Primavera
Capítulo 2 – Primavera
Um raio vívido de sol penetrava pela fresta da janela agora sem tábuas, e partículas cinzentas de poeira flutuavam nele como se atraídas pelo calor reconfortante, outrora tão ausente. O irromper prometido, antes revelado em pequenos detalhes quase imperceptíveis ocultos sob a neve, agora exibia-se em toda a sua exuberância. Flores perfumadas decoravam os lados de um riacho de neve há pouco derretida que escorria por ali – porque ainda havia alguns poucos flocos de neve enfeitando a folhagem recém-nascida das árvores.
A pequena cidade de Little Hangleton despertava do longo e tenebroso inverno, excepcionalmente frio, a que miraculosamente sobrevivera. Crianças corriam felizes pelos jardins e calçadas, aliviadas de se verem finalmente sem pesados casacos, e poderem sair das casas a que estiveram confinadas por meses.
Até mesmo a grande casa sobre a colina, o terreno de maior elevação das proximidades, parecia menos sóbria, ainda que seus proprietários se esforçassem ao máximo para mantê-la o mais severa possível, para que os moradores do vilarejo jamais se esquecessem que ali moravam os Riddles.
Não havia muito tempo, o Sr.Riddle até mandara derrubar o bosque para, segundo ele, “livrar a cidade dos vagabundos que ali moravam”, mas não obtivera sucesso, porque achara-se subitamente confuso ao retornar de um passeio pelas redondezas da casa dos Gaunt.
Dias depois, em fins de fevereiro, quando o inverno sequer dava sinal de fraqueza, seu filho, o jovem Tom Riddle, ainda mais esnobe e grosseiro que os pais, resolvera expulsar os Gaunt pessoalmente, uma vez que seu velho pai ainda achava-se confuso demais para juntar palavras numa frase coerente.
Para os habitantes da cidadezinha, os Gaunt eram, por definição, gente a ser evitada. Apenas Mérope, a feiosa garota de olhos divergentes, freqüentava a cidade alguma vezes por mês para comprar comida, e era o tipo de pessoa cuja simples presença bastava para fazer toda uma multidão se calar e voltar os olhos, primeiro curiosos, e depois expressando uma mistura de pena e desgosto para ela.
Tom Riddle voltou coberto de dolorosos furúnculos que levaram o restante do inverno para se curarem.
E foi no primeiro dia de primavera que Mérope resolveu que era hora de voltar a Little Hangleton e repor a pobre dispensa. E, enquanto caminhava pela calçada da rua principal (estreita, comprida e calçada de pedras que faziam seus pés descalços doerem), e era instintivamente evitada pelas pessoas que passavam a seu lado, torcia as mãos de uma forma nervosa que mal expressava a ansiedade que continha.
Esperava encontrar Tom passeando pela cidade. Talvez ele não a olhasse com nojo ou pena. A indiferença lhe bastava.
Seus pés automaticamente a levaram até o mercado. Pediu a carne mais barata, e não pode deixar de notar o olhar do vendedor sobre seu corpo magro. Corou levemente, e, levando o embrulho sob o braço, seu olhar foi atraído por uma das vitrines brilhantes que exibiam lindos vestidos coloridos. Aproximou-se, e encostou o nariz no vidro, observando seu próprio hálito embaça-lo, e tal qual uma criança aprecia os presentes sob a árvore de natal, tão próximos e tão intocáveis, seus olhos brilharam.
Fechou os olhos. Gostaria tanto de ter aquelas coisas... Um fluxo de raiva de repente brotou em seu peito. Era melhor que todos aqueles trouxas de veias imundas! Melhor, e seu sangue fluía com a graça e a nobreza de Slytherin, o Grande!
Mas naquele momento, quando uma lágrima desesperada brotou de seus olhos e pendurou-se em seus cílios embaraçados, preparando-se para lavar-lhe o rosto contorcido em desgosto, a porta da loja abriu-se, e de dentro saiu uma moça pouco mais velha que ela própria, mas muito, infinitamente mais rica e bonita e feliz.
