O Silvo da Serpente
Capítulo 9
O Silvo da Serpente
Blanke não pretendia começar seu novo ano daquela forma.
Pensava que Stella estava melhor preparada e disposta a fazer as vontades da Senhora. Mais vontade do que preparo, pra dizer toda a verdade. À margem do lago, onde chegara quando a tarde ainda ía a meio, a brisa que soprava morna não afastava o desconforto da moça, sentada numa pedra, com as pontas dos cabelos tocando as folhas secas no chão. Aborrecia-se esperando, e pensava nas tarefas que haviam sido adiadas. Não se queixava da rotina, ao contrário, apreciava saber que tinha um lugar na comunidade e que seu trabalho era importante para o bem estar de todas. Olhou as pontas dos dedos, esfregando-os levemente com o polegar. Havia calos dos quais tinha orgulho e sorriu para si.
O canto das mulheres de preto ecoou mais alto, em circunvoluções que assustaram alguns pássaros. Olhando para a frente, Blanke podia ver, ao longe, a capela de onde vinham as vozes. Ficava na mesma direção de Avalon, mas não era sua casa o que via. Agora, quase no final da tarde, com a luz rosada e tristonha que se espalhava pelo lago, bruxuleante como luz de velas, Blanke lembrava da sua terra natal, da família que deixara para trás quando atendera o chamado da Deusa. Não lamentava, não era feliz, mas haviam os prados, as colinas verdejantes na primavera nas quais gostava de correr. Isso Blanke sentia falta. Mas ali, longe de Avalon, tudo era triste, sonolento, recatado. Havia sempre um pedido de desculpas no ar, Blanke podia sentir no canto e na atmosfera sufocante. Quanto ainda teria de esperar? Logo a noite cairia e poderia ver nos céus Órion, a constelação que regia a ordem em Avalon. Não lhe agradava estar ali mas acatara a decisão da Sacerdotisa sem reclamar. Sua tarefa logo estaria concluida e poderia voltar para junto das irmãs.
Mas onde sua tarefa se encontrava naquele instante? Já deveria ter surgido na estrada.
Blanke ergueu-se de onde estava e caminhou alguns passos até a borda da floresta, de onde podia ver a estradinha que serpenteava desde o rio e que só poderia ser percorrida, sem grandes percalços, a cavalo ou a pé.
Assim que a lua surgiu no céu, cheia, amarela, Blanke encheu-se de alegria e tristeza. Queria saudar a Deusa como seria o apropriado mas ali estava, à beira de uma estrada, ouvindo cantos tristonhos. Mas, consolou-se, fazia o trabalho da Deusa. Nesse instante, ouviu sons que indicavam que alguém se aproximva a cavalo. Apertou os olhos e pode divisar a figura de um homem, que se aproximava de onde ela se encontrava. Logo estava a vista e Blanke adiantou-se, ficando ao lado da grande árvore de Arimatéia, esperando que, apesar da escuridão, o homem a visse e parasse.
- Não. - pensou Blanke - É melhor não deixar ao acaso.
Afastou um pouco os braços do corpo e estendeu sua aura, de maneira a chamar a atenção do cavaleiro. Ele pareceu tê-la visto, pois puxou as rédeas do animal e trotou os poucos metros que os separavam.
Blanke olhou o homem durante algum tempo e não gostou do que viu na penumbra que antecede a noite. Era belo mas de uma beleza agressiva, com olhos escuros apertados e uma expressão sombria. No entanto, pode ver que havia curiosidade no olhar que lhe lançou antes de falar.
- A donzela do lago está perdida? - disse-lhe o cavaleiro.
Blanke não esperava que ele pudesse identificá-la tão rapidamente e segurou o ar por uns segundos.
- Aguardava vossa senhoria. - respondeu ela, com segurança.
- Então eu era esperado.- disse o homem, torcendo o canto da boca em divertimento.
- Devo levá-lo à minha senhora, a Sacerdotisa de Avalon. - respondeu Blanke.
O cavaleiro desmontou e trouxe as rédeas para frente, caminhando até Blanke.
- Não é a terra das fadas que procuro nem uma dama do lado que busco encontrar. – retrucou o cavaleiro, dirigindo a Blanke um olhar intenso, a perturbar a calma da jovem.
- Ainda assim, - respondeu-lhe a moça, controlando a aflição que começava a insuflar-se. - Devo dar-lhe as boas-vindas da Senhora do Lago e oferecer nossa hospitalidade, senhor.
