Rir, mas sem sorrir
Por espaço de algum tempo, o nome dela não foi mencionado nem por Harry, nem por mim, e, durante esse período, esforcei-me vivamente por aliviar a melancolia do meu amigo.
Pintávamos e líamos juntos, ou, então, eu escutava, como num sonho, suas vibrantes improvisações à guitarra. E assim, à medida que uma intimidade cada vez maior surgia e me permitia penetrar, sem certas reservas, no recesso de seu espírito, mais amargamente percebia a inutilidade de qualquer tentativa no sentido de alegrar um espírito cujo negrume, como se fosse uma qualidade positiva e inerente, esparzia-se por todos os objetos do mundo físico e moral, numa irradiação incessante de tristeza.
Conservei sempre a lembrança das muitas horas solenes que passei só em companhia do dono da Casa dos Potter. Contudo, não me seria possível tentar dar uma idéia do caráter exatos dos estudos, ou das ocupações, em que ele me envolveu, ou aos quais me conduziu.
Uma idealidade exacerbada, descontrolada, lançava sobre todas as coisas uma luz sulfúrea. Suas longas improvisações fúnebres ressoavam sempre em meus ouvidos. Entre outras coisas, lembro-me penosamente de certa perversão singular amplificada, da ária impetuosa da última valsa de Von Weber. Quanto às pinturas a que se entregava a sua incansável fantasia – e que se transformavam, traço a traço, em qualquer coisa de vago que me fazia estremecer com maior emoção, pois eu estremecia sem saber por que -, quanto a essas pinturas (tão vívidas, que suas imagens ainda se acham presentes em meu espírito), eu em vão procuraria extrair delas a mínima parte que pudesse estar contida no âmbito das simples palavras escritas. Pela extrema simplicidade e nudez de seus desenhos, ele detinha e subjugava a atenção.
Se é que algum mortal jamais pintou uma idéia, esse mortal foi Harry Potter. Para mim, ao menos nas circunstâncias que então me cercavam, surgia, das puras abstrações que o hipocondríaco conseguia lançar em suas telas, um terror intenso e intolerável, cuja sombra não senti jamais na contemplação dos devaneios, sem dúvida refulgentes, mas demasiado concretos, de Fuseli.
Uma das concepções fantasmagóricas de meu amigo, em que o espírito de abstração não participava de maneira tão rígida, pode ser esboçada, embora debilmente, com palavras. Um pequeno quadro representava o interior de uma abóboda ou túnel imensamente longo e retangular, de muros baixos, lisos, brancos e sem interrupção ou adornos. Certos pontos acessórios do desenho serviam bem para dar a idéia de que aquela escavação se achava a grande profundidade, sob a superfície da terra. Não se via nenhuma saída ao longo de sua vasta extensão, nem se observava qualquer archote ou outra fonte de luz artificial; não obstante, uma onde de raios intensos inundava tudo, banhando o seu interior de um esplendor lívido e inadequado.
Já me referi à condição mórbida de seu nervo auditivo, que lhe tornava toda música intolerável, exceto a de certos instrumentos de corda. Eram, talvez, os limites estreitos a que ele se limitava ao tocar guitarra que haviam dado, em grande parte, aquele caráter fantástico às suas execuções. Mas, quanto a fervida facilidade de suas improvisações, era coisa que não se podia explicar desse modo.
Tinham de ser, e o eram, tanto nas notas como nas palavras de suas loucas fantasias (pois ele, não raro, se acompanhava por meio de improvisações verbais), resultado de intenso recolhimento e concentrações mentais, a que me referi como sendo observáveis somente em momentos da mais alta excitação artifcial. Lembro-me bem das palavras de uma dessas rapsódias. Isso me impressionou tanto mais fortemente quanto me pareceu perceber, pela primeira vez, plena consciência, por parte de Harry, do desmoronamento de sua sublime razão no trono em que se achava. Os versos, intitulados "O Palácio Assombrado", eram, pouco mais ou menos, embora não ao pé da letra, os seguintes:
No mais verde de nossos vales,
habitado por anjos bons,
antigamente um belo e imponente palácio
- um palácio radiante - se erguia.
Nos domínios do rei Pensamento,
lá se achava ele!
James um serafim espalmou a asa
sobre um edifício só metade tão belo.
Estandartes amarelos, gloriosos, dourados,
sobre o seu telhado ondulavam, flutuavam.
(Isso, tudo isso, aconteceu há muito, muitíssimo tempo.)
E em cada brisa suave que soprava,
naqueles doces dias,
ao longo dos mutos pálidos e empenachados,
se elevava um aroma alado.
Caminhantes que passavam por esse vale feliz
viam, através de duas janelas iluminadas,
espíritos que se moviam musicalmente
ao som de um alaúde bem afinado,
em torno de um trono onde, sentado,
(Porfirogênito!)
com majestade digna de sua glória,
aparecia o senhor do reino.
E toda refulgente de pérolas e rubis
era a linda porta do palácio,
através da qual passava, passava e passava,
a refulgir sem cessar,
uma turba de ecos cuja grata missão
era apenas cantar,
com vozes de inexcedível beleza,
o talento e o saber de seu rei.
Mas seres maus, trajados de luto,
assaltaram o alto trono do monarca;
(ah, lamentemo-nos, visto que nunca mais a alvorada
despontará sovre ele, o desolado!)
e, em torno de sua mansão, a glória,
que, rubra, florescia,
não passa, agora, de uma história quase esquecida
dos velhos tempos já sepultados.
E agora os caminhantes, nesse vale,
através das janelas de luz avermelhada, vêem
grandes vultos que se movem fantasticamente
ao som de desafinada melodia;
enquanto isso, qual rio rápido e medonho,
através da porta descorada,
odiosa turba se precipita sem cessar,
rindo - mas sem sorrir nunca mais.
Nota: Não revisei.
~se esconde das pedras!!!!!!!!!!!!!
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