Os cabelos da moça eram negros e sedosos, caindo em delicadas ondas por seus ombros brancos como leite. Seu corpo possuía curvas generosas cobertas por um bonito vestido de algum diáfano tecido negro, e seu rosto era suavemente colorido pelo batom vermelho e os olhos azuis pintados. Exalava o típico cheiro doce e bom das pessoas ricas. Logo atrás dela, um jovem rapaz, de cabelos negros, alto e bonito, saiu carregado de sacolas.
Os saltos do sapato da moça estalaram contra as pedras da rua; ela parou à porta para esperar o namorado. Suas finas sobrancelhas se arquearam à súbita visão de Mérope prostrada à sua frente, observando-a com vívido interesse, quase que bebendo de sua imagem.
- ...Cecília, querida, você....? – começou o distraído Riddle, carregado de compras da futura esposa.
As pupilas castanho-claras de Mérope se dilataram instantaneamente, e de repente convergiram para um único ponto no meio da face do jovem de cabelos escuros, como se seu olhar fosse magneticamente levado àquele objeto de imenso poder atrativo. Sua boca abriu-se ligeiramente, frouxa, e ela deixou o humilde pacote cair de seus braços.
- Querida, por que perde tempo com esses vagabundos? – perguntou Tom indignado; recolocando o casaco nas costas da mulher, levou-a embora, murmurando impropérios sobre a raça que estava degradando a cidade.
Mérope abaixo-se e recolheu o pacote que deslizara de seus braços nus. Uma lágrima silenciosa escorria do canto de um de seus olhos.
Quando criança, Mérope costumava olhar para aquela casa sobre a colina e achar que ela devia ser sua e de sua família, porque eram os descendentes de Slytherin; nobres, puros e infinitamente superiores aos trouxas que lá moravam. Nessa época ainda lhe era permitido andar por Little Hangleton sem ser silenciosamente enxotada. Nunca tivera amigos, nunca fora para Hogwarts (misturar-se com a ralé sangue-ruim de lá? Seu pai jamais permitiria), aprendera a ler e escrever sozinha. As outras crianças da vizinhança às vezes passavam de bicicleta, velozes o suficiente para fugir das investidas de Morfino, e atiravam pedras na vidraça. E Mérope as observava, invejosa.
Com o tempo passara a odiar sua condição de bruxa. Ainda não completara quinze anos quando se apaixonou perdidamente pelo filho dos Riddle. E então maldizia a si mesmo e seu sangue mágico.
Era perfeitamente capaz de realizar mágica, sabia. Não era aborto. No entanto, sentia tão pouca vontade de empunhar a varinha, tanta vergonha e nojo, e era tão constantemente massacrada pelo irmão e o pai, que raramente o fazia direito.
- Vamos, Sr.Gaunt, facilite as coisas...
Uma voz severa vinha do lado de fora. Assustada, Mérope escondeu-se atrás de uma árvore. Pouco adentro do bosque, pode visualizar Morfin e Marvolo discutindo em altos brados com um bruxo baixinho que usava um crachá do Ministério.
- Não vou ser levado embora como um bruxo qualquer...
- Por favor, senhor, quanto mais resistir... – disse um outro bruxo, aflito
E então, com um barulho alto e seco e um estampido repentino, dois dos bruxos foram ao chão, e outros dois, que pareciam tremer de medo, aproximaram-se com cautela:
- Abaixe a varinha, senhor Gaunt, ou seremos obrigados a usar as nossas...
- Gostaria de vê-lo tentar – desdenhou Morfin.
Outro estampido e, no momento seguinte, Morfin e Marvolo haviam sido paralisados pelos funcionários. Merope saiu de trás da árvore lentamente.
- Merope... Aborto nojento... – cuspiu Morfin, sentido-se terrivelmente traído
- A senhorita é Merope Gaunt? – perguntou o funcionário, abrindo um sorriso simpático que não condizia com a expressão de seus olhos, uma mescla de pena e repugnância.
Merope fez que sim com a cabeça, desviando o olhar de Morfin, que lhe gritava impropérios.
- Marvolo e Morfin Gaunt, vocês estão presos e sentenciados a dois anos em Azkaban – disse o baixinho friamente.
