O VERÃO DE 1991
Com a casa silenciosa, Harry desceu até a cozinha, serviu-se de um grande copo de leite da geladeira e subiu para o quarto novamente. Ele não tinha a menor idéia onde aqueles manuscritos iam chegar, mas mesmo assim, tinha certeza de que não ia conseguir parar de ler tudo aquilo enquanto não acabasse a última página. Por isso, sentou-se confortavelmente na cama, tirou do esconderijo os sapos de chocolates e alguns cookies, colocou o copo de leite em segurança sobre a mesinha e apanhou de novo o primeiro volume, abrindo-o no ponto em que tinha parado. A partir daquela página, o texto parecia diferente: estava cheio de anotações posteriores, correções e observações nas margens e no rodapé. Aquilo tudo estava ficando cada vez mais interessante e curioso...
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[1997] Comecei a reler e organizar os meus escritos, antes do início do seu sexto ano letivo, para torná-lo mais compreensível e útil.
A minha percepção sobre alguns fatos e pessoas pode ter mudado, desde quando comecei a escrever esses manuscritos, mas isso não é relevante.
Só adicionei observações onde achei importante para o seu entendimento.
Aqui estão todas as informações que eu obtive ao longo dos anos, tudo o que Dumbledore compartilhou comigo, especialmente desde que você veio para Hogwarts e o retorno do Lorde das Trevas se tornou iminente. Aqui você vai encontrar, também, mais coisas sobre o passado que talvez já seja hora de você saber.
Sei que Dumbledore tem lhe ensinado muito. Mas acho que, depois da morte dele, você e aqueles seus amigos não conseguirão seguir em frente sem as informações que estão aqui.
Portanto, pelo menos por uma vez na sua vida, preste muita atenção nas minhas palavras.
~ 17 de junho de 1991.
Odeio o verão. Cada vez mais, eu odeio o verão.
Eu sempre detestei o calor. Calor me fazia lembrar das férias de verão, a inevitável volta para casa. As brigas dos meus pais, as agressões, a violência, os insultos, a humilhação. Calor significava cabelos e pele oleosos, ainda mais do que de costume. O suor, o incômodo.
Quando voltei para Hogwarts como professor, havia uma espécie de vantagem nessa estação detestável: as férias de verão no Castelo. Agora eu podia passar os verões na escola, tranquilamente. Um longo período de paz. Distância dos alunos e das aulas. Sossego.
Até este ano.
OK, tinha sido um ótimo banquete. Boa comida, as cores da Sonserina decorando o Salão. A Sonserina tinha conseguido vencer o torneio de Quadribol, além do campeonato das Casas, mais uma vez. E isso sempre me dá um prazer especial. E as férias iam começar.
Mas aí, logo depois do banquete, Dumbledore se aproximou de mim e disse, em um tom casual:
- Severo, é este ano. Vou mandar uma coruja para o menino, agora no verão. Ele vem para Hogwarts, logo depois das férias...
Nós dois sabíamos muito bem de qual menino ele estava falando. Era óbvio. E, afinal, ele só estava me lembrando de um fato inevitável, previsível. A passagem do tempo.
E eu percebi que a perspectiva das férias não me parecia tão vantajosa assim. Todo esse tempo de calma e sossego no Castelo ia ser pouco.
Eu entendo Dumbledore. Claro, era melhor dizer alguma coisa agora. Ele estava me contando agora, lembrando de um jeito sutil, para que eu ficasse preparado para o novo ano letivo. Sem susto, sem drama, sem comentários.
- É... Está na época. – foi só o que eu consegui responder.
O que mais eu podia falar?
E naquela hora, eu estava concentrado em uma coisa mais urgente. Como conseguir respirar, por exemplo.
Ouvir aquilo foi como um soco, uma azaração atingindo a boca do estômago.
De algum lugar, começaram a escapar lembranças, emoções... que eu tinha a certeza de já ter superado. Pelo menos um pouco. Mas ficou óbvio que eu estava enganado. Era mesmo estranho, porque eu até reconheci a sensação, a dor. Aquele tipo estranho de dor era física, como se uma parte do meu corpo tivesse sido arrancada à força sem anestesia. Como se eu tivesse começado a sangrar, com alguma ferida aberta e exposta.
