Costeletas e confissões





Wyrda mandara Mia de volta para a loja de eletrodomésticos utilizando a mesma chave-de-portal. Embora a ruiva tenha insistido em questioná-lo sobre possíveis significados da Profecia, ele se negou a dizer qualquer coisa.

- Para um Oráculo, Wyrda já falou demais sobre o passado. Mia Wyrdfell tem ferramentas suficientes para fazer o que deve ser feito.

- Quer dizer que não vou mais vê-lo? – perguntou a menina, olhando para o controle remoto seguro nas mãos do Oráculo.

- Quando as areias do tempo baixarem e quando se fizer necessário, sim, vais me ver, Wyrdfell. Agora, peço que retornes antes que tua prolongada ausência possa causar transtorno aos teus.

Mia tomou para si o controle remoto oferecido por Wyrda e, no segundo seguinte, girava de volta para o centro de Londres. O vendedor da loja estava parado na mesma posição em que a ruiva o deixara, mas uma rápida olhada no relógio de parede logo acima fez com que ela notasse que já passava das onze da manhã. Por alguma mágica inexplicável de Wyrda, ninguém adentrara na loja enquanto Mia esteve fora. No exato momento em que tocara o controle nas mãos de Mia, o atendente acordara do transe.

- Hã... o que você queria mesmo?

- Nada, não. Obrigada – Mia virou as costas e seguiu em direção a saída, não sem antes notar um breve ar de confusão no vendedor. Mas este logo encolhera os ombros e voltara a trabalhar como se nada tivesse acontecido, achando estranho o fato de que a hora tivesse passado tão rápido.

Perdera as aulas do dia, algo que a teria preocupado em tempos passados. Mas agora Mia sentia que havia coisas mais importantes e mais urgentes clamando por serem conhecidas e desvendadas. Rumou para o apartamento e encontrou vovó Molly ligeiramente adormecida no sofá, diante da televisão ligada num programa vespertino de entrevistas sensacionalistas. Tentou entrar sem fazer barulho, mas a avó abriu os olhos assim que Mia cruzara o meio da sala de ponta de pé. Bichento, que também descansava no sofá, abriu os olhos e miou, pulando para o lado da ruiva e roçando o corpo em suas pernas.

- Ah! Menina... como é mesmo o seu nome? – vovó Molly parecia fazer um esforço descomunal para se lembrar e Mia respondeu logo para tirá-la daquela angústia. – É mesmo! Mia...eu... tem comida no forno para você. E alguém ligou, na verdade foram dois rapazes, mas... eu não consigo me lembrar dos nomes – a avó deixava transparecer o descontentamento por não conseguir guardar as lembranças.

- Ok, vovó – Mia respondeu, de maneira mecânica, e seguiu para o quarto que ocupava com Bichento em seu encalço.

Não precisava ser nenhum Oráculo para adivinhar quem eram os dois rapazes. Resolveu ligar primeiro para Daniel. Ele estava mais próximo caso precisasse de alguma coisa. Mas Mia tinha quase certeza do que ambos queriam saber.

Descobriu que havia algo mais além da preocupação normal com a ausência da menina à aula, justificada por Mia como um pequeno acesso de dores de cabeça. Ao convencer o moreno de que já estava melhor, ele explicou a proposta. O trio tinha um trabalho complexo e difícil sobre História Medieval e Feudos na Europa para entregar na próxima semana. Com as preocupações em relação a seus pais, Mia se esquecera completamente do prazo. Mas Hermes, que tinha um computador avançado com banda larga em casa, achava que poderiam dar conta do dever naquela tarde mesmo, e ainda aproveitar para assistir o DVD de Minority Report: A nova Lei. Era um filme antigo de ficção científica que Hermes adorava, apesar de ser bem delirante, como ele mesmo costumava descrevê-lo. A ruiva combinou de se encontrar com Daniel em meia hora na entrada do prédio, para que ambos pudessem tomar um ônibus até a casa de Hermes, conforme as coordenadas do loiro. Era a primeira vez que ele chamava os amigos para ir até lá. Geralmente as reuniões aconteciam na casa de Mia. Hermes dissera certa vez que o pai trabalhava em casa e não gostava de ser incomodado. Porém naquela tarde havia liberado as visitas. O loiro avisou Daniel e Mia para não almoçarem, pois seus pais estavam esperando para a refeição.

Mia tentou dar um jeito nos cabelos fofos diante do espelho do banheiro. O vento e os constantes rodopios do encontro com O Oráculo prejudicaram ainda mais o amontoado de fios vermelhos e compridos. Vendo que não tinha jeito, resolveu deixar para lá. Trocou o moletom verde-água por uma jaqueta cor-de-rosa e colocou uma outra jeans, pois a que vestira de manhã estava suja de terra nos joelhos. Mirou-se no espelho de corpo inteiro que havia na porta interna do armário do quarto e examinou a própria aparência. Nada mal para quem enfrentava um novo turbilhão de novidades a cada dia nos últimos quatro meses, desde a mudança para Kings Cross. Olhou para as sardas das bochechas, que combinavam tão bem com o cabelo ruivo e pensou se Daniel a acharia bonita. Balançou a cabeça em seguida, como que para afastar o pensamento, respirou fundo e, tomando a mochila para si, saiu correndo em direção a porta. Com um grito avisou vovó Molly que estava saindo e não recebeu nenhuma objeção.