- Espero você aí, vadia, quietinha... – rosnou Morfin
Chocada, Merope observou os funcionários levarem-lhe o pai e o irmão arrastados até a estrada, e de lá aparataram, deixando para trás uma espessa trilha na estrada de terra.
Bem, era isso. Estava só.
Olhou ao redor. Ofegava; sentia as pernas fracas. Recuou em direção ao grosso tronco de carvalho que lhe servira de esconderijo, escorregou com as costas coladas à árvore, sentou-se e chorou...
[...]
As folhas ao redor de seu corpo formavam um monte que o vento acumulava, moldando-lhe as formas. A copa verdejante das árvores era seu teto, e ela sentia-se surpreendentemente protegida ao transpassar a folhagem com o olhar e mirar as estrelas tão distantes. Comparadas com aquilo que tanto desejava, as estrelas estavam tão maravilhosamente próximas que quase sentia-se capaz de pegar uma por uma.
Lágrimas deslizavam por seus cílios até caírem e pendurarem-se na ponta de seu nariz. Gostava de lágrimas, porque era o mais próximo de pérolas que possuía, e as possuía em maior abundância que qualquer Querida Cecília jamais poderia ter. Derramava seu pranto porque isso lhe consolava, e qualquer fonte de consolo em sua vida era, de fato, mais preciosa que qualquer colar de pérolas, e a garota bonita também jamais seria capaz de compreender aquilo. Entornava lágrimas também porque aquilo dava prazer a Morfin, e se ele estivesse suficientemente entretido em contá-las em seus olhos, talvez não se lembrasse que o resto de seu corpo existia.
Mas a noite da primavera era quase tão fria quanto as tardes de inverno em que saía de casa, buscando uma nesga luminosa de calor fora de casa, e fugia para ir sentar-se bem no fundo do bosque onde não conseguiriam acha-la, de modo que seu corpo logo obrigou-a a procurar um refúgio mais aquecido que a copa do carvalho onde chorara a tarde toda, como quase sempre acontecia, e era somente por isso que voltava para casa.
Saiu do bosque, iluminando o caminho com a própria varinha – era um dos poucos feitiços que conseguia realizar com facilidade, e retornou para a estrada de terra batida que contornava a floresta e levava à Casa dos Gaunt.
Quando andava pela estrada, porém, sentiu algo quente e peludo roçando-lhe nas pernas. Atingira o ponto mais próximo da cidade em seu percurso, e temia pela peça de alguma criança da cidade, agora que já não tinham a retaliação de Morfin ou Marvolo para recear. Quando baixou a varinha e iluminou o que quer que fosse que lhe arranhasse os tornozelos, teve uma surpresa. Era um gato.
Pequeno, magro e mal-cuidado gato preto. Seus olhos verdes e pidões imploravam por alimento. Pelo tamanho, devia ter nascido no meio do inverno, provável único sobrevivente de uma farta ninhada, e que agora suplicava por ajuda.
Mérope sorriu-lhe docemente e apanhou-o do chão. A criaturinha aconchegou-se em seus braços; as pequenas unhas arranhando-lhe levemente a pele.
- Você quer comida, pequeno? – ela sussurrou levemente, e o gato ronronou em aprovação.
A lenha crepitava alegremente na lareira, irradiando o calor pela casa. Merope observava as brasas incandescentes, e vez por outra voltava o olhar para o gato que regalava-se com os restos de seu jantar no canto da sala, para sorrir-lhe. Eram dois seres desamparados, realmente.
Sentia a ausência de Morfin e Marvolo como se o ar tivesse ficado subitamente mais leve e respirável. Fazer mágica lhe parecia surpreendentemente fácil, agora. Seus lábios finos curvavam-se num sorriso quase irreprimível.
No dia seguinte iria à cidade e compraria um bonito vestido para si mesma, decidiu; e caiu num sono envolto em sonhos em que aparecia vestida de noiva ao lado de Tom Riddle.
Acordou com o sol batendo-lhe no rosto e o palreio alegre dos pássaros. Oh, sim, como adorava a primavera!