Inacreditável. Foi quase como se tudo estivesse acontecendo de novo, ali, na minha frente. E a dor... Aquela mesma dor, de tantos anos atrás! Igualzinha! Como se a Lílian tivesse acabado de morrer bem na minha frente outra vez.
Na verdade, foi isso, a minha reação e não a notícia da vinda do garoto em si, o que me deixou chocado.
Eu nunca pensei que só o anúncio de uma coisa tão previsível fosse me deixar desse jeito. Fosse capaz de causar tanto estrago... Que a simples notícia fosse capaz de reabrir tantas feridas.
Aquela reação era ridícula. Sem nem ter visto o garoto ainda!
Quer dizer, é lógico, eu sempre soube que não ia ser fácil.
Depois do fim da Guerra, eu decidi continuar em Hogwarts. Não que eu tivesse grandes opções, ou algum outro lugar para ir, na verdade. Mesmo se eu quisesse. Eu estava marcado como ex-Comensal. Fui considerado inocente de todas as acusações contra mim pelo Ministério, é claro. Mas ninguém confiava em mim. Todos me viam como um representante daquilo que mais detestavam e temiam: as Artes das Trevas e os Comensais da Morte. Ficar em Hogwarts era, se não a única, a minha melhor escolha. Mesmo se houvesse alguma alternativa. Ao me manter na escola, o professor Dumbledore me garantiu a liberdade, um emprego e segurança. Mais do que isso, respeitabilidade. Ao continuar como professor da escola, Chefe de uma das Casas, eu me tornava um respeitável membro da sociedade bruxa.
E, de qualquer maneira, minhas habilitações para o trabalho eram meio específicas, e não parecia haver um grande mercado de trabalho para espião, ou agente duplo, em nenhum outro lugar por aí.
Eu até que tinha sorte, dentro das possibilidades. Dumbledore confiava em mim, apesar do meu passado. Um passado que ele conhecia melhor do que ninguém. E eu confiava nele. Estava seguro, aquecido e bem alimentado, e era grato por isso.
O problema é que eu sabia, desde o início, que ficar significava ter que me encontrar com o menino um dia. Dar aulas para ele.
Mas, pelo menos, eu sabia que teria um tempo para me preparar para isso. Dez anos.
Eu gostaria de saber quem foi o estúpido que inventou o clichê de que o tempo cura tudo.
Afinal, foram dez anos! Dez malditos anos! Dez anos vivendo numa espécie de hibernação, tentando me anestesiar, enterrando lembranças e emoções. Dia após dia. Eu estava decidido a fazer tudo o que fosse possível. Fortaleci o meu autocontrole. Passei a praticar meditação. Fiquei ainda melhor em Oclumência. Eu me isolei ainda mais das pessoas. Nunca fui muito do tipo sociável, mesmo. Sempre fui bom em afastar as pessoas. Fiquei cada vez melhor. Vida pessoal? Eu sempre escolhi não ter vida pessoal. Com o pouco que saiu do meu controle, eu já tive a minha cota de emoções e sentimentos por toda uma vida.
Encontrei satisfação fazendo isso por dez anos. Por uma década eu vivi num tipo de hibernação, intocado e intocável, cada ano igual ao anterior. E estava conseguindo me sentir bem assim. Achei até que já tivesse superado.
Mas, no fundo, eu sabia. Eu fiz de tudo para não pensar no assunto, mas eu sabia. Sempre soube que o tempo ia passar e o garoto viria estudar em Hogwarts. E eu seria obrigado a me encontrar com ele aqui. Conviver, dar aulas para ele.
Harry Potter. O filho de Lílian. Filho dela com outro homem, e não comigo.
Ah, não, não só isso... Pior, muito pior! Ainda por cima, tinha que ser filho do homem que eu mais odiei, sempre. Filho de Tiago Potter. O riquinho, mimado, paparicado... O craque popular de Quadribol da escola... Exibido, arrogante, provocador... falso.