Chamou o elevador e desceu para o térreo, pensativa. Daniel nunca os chamara para visitar o apartamento dele. O mais próximo que ela chegara das paredes que abrigavam o amigo fora a porta de entrada, quando ela viera pedir ajuda para salvar vovó Molly. E aquele estranho do jardim? Mia ainda não engolira direito a história, mas o acordo de não comentar sobre o assunto continuava. Nem mesmo Hermes sabia do ocorrido, e os três dividiam absolutamente tudo desde que se conheceram. Menos, é claro, o segredo familiar de Daniel.

Lá estava ele, de moletom preto e capuz cobrindo a cabeça, as mãos no bolso da jeans, conversando animado com o porteiro que cobria o horário de almoço de um companheiro. Ao avistar Mia, sorriu daquela maneira que só ele sabia fazer e que a deixava com os joelhos bambos mesmo depois de tanto tempo de amizade. Os dois seguiram o caminho indicado por Hermes. Conversavam sobre trivialidades, bobeiras de amigos, coisas de escola, filmes, outros colegas. Quando estava com Daniel, o tempo passava sem que Mia percebesse. Tudo era agradável, ele era um ótimo companheiro para o que desse e viesse. Mas uma dúvida sempre pairava na cabeça da menina, como uma pequena chama de vela que é constantemente apagada por alguém com um fôlego fraco: ela sempre volta a reacender. E a idéia estava sempre ali, pequena, tímida, porém real.

”Será que é apenas como um amigo que eu o enxergo? E o espelho? O que significa aquele espelho, Daniel ao meu lado, meus pais e o olhar triste?”

- Vem, Mia, vamos descer no próximo ponto – Daniel agarrara a mão da amiga e a segurava de maneira firme, porém delicada, abrindo caminho entre os outros passageiros do ônibus para alcançar a porta de saída.

O coração de Mia parava quando Daniel a tocava. Uma estranha emoção tomava conta de todos os sentidos, e era como se ela pudesse ouvir, olhar, sentir, saborear o moreno com audição, visão, tato e paladar. Mia sentia um fluxo de energia anormal quando mantinha qualquer contato mais íntimo com Daniel, mesmo que fosse um simples roçar de pele.

A casa de Hermes era um tanto afastada do centro de Londres. Era uma construção modesta, mas ampla, e Mia ficou deliciada visualizar o jardim da frente. Na ponta dos pés, agarrou a grade do portão e ficou observando as folhas alaranjadas que caíam das árvores, evidenciando a estação do ano. As plantas estavam mais secas, mas a ruiva sabia que depois de quase morrerem durante o inverno, elas renasceriam das cinzas quando chegasse a primavera. Era um ciclo sem fim que as tornava, com o passar do tempo, cada vez mais belas. Os olhos de Mia se encheram de lágrimas com a recordação da mãe usando um avental marrom sujo de terra e várias ferramentas para afofar o solo do jardim que ela cultivara com tanto carinho. Nesse meio tempo, Daniel tocara a campainha da casa e permanecera em silêncio, prostrado ao lado da amiga, talvez à espera de que ela dissesse algo sobre o sentimento que a invadira com a visão da casa de Hermes. A ruiva virou o rosto para o amigo e uma pequena lágrima fujona escapou ligeira pela bochecha, vindo se alojar no dedo indicador de Daniel, que ele passava pelo rosto da menina.

- Acho que você anda chorando demais, Mia – Hermes vinha caminhando no meio do pequeno jardim, um sorriso zombeteiro no rosto, girando as chaves pelos dedos da mão esquerda. – E também acho que aprendeu bem as lições do seu melhor e mais esperto amigo aqui e resolveu cabular umas aulas de vez em quando.

Era impossível não voltar a sorrir com as colocações pouco humildes de Hermes. Ele sabia ser orgulhoso de si mesmo quando queria. E isso significava quase sempre. Para muitos, Hermes era um menino mesquinho e arrogante à primeira vista. Para Daniel e Mia, Hermes era como um toque de leviandade na crescente razão exigida pela difícil missão de se tornar um adulto.

O loiro abriu o portão com uma fisionomia séria, fazendo reverências como se os dois amigos fossem convidados ilustres de uma importante reunião de gente rica. Pediu perdão a Mia por não se arrastar no chão para que ela pisasse, mas alegou que vestia sua melhor roupa e não poderia sujá-la. Mentira evidente, já que Hermes trajava um abrigo de ginástica verde-oliva que Mia já vira inúmeras vezes.

