver o movimento de carros e pessoas que passavam apressadas rumo a seus afazeres. Seu pensamento ia longe, fixo nos pais, na saudade que sentia deles, no medo de que não estivessem bem, sem saber onde estavam. As idéias passavam pelos últimos acontecimentos como quem percorre um caminho sinuoso e sem saber quando vai chegar ao final. A revolta por ter sido privada de coisas que gostaria de conhecer crescia no peito da menina e ela nem se deu conta de que já estava em frente ao Colégio Joana D´Arc.
Verificou as listas dispostas no pátio e subiu as escadas rumo a sala que indicava a décima série. O local estava cheio de estudantes afoitos, conversando animadamente, afinal, a maior parte deles já estudava junto nos anos anteriores. Mia avistou uma carteira vazia nos fundos da sala, logo à frente de um rapaz de cabeça baixa que parecia dormir. Usava um moletom preto e um par de calças de tecido esportivo. O capuz da blusa cobria inteiramente a cabeça do menino, que deixara a mochila entreaberta esparramada no chão. Mia tomou cuidado ao passar, mas sem querer enroscou o pé em uma das alças e tropeçou. Um estojo de lata pulou da mochila e se abriu, fazendo um enorme barulho e espalhando material pelo corredor.
As sardas de Mia brilharam no rosto tão vermelho quanto os cabelos. Ela se abaixou rapidamente, procurando se esquivar dos olhares, que logo dispersaram e se voltaram novamente para os papos fúteis de começo de ano letivo. Mas um olhar não saiu da direção da menina: o rapaz do moletom levantou a cabeça e encarava Mia, que recolhia os objetos do chão.
- Aqui está – disse a menina, entregando o estojo e levantando os olhos para observar seu colega de turma.
A sensação de reconhecimento foi imediata. Não sabia quando, onde ou sequer se já havia visto aquele garoto, mas sentiu uma empatia imediata com ele. O menino tirou o capuz, mostrando um cabelo espetado com gel, loiro escuro, e fixou os olhos acinzentados no rosto de Mia.
- Não esquenta a cabeça. São só canetas. Elas vão e vêm do meu estojo durante o ano inteiro.
Mia abrira a boca para continuar a conversa, pois sentira que o rapaz fora receptivo. Afinal, talvez não fosse tão difícil assim fazer novos amigos, só para variar um pouco. Mas a menina não foi capaz de dizer nenhuma palavra quando dois olhos muito verdes cruzaram a porta de entrada da classe.
- Ei! Você está acordada? Meu nome é Hermes, e o seu?
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