Mas era dele que Lílian gostava. Foi com ele que se casou. Outro homem. Mesmo se eu já não tivesse outros motivos, só isso bastaria para que eu o odiasse por toda a minha vida!
Ah, aquele idiota! Ele não a merecia! Não dava valor ao que tinha! Ele não a protegeu. A arrogância dele matou os dois e me deixou com o peso desse maldito menino para proteger. Proteger esse menino, justo eu?
Pois é. Foi só escutar aquela primeira frase de Dumbledore que tudo isso passou pela minha cabeça. Todas aquelas emoções contraditórias. Lembranças demais. Raiva. Inveja. Culpa. Ciúme. Dor. Saudade. Todo aquele amor desesperado que eu sentia por ela, que me consumiu. E aquela absurda promessa de proteger o menino, que eu tinha feito por causa desse amor.
Eu sei, é ridículo. É patético. Vergonhoso. Eu, que não sou exatamente um exemplo de compaixão, nem de tolerância com fraquezas, fiquei com pena de mim mesmo.
Na mesma hora eu tive certeza de que não ia coseguir encarar ninguém me sentindo assim. Mesmo com Oclumência. Não dá. Eu tinha que sair de lá. Tinha que me recuperar, minimamente. Por isso, pela primeira vez em todos esses anos, eu escolhi voltar para Spinner’s End no verão. Irônico, não é? Voltar, depois de tanto tempo. A casa estava vazia, agora que meus pais tinham morrido. Não sei por que nunca a vendi. De qualquer modo, ninguém nunca se interessou por ela. Agora, parece perfeita. A decadência, a feiúra, o abandono, tudo combina com o meu estado de espírito.
Ontem recebi uma coruja dos Malfoy me convidando para a tradicional festa do Solstício de Verão na Mansão. Não é uma ironia eu ter comigo um convite, absurdamente indesejado, enquanto a aristocracia bruxa disputa um desses, praticamente a tapa?
Não, eu não quero sair de casa.
É verão, eu odeio o verão!
~ 30 de junho de 1991.
A minha casa parece ainda mais lúgubre do que eu me lembrava. Talvez por causa da escuridão, do ruído do vento lá fora.
Tenho mantido as cortinas fechadas. Aqui dentro, tudo sempre escuro. Eu fico aqui, sentado na sala, na antiga poltrona que foi do meu pai, mergulhado numa espécie de letargia profunda.
No início, eu não pretendia beber. Não muito, pelo menos. Mas aí, eu pensei: por que não? Eu nunca bebo. Nunca me permito nenhum tipo de fraqueza. Nem essa, nem qualquer outra. Mas achei que, dessa vez, podia me permitir esse luxo. Podia me afogar em autopiedade, pelo menos uma vez na vida. E daí?
A verdade é que foi impossível não me lembrar daquela mulher, com toda a dor que isso me trazia. Eu precisava pensar em alguma outra coisa. Em uma boa dose de uísque de fogo, por exemplo. Aí, dei um gole no uísque. Mais um. Os dois primeiros tinham descido com certa dificuldade, mas depois, foi puro veludo dourado. Até que o uísque de fogo acabou.
Liquidei com o estoque de uísque, passei para o vinho dos elfos, sem a menor cerimônia. Quem sabe o vinho faria o que o uísque não tinha conseguido?
Primeiro, eu queria deixar o vinho afogar a minha tristeza, me anestesiar. Mas depois, decidi que, já que eu tinha começado a lembrar, podia deixar o vinho me levar, embarcar de vez nas minhas lembranças.
Nunca tinha bebido tanto, daquele jeito.
Mulheres são uma ilusão, mulheres são uma ilusão, mulheres são uma ilusão.
A frase ficava reverberando na minha cabeça. Não sobrava muito mais nada que fizesse sentido no meu cérebro que, graças ao álcool, parecia ter sido devastado por um tufão.
Achar que a bebida ia deixar as lembranças mais fáceis era outra ilusão, é claro. Eu devia saber.
Tudo o que eu consegui foi deixar o vinho alimentar minha tristeza, enfraquecer meu autocontrole e mergulhar de uma vez nas memórias, no horror, na tristeza.