- Você tem um jardim maravilhoso – a ruiva não podia deixar de comentar antes que entrassem na casa. – Faz com que eu me lembre da minha antiga casa e da minha mãe, que gostava muito de cultivar as flores que tínhamos por lá.

- Agora entendi o porquê da lágrima fugitiva – constatou Daniel, encarando a amiga por um tempo.

Hermes interrompeu a troca de olhares e avisou que os pais já estavam à mesa, só esperando por eles para que pudessem servir o almoço. O loiro já tinha feito um planejamento meticuloso da tarde, que incluía uma hora para o término do trabalho e pelo menos quatro para a sessão de cinema e posterior discussão filosófica, de acordo com as palavras do próprio. Sorrindo deliciados com a total falta de preocupação de Hermes com os trabalhos escolares, Mia e Daniel entraram na cozinha logo atrás do loiro, que já se dirigia para a mãe.

- Mãe, estes são Daniel e Mia, meus amigos do Joana D´Arc dos quais eu tanto falo. A Mia é a estabanada que uma vez...

O barulho de louça espatifada interrompera a cordial apresentação. A mãe de Hermes deixara cair a tigela de vidro onde havia parte das costeletas de porco fritas que seriam servidas no almoço. Alguns pedaços da carne voaram pela cozinha, um deles caindo nos tênis de Daniel e engordurando a lona branca. O barulho provocado pelo vidro quebrado chamou a atenção do pai de Hermes, que apareceu pela porta da cozinha, para a qual o grupo de amigos estava de costas. Encarava a esposa com uma expressão intrigada, enquanto ela levara involuntariamente a mão à boca em total estado de incredulidade.

- Hermes, moleque, o que está acontecendo aqui, posso saber? – o pai caminhara decidido em direção ao filho, o tom de voz um tanto alterado. Encarou a esposa de frente. – O que foi que aconteceu para você deixar cair a tigela de comida? Viu algum fantasma e não...
O pai de Hermes interrompera o falatório e detivera os olhos nos amigos do filho, passando por Mia e parando em Daniel. Constrangidos, ambos se olharam e levantaram brevemente os ombros como quem quer dizer ”perdemos alguma coisa?".

- Ei! Que falta de educação é essa, pai?! E mãe também! – Hermes parecia indignado com o comportamento dos pais diante de duas pessoas que ele considerava como irmãos.

Com um aspecto vidrado, a mãe do loiro se aproximou de Daniel. Colocou a mão na testa do moreno, afastando os poucos cabelos negros que a cobriam. O primeiro ímpeto de Daniel foi dar um passo para trás e fugir daquela estranha atitude adotada pela mãe do amigo. O pai de Hermes olhava para ele, parecendo absolutamente contrariado, e questionou-o:

- Não pode ser... qual é o seu nome, rapaz?

- Eu já disse que o nome dele é Daniel! – Hermes entrara no meio, impedindo que a mãe continuasse a tocar os cabelos do amigo como se procurasse em sua testa algo que deveria estar lá, mas não estava. Encarou os olhos do pai, que ainda era pouco mais alto que o filho.

- Daniel do quê? – perguntara a mulher, encolhendo o braço e segurando a vontade de continuar sua busca.

- Daniel Barish – dessa vez o moreno respondeu, a irritação já destoando na voz.

- Você... não é filho...dele? – o pai de Hermes quem falara dessa vez, de maneira ríspida e sem se importar com o olhar avassalador do filho.

- Filho de quem, oras? Sou filho de Joel e Helena Barish! Algum problema para vocês? – Daniel perdera a paciência ao revelar o nome de seus pais e ao tocar num assunto tão delicado quanto sua família, que ele vivia tentando evitar.

Com uma expressão de quem não levara a informação a sério e não podia ser convencida tão fácil, a mãe de Hermes resolveu então se voltar para Mia:

- Esses cabelos de fogo me lembram tanto de algumas pessoas. Eu as procurei por anos a fio sem encontrar. Julgava tê-las perdido para sempre. Qual o seu nome, minha querida?

Hermes desistira de protestar. Todos os olhares da cozinha convergiam para Mia. Sentiu as sardas acenderem e a vergonha tomar conta do rosto. Quando conseguiu reunir forças para articular as palavras, pronunciou-as pausadamente como se pudessem causar um terremoto se fossem ditas de outra forma.
- Sou Mia Granger Weasley. Filha de Ronald Billius Weasley e Hermione Granger Weasley.

O terremoto começara: a mãe de Hermes desabara na cadeira, enquanto o pai soltara um assobio. O loiro levou a mão à cabeça e gritou, completamente esquecido das boas maneiras de um bom anfitrião:

- Será que dá para alguém aqui me explicar o que diabos está acontecendo?

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