Esperou pela inevitável presença do irmão ao seu lado, que não veio. Sorrindo ainda mais, levantou-se da cama num pulo: o gato miava, exigindo mais alimento, que aquele da noite já havia muito tinha sido digerido por suas entranhas famintas.
Alimentada a própria fome, Merope juntou o pouco dinheiro que lhe restava e rumou para a cidade.
[...]
Achava-se feia. O vestido vermelho que vestia seu corpo parecia acentuar-lhe os defeitos do rosto assimétrico. A vendedora olhava-a com explícita desaprovação, e Merope tivera de mostrar-lhe o dinheiro para garantir que podia pagar.
Beliscou com força as bochechas para tentar torná-las menos pálidas, mas o sangue rapidamente afluiu para outras partes do corpo, e tudo o que conseguiu foi um leve hematoma na pele frágil.
Desatou o laço de cetim da cintura, e imediatamente o vestido deslizou pelo seu corpo, como que fugindo de alguém que, por definição, não deveria possuí-lo.
- O que você está procurando, mais exatamente, querida? – perguntou-lhe uma velha senhora.
Merope não respondeu. Passou os dedos entre os vestidos expostos na arara e escolheu um preto profundamente decotado, coberto de pontinhos, cujo brilho roubou sua atenção por alguns segundos. Era bonito ver a luz brincar na superfície daqueles pequenos espelhos...
A velha vendedora sorriu com cumplicidade, e disse:
- Ah, está procurando algo para alguém?
Merope fez que sim com a cabeça e corou até a raiz dos cabelos. As vendedoras mais jovens deram risinhos. A senhora ignorou-as.
- E posso saber quem é o eleito? – perguntou a senhora, sorrindo com simpatia.
Merope murmurou um “Riddle” quase inaudível que fez sumir o sorriso no rosto da vendedora. A senhora empurrou um vestido branco qualquer em seus braços e a arrastou para o fundo da loja.
Era uma sala quente, pequena, abarrotada de instrumentos que lhe eram vagamente familiares – uma bola de cristal, um espelho-de-inimigos, e – nesse momento seu coração disparou – uma curta varinha sobre a mesa.
- O quê...?
- Há quanto tempo o ama? – perguntou ela secamente
- Eu... bem... – Merope corou – Desde que eu me lembro...
- Escute, garota... Tom Riddle é arrogante e esnobe. É um trouxa e te despreza, você sabe disso, não sabe?
Envergonhada, Merope baixou a cabeça e deixou uma lágrima rolar por suas faces pálidas.
- Tom, é o nome dele? Bonito nome... – ela sussurrou inaudivelmente.
A senhora pousou uma mão no rosto da jovem que chorava silenciosamente.
- Não posso ajudar muito, sou quase um aborto. – ela disse tristemente – Já amei, oh sim, se amei! – ela disse, e seus olhos se perderam numa expressão de vaga contemplação de um passado distante – Você tem no olhar a tristeza que eu tenho hoje. Mas você é tão jovem, menina... Tão jovem e já tão sofrida...
Mais um par de lágrimas quentes e cheias rolou como pequenas esferas de cristal pelo rosto marcado de aflição e desespero da jovem.
- Talvez... Talvez eu possa ajudar... Bem, não sei, não sei se é certo – disse a mulher, mais para si mesma.
- Por favor... Qualquer coisa... – Merope implorou; a voz falha e frágil.
- Por que não tenta uma Poção do Amor?
- Poção do amor? – perguntou Merope vividamente
- Sim, mas... Bem, você certamente sabe que o amor não pode ser verdadeiramente criado, apenas forjado; tudo o que você produzirá naquele que beber da tua poção será uma paixão repentina e intensa, que produzirá na cabeça dele a sensação de que precisa estar com você para viver, e você será tudo na vida dele...
- Oh, por favor! – Implorou Merope, caindo de joelhos, aos prantos, em frente à senhora. – Não me importo, não me importo, eu quero a poção!
Seu rosto estava tomado de tal fogo, e seu olhar de tal furor, que poderia ser julgada louca. O sangue finalmente afluíra para as maçãs de seu rosto, e as pupilas convergiam unicamente para o centro dos olhos da senhora que lhe estendia uma única e precária esperança. Se pudesse faze-lo beber da poção...