Ou então, pode ser que eu ainda não bebi o bastante.
~ 29 de julho de 1991.
Nem tinha percebido o lixo vergonhoso em que eu tinha me transformado.
Narcisa esteve aqui ontem. Estranho? Na verdade, “estranho” é uma palavra suave demais para descrever o que aconteceu.
Eu sei que estava bebendo muito, desde que cheguei. Depois de um tempo, a realidade não passava de um borrão confuso e impreciso. Não tinha parado de beber por tempo suficiente para ter ressaca, por exemplo. Passei a maior parte desses dias dormindo um sono leve e nervoso. Nauseado, acho que acabei desmaiando algumas vezes.
Assim, eu me levantei ontem, em algum momento, sem saber se era dia ou noite lá fora. Atordoado, com a intenção de dar uma lavada no rosto, quem sabe até tomar um banho. Mal tive tempo de me enxugar, quando ouvi alguém batendo na porta. Depois de um tempo e de alguma insistência, suficiente para me convencer de que não era uma alucinação, fui atender.
Era ela. Narcisa Black Malfoy. Estava lá, parada na frente da minha porta. Tinha abaixado o capuz da capa o suficiente para se identificar. Estava tão pálida que parecia refulgir na escuridão. A cabeleira loura descendo pelas costas, seus olhos azuis muito claros, enormes.
- Severo – ela sussurrou. – Posso falar com você?
Eu a deixei entrar, surpreso e intrigado. E fiquei parado, sem ação, enquanto ela caminhava até o centro da sala, olhando em volta, como se tentasse se localizar. Ah... Minhas surpresas estavam só começando.
- Desculpe incomodar, Severo... Vindo aqui, sem avisar... Mas eu precisava falar com você... Você não foi à festa do Solstício, então eu...
Ela estava esquisitíssima. Falava assim, com a respiração entrecortada, meio aos soluços.
- Eu... Não quero atrapalhar. Você... eu espero que você não tenha... Quero dizer... você tem algum compromisso?
Eu não tinha compromisso algum, claro. A não ser que se queira chamar de compromisso ficar ali, sentado em casa, enchendo a cara e sentindo saudades de uma mulher impossível que não se consegue esquecer. E morta, ainda por cima.
Mas comecei a ficar alarmado ao desconfiar das possíveis intenções da visita. Alguma coisa no olhar, no tom de voz, na caminhada sensual.
Comecei a pensar rápido numa desculpa, caso Narcisa estivesse mesmo querendo levar em frente a idéia idiota de seduzir um farrapo humano. A simples suspeita já parecia um absurdo.
Mas aí, ela tirou a capa. Na verdade, deixou-a cair no chão, de um jeito displicente. E ela não vestia nada além da capa. Deu um passo à frente, e ficou me encarando, num misto de desafio e entrega.
Não era mais uma suspeita, agora. Era uma verdade absurda. Absurda e assustadora.
Veja bem, não é que ela não seja desejável. Muito pelo contrário. E eu sou feito da maioria dos ingredientes humanos do sexo masculino.
Mas eu não me iludia, nem por um minuto, imaginando que a bela Narcisa Malfoy, a bela princesa de sangue puro, estava interessada em mim, na minha beleza extraordinária. Ou meu charme irresistível. Ou a minha personalidade cativante. Ou, quem sabe, na minha fortuna e meus poderes incalculáveis. Mesmo prejudicado pelo álcool e pela surpresa, meu cérebro ainda estava funcionando. Um mínimo, pelo menos.
Aquilo era encrenca, com certeza.
Sem contar a tremenda complicação dela ser casada, com o homem de quem eu fingia ser grande amigo. Era uma encrenca, sob todos os aspectos.
Claro que, mesmo enquanto pensava em tudo isso, eu sabia que não seria rápido o suficiente para me esquivar. Ainda mais depois do tanto que eu havia bebido. E, tenho que admitir, nada impede uma mulher decidida de conseguir o que quer.