Estendendo o braço, Blanke apontou para o lago, num convite mudo ao homem para que lhe acompanhasse. O cavaleiro ficou algum tempo parado, olhando ainda para o rosto de Blanke, com a boca retorcida e um brilho intenso nos olhos escuros. Blanke pode ver que neles havia um brilho incomum, levemente esverdeado, como se lhe queimasse internamente um fogo perverso. Depois, meneou a cabeça, consentindo em ser conduzido.
Os dois percorreram em silencio a distância que os separava do lago. Os cânticos haviam cessado e apenas os insetos zumbiam. À beira dágua, Blanke preparava-se para chamar a barca, quando o cavaleiro falou.
- O que a sacerdotisa deseja comigo?
Blanke hesitou, pensando que não poderia dizer ao homem o que não sabia. A Senhora de Avalon não confiara suas intenções à jovem, que não fizera seus votos perpétuos à Deusa. Não poderia dizer que esta seria sua última viagem por muito tempo e que a terra do verão seria sua morada involuntária indefinidamente.
Virou-se finalmente para ele e começava a responder quando uma voz chegou dos arbustos que ladeavam o lago.
- É a mim que procuras, jovem Slytherin.
Blanke deu um pulo para trás, assustada, e olhou na direção de onde viera a voz, mas nada viu.
O cavaleiro adiantou-se e tirou o chapéu, fazendo uma pequena mesura.
- Mestre Lailoken, começava a pensar ter-se esquecido de mim.
Subitamente, Blanke viu o homem que falara, surgido do nada diante dela, materializado da escuridão. E tremeu.
- A donzela pretendia levá-lo a Avalon? - perguntou o velho, rindo-se fracamente. - De onde já não sairias, quero crer.
O velho aproximou-se mais, apoiado num bordão negro e retrocido que levava à frente experimentando o terreno.
– É possível, - disse Slytherin - mas quem pode divisar os desejos do coração de uma mulher? - Riu-se também, enquanto falava numa voz rouca. -Não haveria de ser para sempre, bem sabes que tenho meu charme.
– Ora, charme... -falou o velho com desprezo.- Achas mesmo que isso lhe valeria alguma coisa com essas mulheres? São bruxas, feiticeiras, não têm coração. Abandonaram o mundo de livre vontade e não teriam pudor em trancafiá-lo no reino encantado por toda a eternidade.
– Bruxas não me assustam. – retorquiu o cavaleiro, erguendo o queixo desafiadoramente. – Eu venho de uma longa linhagem de feiticeiros e não abdiquei aos meus poderes apenas porque empreendi esta jornada. Para vê-lo, meu senhor.
O velhor empertigou-se, assumindo uma fisionomia dura como pedra onde antes havia ainda alguma humanidade.
– Não é a mim que chamarás de Senhor. Apenas Nathair faz jus a esse titulo.
Dizendo isso, ergueu o cajado no qual se apoiava e o moveu levemente para o lado, num breve círculo.
Blanke caiu, desacordada.
O velho observou a jovem caída no capim que circundava a margem do lago, sem demonstrar nenhuma emoção. Depois, ergueu os olhos para Slytherin e perguntou, num tom baixo e profundo.
– Alcançou o homem?
O cavaleiro, que ainda olhava a face pálida da moça que jazia aos seus pés, respondeu lentamente, escolhendo as palavras.
– Não, ele foi mais rápido. Poderia ter chegado a ele se o Mestre não tivesse interferido.
O velho ergueu a cabeça e sorriu, fazendo um ruido com a garganta que poderia significar que ria embora não assim parecesse. Mediu alguns passos e completou.
– A Senhora da Terra do Verão já o esperava. Estava preparada para enfrentá-lo e não permitir que tocasse no velho.– Virou-se e continuou.– As brumas já não se abrem para quem não é da ilha. Mesmo para esses há o perigo de vagar nas neblina para sempre e apenas pela ação direta da sacerdotisa a passagem é realizada. Seu poder não é suficiente, e nem o meu, de transpor o abismo entre os mundos. Apenas Nathair guarda o segredo que penetra a bruma e toca a terra encantada.
Slytherin ficou um momento apreciando as palavras do velho Lailoken antes de responder.
– Então vamos a ele.
– Estás pronto a entregar tua alma, Salazar?
Slytherin apertou os olhos e respondeu, sem hesitação.
– Vamos a ele.
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