- Bem... – disse a senhora aflita, com ares de quem se arrependia de ter feito a oferta – Bem, se é isso mesmo que você quer...
E de baixo de um dos fardos de pano espalhados pelo chão, a mulher tirou um frasquinho fortemente lacrado, e dentro dele flutuava, meio líquida, meio gasosa, etérea, e de um diáfano branco de brilho perolado, a preciosa Poção do Amor.
- Um fio de seu cabelo pouco antes de administrar. Essa dá para uma dose. e cuidado, porque quanto mais velhas, mas fortes ficam. Bem, garota... Tudo que eu posso dizer é boa sorte.
E empurrou-lhe a poção na mão suada de nervosismo.
[...]
Bastava esperar. Ele sempre passava por ali àquela hora, a caminho de Great Hangleton, sobre seu bonito cavalo branco. Às vezes acompanhado de Cecília, às vezes não. E Merope esperava que ele passasse sozinho daquela vez.
Arrancou um fio de cabelo castanho e escorrido da cabeça e deitou-o no líquido branco-perolado que exalava um cheiro inebriante e doce de jasmins, e observou-o se dissolver numa ligeira névoa que tomou a forma de um coração.
Então, ouviu os passos do cavalo a galope se aproximando. Ofegante, nervosa, ela segurava a varinha com a mão trêmula.
Tudo tinha de ser perfeito, tinha de confiar em sua própria mágica para funcionar...
O cavalo se aproximou, e já era possível ver seu vulto branco ganhando mais velocidade...
- Confundus! – ela murmurou, a varinha apontada para o cavalo a poucos metros de distância.
Riddle gritou; no segundo seguinte seu cavalo apoiava-se apenas nas patas traseiras e sacudia com violência a cabeça de crinas alvas, para em seguida derrubar seu cavaleiro, que caiu com um gemido de raiva e dor no chão. O cavalo fugiu a galope para dentro da floresta, passando a tão poucos centímetros da bruxa que o confundira, que Merope sentiu a cauda do animal roçar-lhe nas pernas como uma prévia do castigo que viria a sofrer por interferir no destino de maneira tão drástica.
Riddle bradou um palavrão qualquer.Parecia ter torcido o tornozelo na queda, mas estava bem – e Merope sentiu-se grata; jamais se perdoaria se algo acontecesse com ele.
- Senhor! – Ela gritou, saindo de trás da sebe que ladeava a estrada e a separava do bosque.
- O que...?
- Senhor, não se preocupe! O senhor se feriu, deixe-me cuidar...
- Não! Afaste-se de mim! – ele disse, como se Merope portasse alguma doença contagiosa.
Engolindo a mágoa, Merope estendeu-lhe um copo cheio da poção disfarçada em água.
- Tome, senhor, isso aqui fará-lo melhorar...
Riddle tomou o copo de sua mão rudemente e, cheirando o conteúdo para verifica-lo, bebeu do copo, sem sequer reparar o olhar ansioso e cheio de expectativa que aquela estranha moça lhe dirigia.
- Está melhor, senhor?
- Eu... Acho que sim. – Ele disse por fim, tentando se levantar – Meu cavalo fugiu, não sei o que deu nele...
Riddle levantou-se num só pé, mancando. Mas enfim conseguiu andar – não torcera o tornozelo afinal.
- Espere aí... – ele disse, voltando o olhar para Merope como se fosse a primeira vez que percebia sua presença – eu ainda não perguntei seu nome, perguntei?
- É... Merope, senhor. Merope Gaunt.
- Pode me chamar de Tom. – Ele disse, sorrindo de um jeito estranho. – Escute, você pode me levar para algum lugar seguro até eu recuperar esse pé?
O queixo de Merope caiu.
- C-claro, c-claro... – ela gaguejou, piscando muito rapidamente.
Guiou-o pela estrada (reparou que ele parecia andar perfeitamente) até sua casa, e lá acomodou-o à mesa, corando profundamente diante da escassez de seus pertences.
- Você mora aqui? – ele perguntou surpreso
Merope confirmou com um gesto, corando ainda mais.