Ah, quem eu estou tentando enganar? Eu seria um grande mentiroso se não reconhecesse que ela mexia comigo, desde quando a conheci. Uma mulher belíssima se oferecendo, assim, não é o tipo de coisa que acontece com freqüência na vida de alguém como eu.
Eu não tinha nenhuma chance de escapar. Nem se eu quisesse.
Eu poderia tentar relatar aqui como se sucederam os fatos até que se consumou nossa relação. Todo aquele ritual que qualquer ser humano adulto conhece e que, apesar de uma ou outra variação, se constitui sempre da mesma coisa. Gostaria de poder narrar tudo como aconteceu, mas meu envolvimento ativo e intenso no processo me impede de descrevê-lo em minúcias.
Digamos que eu me lembro muito bem do seu perfume, levemente floral, sofisticado, exótico. Do seu corpo quente, colado ao meu, convidativo. E da minha surpresa, a maior de todas as surpresas: Narcisa é uma Metamorfomaga!
Pensando bem... Ou a minha maior surpresa foi descobrir que ela sabia do que eu sentia pela Lílian?
Foi um choque, ao mesmo tempo muito excitante e embaraçoso.
O que posso afirmar com certeza é que, depois que todo o meu ímpeto se esgotou, me invadiu um desejo enorme de que ela fosse embora dali. Um desejo cheio de culpa, uma culpa mal focalizada.
Aquilo tinha acabado de vez comigo. Não que não tivesse sido bom. Mas era estranho e confuso. Por que o sexo tinha se tornado tão doloroso e frustrante para mim? E, o que é pior, mesmo me sentindo assim, como eu me deixei levar? Se houvesse um mastro por perto, eu me amarraria nele.
Não gosto de me prolongar em narrações de intimidades.
Eu sabia que nada havia mudado. Eu vivia inadaptado ao mundo. Minha vida toda era uma mentira. Meu único amor tinha sido uma mulher que amava outro e agora estava morta. Morta por minha causa... E, depois de tanto tempo, quando eu finalmente consigo algum sexo, tinha que ser com uma mulher casada, alguém que não gosta de mim, nem eu dela. Mas, o que é pior, alguém que se fazia passar, na hora H, pela outra, a morta.
Seria hilário, se não fosse tão confuso e deprimente.
Parece ainda pior conforme eu escrevo. Mas o que posso dizer foi que, apesar de tudo, havia um lado bom. Além do sexo, propriamente dito, quero dizer. Porque na manhã de hoje tivemos uma conversa bem interessante.
Eu tinha acabado de acordar e resolvido tomar um banho rápido. Quando voltei ao quarto, Narcisa já estava acordada, vestida, quase pronta para sair.
Confesso que fiquei aliviado. A vida de dissimulação é muito mais fácil quando há uma distância, que me permite usar ironia, sarcasmo. Não tenho muito jeito para explicações, despedidas, esse tipo de coisa.
- Ah, Severo... Bom dia! Tenho que ir ... Lucius deve voltar hoje à tarde, e combinamos de ir juntos amanhã ao Beco Diagonal, comprar o material para Draco.
Ela me encarava com uma naturalidade desconcertante. Sorrindo, sem nenhuma malícia, como se estivéssemos nos despedindo depois de um jantar na Mansão. Acho que eu resmunguei alguma coisa em resposta, antes que ela continuasse.
– Sabe que usei o fato de você ser o professor de Poções, e Chefe da Sonserina, como argumento para convencer Lucius a deixar que Draco fosse estudar em Hogwarts? Lucius queria mandá-lo para Durmstrang!! Durmstrang, dá pra imaginar?? Com toda a tradição dos Black em Hogwarts... E como se eu fosse suportar... o meu filho... meu bebê... tão longe!
- Como é?
- Severo! – ela revirou os olhos, como se eu tivesse alguma deficiência mental. - Draco fez onze anos... Meu menino vai para Hogwarts neste outono!
Uma nova onda de lembranças me atingiu. Claro, como eu podia esquecer do nascimento do garoto dos Malfoy, se eu mesmo tinha participado de tudo?
