Parte I





Parte I

A porta se abre.

A mensagem vem rápida e cruel. Você não pertence a este lugar.

É luxo e riqueza que ela sustenta. Você prefere ignorar, pensar em outras coisas, e nessa fuga sua mente se lembra de quem mora nesta mansão.

Você sabe quem pertence a este lugar.

O criado te leva até a sala de visitas. Você tenta, mas não há como não reparar. O lustre de cristais se ergue acima de sua cabeça, imponente.

O criado sai, te deixa sozinho. Você toma o cuidado de ficar de costas para a entrada.

Seus olhos percorrem discretamente o recinto, repara que a lareira não impede apenas o frio de entrar, mas também qualquer resquício do mundo exterior. Você começa a se arrepender por ter parado ali.

Porque você não pertence a este lugar.

Passos leves, o farfalhar do tecido se arrasta no chão. Você sabia que ela estava ali, mas só agora percebe o quão perto.

Os passos param, e ela está parada na porta, e ela não esperava te ver. Você então se vira, seus olhos se encontram.

E você se força a lembrar quem pertence e quem não pertence a este lugar.

—*—

A poltrona é confortável, mas não é aconchegante, e tudo ali passa a sensação de impessoalidade. Você não sabe se fica triste ou feliz por sua estada ser tão breve.

Ela está a sua frente, ouvindo o que você diz com atenção. Você está contando o porquê da sua parada ali, se esforçando para omitir detalhes.

Ela percebe, e talvez é o que a faz perguntar sobre o marido. Você não quer responder, não porque ela não deva saber sobre esse tipo de coisa, mas porque sabe que a resposta pioraria a expressão apreensiva que ela está tentando esconder.

A janela é a alternativa para não encará-la, e ainda está nevando lá fora, trazendo lembranças de invernos não tão sombrios como este. Você continua olhando, e olharia por horas se pudesse.

Mas ela pergunta de novo, com uma voz que não te permite escapatórias. Você então diz, baixo como quem fala para si mesmo, e mesmo assim ela ouve.

Ela não fala mais nada, palavras não são necessárias, pois vocês dois sabem o que aquilo quer dizer. Você daria tudo para não ver a desilusão estampada no rosto dela, daria tudo para dizer que ficará tudo bem e não estar mentindo.

Há agora o silêncio, que infelizmente significa mais do que deveria significar. Você não sabe o que fazer, e isto te preocupa, mas você continua como quem não se importa, com o que ela sentirá se você não se importar.

Agora é uma criada que chega, e fala com ela, e rompe o silêncio. Você a vê se levantar e voltar a ser a dona da mansão, você a vê demonstrando que sobre alguma coisa ela tem poder, e ela sai e te deixa sozinho com a criada e você mais uma vez está sozinho.

—*—

O quarto é neutro, propício para passar a noite, e ele te deixa acuado. Você já arrumou as poucas coisas que trousse consigo, e você já está a algum tempo observando a neve cair lá fora, como se fosse uma paisagem natalina, e você ri do paradoxo mesmo sem ver graça nele.

Batem na porta, te tiram do seu devaneio e mesmo antes de vê-lo você já odeia o criado que anuncia o jantar. Você então desce as escadas para a sala de jantar, e ao chegar lá ela já está a sua espera, do jeito que você esperou que as coisas fossem por tanto tempo.

Há o barulho dos talheres e você está deslocado e não gostaria de se sentir assim pelo menos não perto dela. Você repara em outras coisas e percebe em como ela está comendo pouco, menos ainda do que antes, e se pergunta qual seria a causa daquilo, mesmo sabendo que pode não ser nada demais.

Ela se levanta. Você a acompanha e acaba voltando para a mesma sala de horas atrás.

Ela dispensa toda a criadagem, e se senta no peitoral de uma das enormes janelas. Você está nervoso por estar sozinho com ela, mas esquece disso ao observá-la.

Como você previra, a paisagem natalina transformara-se em tempestade, impetuosa, que parecia instalar-se também nos olhos dela. Você agradece pelo menos por ter uma confirmação para a desculpa que dera para ter que passar a noite ali.

Há o tempo que mais parece uma casualidade social, regado de copos e comentários banais sobre tempos passados. Você não quer relembrá-los, mas não protesta, e é por isso que a noite tomaria os rumos que tomou.

Ela fala então, como se não falasse por muito tempo, e realmente não falava. Você a ouve, ouve sobre seus problemas, ouve sobre seus medos, sobre suas tristezas, e ela parece não saber o efeito que aquilo tem sobre você.

Uma pausa, ela respira, te encara e diz estar grávida. Você não sabe como reagir.

Ela não espera uma reação, mas volta a olhar pela janela. Você então se aproxima, toma a mão dela, pequena e fria entre as suas, faz com que ela se levante e fique de frente a você.

Ela se aninha em seus braços, deixando-se ser a menina frágil que ela tanto tentara esconder. Você então se esforça para continuar disfarçando os seus sentimentos, e quando não agüenta mais, deixa bem claro na sua mente que é só por esta noite.

Porque era sempre assim. Você sempre guardava o que sentia até não conseguir mais controlar, e quando não resistia mais, fazia algo digno do arrependimento posterior.

A marca negra queimava em seu braço como lembrança disso. Você se cansa de tudo, até do maldito arrependimento.

Ela ergue o rosto de encontro o seu. Você se perde nos olhos azuis, você deixa o que resta da sua sanidade lá, se é que lhe resta alguma.

Mas ela para no meio do caminho, desgruda o corpo do seu, diz que não trairia Lucius. Você diz que também não.

Nos segundos que se seguem você não sabe de mais nada, e nem deseja saber. Você culpa a bebida, as confissões, a guerra, os medos, seus atos falsamente heróicos, a criança que ainda está por vir, o homem que a gerou, a mulher que a carrega, e principalmente você se culpa por se sentir tão impotente.

—*—

A casa aparenta ditar uma nova regra agora, que é esquecer. Você bem que gostaria de não quebrá-la, mas tão logo é de manhã e ela já está ali de novo, visivelmente pior que no dia anterior.

Sem mais palavras, sem mais nada além do necessário. Você não se demora ao sair dali, ao seguir viagem.

Mas ainda há a memória da idéia inicial, que ainda está a atormentá-lo. Você sabia dos riscos que estava tomando, estava plenamente consciente deles.

E agora já não havia como voltar atrás, assim sempre fora. Você se despede, se desculpa silenciosamente, promete.

Suas convicções estão para trás, junto com suas ditas prioridades. Você só pensa em uma coisa, e deposita nela a razão de continuar a lutar.

Um instante antes de aparatar, você pode jurar que uma das rajadas de vento sussurra, quase inaudível, duas palavras em seus ouvidos.

Você não olha para trás, mas sorri discretamente.

Sim, eu protegerei.

—*—

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