- Uma princesa como você, morando num lugar como esse? – ele perguntou vividamente, sorrindo.
Merope retribuiu o sorriso, desconcertada.
- Vou buscar um copo d´água, senhor...
Ele agarrou seu braço, e disse de uma maneira muito incisiva:
- Já disse que você pode me chamar de Tom.
A garota gaguejou qualquer coisa, e, sem saber o que fazer, soltou-se do gancho de dedos quentes que cercava seu pulso.
Voltou segundos depois, tão trêmula que mal conseguia segurar o copo. E, de fato, quando foi servi-lo a Riddle, o objeto escorregou de sua mão, indo espatifar-se no chão, espalhando pequenos e brilhantes cacos de vidro pelo chão sujo.
Murmurando desculpas ainda mais trêmulas, ela foi abaixar-se para limpar o chão, mas foi impedida por uma mão firme e segura que deteve seu braço e a ergueu – e em seguida sentiu os lábios de seu amado colarem-se com ardor nos seus.
Riddle abandonou a cadeira em que estava sentado para tomar Merope nos braços, que imediatamente retribuiu cercando as costas de seu amado com seus próprios braços e guiando-o até o quarto.
Amou como sabia que jamais merecera amar e como sabia que jamais amaria novamente.
[...]
Bastava esperar. Ele viria. Sempre vinha àquela hora. Quando as estrelas e a lua baixavam do céu seu brilho leitoso e as corujas saíam à caça, ela era só e somente dele.
Podia sentir o próprio coração batendo acelerado contra o dele. Podia sentir a pele, o suor, o cheiro e o corpo dele impregnado no seu.
Podia enfiar seus dedos trêmulos – trêmulos como o restante de seu corpo, logo depois de regalar-se com o maior dos prazeres – podia enfiar seus dedos trêmulos e traçar uma linha inconstante pelos cabelos negros e cheirosos dele.
Podia usar os lábios para desenhar na pele cada um dos traços e detalhes e reentrâncias e curvas do corpo dele.
Podia sentir o gosto de sua própria poção do amor ainda na boca dele e apaixonar-se ainda mais.
Podia viver somente para ele, e por ele.
Mais uma vez, como em incontáveis vezes, ouviu o relinchar de um cavalo – este agora era marrom e bem mais dócil – que parou exatamente em frente à sua porta.
Ela o recebia de braços e lábios abertos, despia a capa que o ocultara durante a curta viagem e então deleitavam-se com a simples presença um do outro, na mais completa e absoluta contemplação do ser amado, como o fizeram os amantes tantas vezes no passado e continuavam fazendo.
Ele dizia que a amava, e ela acreditava, mesmo que um pedaço de seu ser insistisse em relembrar as palavras da velha que lhe dera a poção...
Mas deleitava-se, e sentia-se infinitamente feliz.
O Bosque, naquele ano, floresceu como nunca.
E foi numa noite como aquela, depois de se amarem à exaustão de corpo e alma, que ele a olhou, abençoando sua mera existência com uma expressão de completo arrebatamento, e disse:
- Mérope, flor dos campos, minha querida e razão de meu viver, quer se casar comigo?
E cada célula de seu corpo vibrou e regojizou-se naquelas palavras.
Na manhã seguinte, se algo na velha Merope insistia que devia ficar ali e esperar por seu pai e irmão que voltariam de Azkaban um dia, famintos e desesperadamente violentos, a Merope nova, que renascera das cinzas devido ao amor de Tom, dizia-lhe apenas que devia fugir.
E quando Salazar, o gato, miava por sua ração diária de leite, e lhe dirigia aqueles grandes e felizes olhos verdes – outrora tão famintos e tão tristes como os seus próprios – ela só podia dizer:
- É minha única chance, pequeno, preciso fugir daqui...
Fugiram na noite seguinte, no belo cavalo marrom de Tom, levando consigo apenas a roupa do corpo e algum dinheiro que ele roubara da família.
Já levava dentro de si, embora sem saber, o minúsculo ser que um dia seguraria nos braços e cujo destino já estava irremediavelmente traçado.
E a primavera ainda nem terminara.
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