Narcisa deu um sorriso sedutor ao continuar:
- Eu disse ao Lucius que iria lembrar você disso pessoalmente. Pedir para que tomasse bem conta do nosso filho...
Surreal. Acho que a minha reação foi meio óbvia, porque ela logo caiu na gargalhada.
- Severo! Eu estava brincando, homem!! É claro que não foi bem assim... É claro que Lucius não sabe que eu estou aqui! Nem imagina... E não pretendo que saiba nunca, de nada!
- Tudo bem... eu acho.
- Não que ele se importe...
A voz dela soou mais baixa, num tom que parecia... tristeza? Eu segurei seu braço, fazendo com que ela me encarasse.
- Narcisa... Eu tenho que perguntar, antes que você vá embora: por quê? E... por que... eu?
Ela enfrentou o meu olhar com a altivez.
- Há muito tempo eu lhe fiz uma confidência... Você se lembra?
É claro que eu me lembrava. Numa Festa do Solstício de verão, há uns dez anos atrás, ela havia dito que amava Lucius, e que ele a ignorava, a traía.
Ela sabia que eu me lembrava. Fez uma pausa, esquivando-se do meu contato e voltando a me dar as costas, enquanto terminava de colocar os brincos.
- Eu amo o meu marido. É ridículo isso, tão ridículo quanto verdadeiro. E anseio por ele. De um modo quase... humilhante. Você não tem idéia, Severo, do que é! Já é difícil ter um amor não correspondido, impossível... isso eu imagino que você possa entender. Mas conviver com essa pessoa no dia-a-dia, ser casada, dividir a cama com alguém que rejeita você... Rejeita seu carinho, suas carícias, com desprezo...
Ela suspirou, voltando a me encarar, como se tivesse recuperado o controle. Eu podia ver ainda o brilho das lágrimas nos seus olhos enormes, mas a sua expressão estava agora dominada pela raiva, pela arrogância típica. Um tipo de sarcasmo que dava para reconhecer como orgulho ferido.
- Pois é... a Princesa de Gelo é cheia de fogo... Mas é horrível para uma mulher... qualquer uma... se sentir rejeitada. Não se sentir capaz de seduzir. Mais do que isso, ser rejeitada pelo homem que ama, pelo único homem que deseja no mundo. É...
Sacudiu a cabeça, sem completar a frase.
- Eu precisava me sentir desejável. Precisava recuperar o que o desprezo de Lucius tirou de mim... É isso. A sensação de me sentir... desejada ao extremo. Sim, desejada ao extremo... Era disso que eu estava precisando. Foi isso o que eu vim buscar. E foi ótimo. Como eu imaginei que seria...
- Mas... Por que eu?
- Ora, Severo... Eu achei que, a essa altura, uma pergunta como essa fosse desnecessária!
Sorriu, erguendo uma sobrancelha. E eu reconheci naquela sua expressão a mulher inteligente e charmosa que poucas pessoas conheciam e que eu admirava.
- Digamos que... Eu não queria um estranho. Dos homens do nosso círculo de amizades, você é o único que não me é repugnante. Você... não é vergonhosamente submisso ou bajulador... É inteligente, o que eu admiro muito... é culto... não é desagradável... Hmm, na verdade, digamos que você tem o seu charme.
Acho que eu não consegui evitar uma careta de descrédito, alguma coisa assim, porque ela riu, e continuou.
- É sério, você tem o seu charme, Severo! Não sou só eu que acho... as mulheres comentam...Mas, o que foi mais importante na minha decisão... Somos amigos, não somos? Eu já sabia que não era o amor da sua vida, Severo... Assim como você não é o meu. Somos duas almas perdidas... dois solitários... Podemos matar a fome um do outro, não é?
Deu um suspiro, e por um instante nós dois ficamos nos encarando em um entendimento silencioso.
– Mas eu estou falando sério sobre tomar conta de Draco em Hogwarts... – ela interrompeu meus pensamentos, mudando de assunto. - Eu lhe peço, Severo, como um favor especial. Em nome da nossa amizade, dos anos que nos conhecemos. Draco é um menino inteligente... Mas eu sei que eu e o pai o mimamos demais. Ele não é tão esperto quanto parece. Não tem idéia de como é a vida real...
