A Senhora de Lundy
Capítulo 8
A Senhora de Lundy
Já era quase noite, naquela hora de lusco-fusco quando as sombras hesitam em se espalhar sobre o mundo e a luz trava sua última batalha para não perecer, quando Sigurd chegou à ilha. Podia ver ao longe, nas colinas, as primeiras fogueiras, ainda débeis, preparando-se para a grande festa. Que feliz coincidência, pensou ele, ao vislumbrar as chamas a arder em pontos isolados. A Noite de Beltane era uma ocasião de bons presságios para encerrar sua jornada. A travessia fora conturbada e em pelo menos um momento Sigurd acreditou que não a completaria. A magia já não permitia o vacilo e exigia, tanto do barqueiro quanto do peregrino, uma determinação férrea.
Sigurd desceu do barco e logo iniciou a subida até a colina grande, que àquela luz ardia em tons vermelhos. No alto, ficava a morada da Sacerdotisa. Não esperava encontrá-la imediatamente, pois os festejos deviam ocupar-lhe todo o tempo nos preparativos. Contra suas expectativas, assim que chegou à porta de carvalho entalhada com esmerados desenhos de vinhas, uma jovem que estava à porta indicou-lhe que entrasse. Suas vestes esverdeadas eram finas como asas de insetos e seus longos cabelos intensamente vermelhos desciam até quase o chão. Sigurd baixou a cabeça para atravessar o umbral e entrou na cabana, que estava na penumbra, e sentiu o aroma de mata molhada pela chuva recente. Lá se encontrava a Senhora do Lago sentada em sua cadeira de troncos retorcidos e perfumados, ao fundo da sala em semicírculo onde recebia os raros visitantes. Tinha espaldar alto e estava assentada a alguma altura do solo, parecendo antes um trono antiquíssimo. Nele cresciam muitos galhos delgados cheios de folhas verdes que subiam até o teto, onde se misturavam à cobertura de palha. Parecia ainda mais com uma árvore do que Sigurd podia se lembrar e lhe pareceu que era natural que assim fosse. Muitos anos já se haviam passado e, agora que Lundy se afastara radicalmente do mundo humano, era certo que a natureza deveria avançar sobre o lugar, a cobrar cada vez mais espaço e insuflar-se de vigor. Diante do que via Sigurd muito se espantou que ainda tivesse podido chegar ao reino das fadas através do lago.
– Você veio só? – perguntou-lhe secamente a Senhora do Lago.
Sigurd achou estranho que lhe perguntasse isso, visto que nunca viera acompanhado. Limitou-se a responder negativamente, sem tecer outros comentários.
A sacerdotiza tinha o rosto extremamente sério, como a enfrentar um dilema, situação incomum em época festiva como aquela. Sigurd observou que suas feições estavam mais duras. Seria a idade – e questionou-se mentalmente quantos anos a sacerdotisa teria por agora -, se não fosse a aparência amadeirada que ela mostrava. Além da cor esverdeada, que lhe conferia um ar doentio e bizarro, parecia fazer parte do bloco esculpido, entalhada desde sempre no trono ancestral. Era o peso das eras que lhe consumiam o frescor e o rosado das faces, ou estaria Avalon, sua Lundy, deslizando irrevogavelmente para o mundo sobrenatural, retornando aos campos de origem dos deuses?
A Senhora ergueu-se de sua cadeira de acácia num movimento muito lento, como se isso lhe exigisse enorme esforço, como se seu corpo estivesse ligado ao objeto e lhe tivesse encravado raízes.
Caminhou sobre os tapetes de lã até uma mesa baixa, perto de uma janela pequena e redonda, onde repousava uma bacia de madeira. Deteve-se diante da mesa e baixou os olhos para a lâmina de água escura
– Ele o seguiu, mas não atravessou. – disse lentamente. – Eu o vejo em suas intenções mesquinhas, girando seus desejos como um brinquedo inofensivo, traçando destinos com a ponta da espada, suas vestes verdes e prata atravessando o tempo e espalhando a dor. Muito tempo. Muita dor.
Seus olhos giraram nas órbitas e sua boca exalou uma neblina gélida que fez volutas pelo ar, descendo até alcançar a bacia e desaparecer sobre a água.
Sigurd permaneceu em silêncio pois não sabia a quem a Dama se referia. O silêncio que se seguiu tornou-se oprimente e denso. A atmosfera, antes morna e festiva, adquiriu nuances escuras e frígidas e Sigurd temeu que não viesse a alcançar seu desejo. Ninguém o estivera seguindo, estava certo disso e, exceto pela bruxa de quem tomara o medalhão, nenhum outro homem ou mulher sabia sequer de sua existência.
– Ele virá. Porém não tomará de minhas mãos a sua caça. Não serei eu a entregar-lhe aquela que é a última. Mas o futuro se fecha para mim como uma flor que se recolhe para adormecer à noite, o véu já não se abre diante de meus olhos e chegará o dia que não se revelará a mais nenhuma outra.
A sacerdotisa falou em voz muito baixa, mas Sigurd teve a impressão de que gritara. Havia um tremor no ar a sua volta como se aquela voz estivesse vindo de muito longe, abaixo dos seus pés. Temeu que o solo se rachasse e abrisse, dando vazão aos silêncios acumulados por tempos incontáveis.
– Senhora, vim só. Trouxe o prometido e apenas busco meu descanso.
A Dama voltou seu rosto levemente pétreo para encará-lo e havia uma luminosidade azul em torno de sua cabeça, emoldurada pelos longos cabelos negros que lhe caíam aos pés e arrastavam-se pelos tapetes.
Seus olhos estavam brilhantes e úmidos e escorriam lágrimas pelo seu rosto de estranhas cores, embora sua expressão não tivesse se alterado. Ainda olhava o velho sem os olhos, tirando sua visão da escuridão que a preenchia.
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