- Fique tranqüila, Narcisa.
Ela terminou me dando um beijo leve, que pareceu até carinhoso, de despedida:
- Muito obrigada, Severo! Você não faz idéia do quanto eu precisava de algo assim...
Deu um suspiro, recuperou sua fachada de charme distante e elegante, e se afastou rápido, na direção da porta. Antes de sair, virou-se mais uma vez e repetiu:
- Foi ótimo! Como eu imaginei que seria... - em seguida, completou com um tipo de promessa um pouco assustadora. - Eu vou querer repetir qualquer hora... Cuide-se, Severo. E cuide do meu menino quando ele chegar a Hogwarts!
Mulheres são uma ilusão. A frase voltou a reverberar na minha cabeça.
OK, talvez, nem tudo fosse tão ruim assim. Essa história toda com Narcisa talvez fosse um erro, mas não havia falsidade. Ela não tinha dito nem insinuado que estava interessada em mim. Só não queria ser deixada sozinha naquela noite. E eu, mesmo querendo a solidão, tinha encontrado nela alguma coisa além do sexo. Um pouco de compreensão sem palavras, talvez. Éramos o que precisávamos. Como ela mesma definiu: duas almas perdidas, irremediavelmente presas à nossa solidão, só isso. Sem promessas, sem ilusão. Eu poderia ficar ainda muito tempo filosofando aqui sobre essas coisas. Talvez o resto das férias de verão.
Vou voltar para Hogwarts. **
[1997 – Mantive esse relato para que saiba que Narcisa é muito mais inteligente do que parece, é capaz de atos surpreendentes, e deduziu, por si mesma, muito sobre meus sentimentos por Lílian Evans. E, a informação mais importante, é Metamorfomaga. De resto, como eu mesmo já disse, não tenho o menor interesse em me prolongar em narrações, ou comentários, sobre intimidades. Só espero que já tenha idade suficiente para não se chocar ao descobrir que não sou nenhuma espécie de monge.]
~ 31 de julho de 1991.
Voltei ontem. Aliviado, de certa forma. Cheguei ao fundo do poço, mais uma vez, e consegui sair. Dumbledore me chamou, assim que cheguei. Como de hábito, eu acho que estava me esperando.
- Que bom que voltou, Severo.
Não me perguntou nada sobre as férias, nem fez nenhum comentário. Não sei como ele consegue, mas tenho certeza de que sabe de tudo.
Parecia satisfeito com a minha volta. Mesmo assim, apesar do seu jeito amistoso, como sempre, ao me receber, eu percebi que havia alguma coisa errada. Tinha uma expressão muito séria, preocupada, como há muito tempo não via. Assim que eu entrei na sua sala, ele começou a falar, sem rodeios.
- Severo, aconteceram algumas coisas inquietantes enquanto você esteve fora.
- O que houve, professor?
- Sente-se.
Dizendo isso, ele começou a servir dois cálices de hidromel. Mas então parou, sacudindo a cabeça, em silêncio, como se mudasse de idéia. Com um novo movimento da varinha, fez desaparecer os dois cálices e, em seu lugar, fez surgir duas canecas de chocolate quente. O aroma delicioso encheu a sala na mesma hora.
Depois de saborear o primeiro gole da bebida e passar a outra caneca para mim, voltou a falar:
- Nicolau Flammel e a esposa foram atacados, há cerca de 2 dias atrás. Alguém conseguiu entrar na casa e render Nicolau e Perenelle, mantendo-os prisioneiros. Veja bem... ambos sabemos que esse alguém não poderia ser uma pessoa comum. Trata-se, pelo que podemos deduzir, de um bruxo das Trevas capaz de se disfarçar muito bem, e com conhecimento e poder suficiente para conseguir burlar todos os feitiços de segurança que pusemos na casa. Alguém com essas características, interessado em Nicolau Flammel... você pode imaginar qual o objetivo.
Ele fez uma pausa, enquanto eu assimilava a magnitude da informação.
- Pois bem. Foi fácil concluir que a Pedra não estava lá com eles. Quando isso ficou claro, os dois foram torturados impiedosamente, para que revelassem o esconderijo.
- Eles estão bem, Professor? – a imagem do que a tortura pode causar ao equilíbrio mental de uma pessoa era bem clara na minha cabeça.
- Fisicamente, os dois estão ótimos. Ficaram muito abalados, é claro. Mas nenhum dano permanente, graças a Merlin. Assim que Nicolau conseguiu, mandou uma mensagem codificada especial para mim, contando tudo que aconteceu. Perenelle foi menos agredida. Flammel desmaiou, ficou muito confuso e desorientado... Ele quase não lembra de nada do que aconteceu, ou do que disse. Mas nós dois concluímos que o criminoso conseguiu extrair dele a localização da Pedra Filosofal. O esconderijo onde ela tem sido mantida em segurança durante todos esses anos.
Ele fez uma pausa, me dando tempo de absorver a informação. Nós dois sabíamos da gravidade daquilo. Uma preocupação antiga que compartilhamos parecia se concretizar.
Dumbledore recostou-se na sua cadeira, juntando as pontas dos dedos, num gesto típico dele. Quando voltou a falar, tinha o ar distante e circunspecto:
- É claro que eu conversei com os duendes de Gringotes sobre a segurança dos seus cofres... Mesmo assim, acabei achando melhor tomar outras medidas para garantir a segurança da Pedra.
Ele me encarou, quase adivinhando as perguntas silenciosas que eu ainda não tinha formulado.
- Mandei Hagrid aproveitar a viagem e retirar a Pedra de Gringotes. Trazê-la direto para cá. Não há lugar mais seguro do que Hogwarts. Aqui no Castelo teremos melhores condições de protegê-la.
- Que viagem?
- Ah, sim... É verdade. Tivemos um pouco de... dificuldade... em entregar a carta. Certa... resistência... bem maior do que o previsto... para que a carta chegasse a Harry Potter...
- Como assim?
Eu sabia que o filho de Lílian estava sendo criado por trouxas, pela detestável irmã dela e o marido. O menino estava protegido pelo sangue, por causa do estúpido sacrifício da mãe por ele. Protegido? Nas garras daquela... Petúnia? Eu tinha lá as minhas dúvidas.
- Parece que os tios não queriam que Harry recebesse o convite para Hogwarts. Mandei dezenas de corujas sem que o menino conseguisse receber. Acabei perdendo a paciência e enviando Hagrid para entregar pessoalmente, em mãos. Ele vai aproveitar para ajudá-lo na compra do material...
Suspirou, e os seus olhos brilharam de satisfação quando completou:
- O próprio Hagrid teve idéia de levar um bolo, já que é aniversário dele...
Ah, sim. Como se alguém ainda precisasse me lembrar disso...
- O garoto tem sofrido na mão dos parentes trouxas... Às vezes, ao longo desses anos,eu me perguntava se o preço da segurança dele não tem sido alto demais... – Dumbledore completou quase como se pensasse alto. – Mas, depois do que aconteceu com Nicolau Flammel, eu fico mais convencido de que o perigo continua à espreita...
Ficamos em silêncio por um bom tempo, até que ele voltasse a falar.
- Eu já disse a você várias vezes: tenho a certeza de que Voldemort ainda não foi destruído definitivamente. Seu corpo foi destruído, mas ele não morreu. Pode demorar, mas ele vai voltar. Sempre, depois de uma derrota e uma trégua, a Sombra toma outra forma e cresce de novo...
Eu continuava em silêncio, ainda tentando compreender a magnitude de tudo aquilo. Dumbledore mantinha aquela sua expressão séria e compenetrada, com o olhar perdido. Deu um novo suspiro e voltou a me encarar, como se retornasse de suas divagações.
- Temos muito a fazer. Da outra vez, eu falhei. Mas temos que nos preparar, dessa vez. Porque quando Voldemort retornar, dessa vez, Harry Potter vai estar correndo um perigo terrível.
- O senhor sabe que sempre pode contar comigo, Professor.
- Ah, sim... Eu sei, Severo... eu sei.
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