capítulo 3
O despertador tocou.
Sarah estendeu o braço e o desligou. Mas permaneceu quieta. Por trás das cortinas, via que o dia ainda estava escuro, o sol não nascera. Mas era hora de se levantar, de se preparar para mais um dia de trabalho.
Tivera um sonho estranho, estava em Londres, presenciava uma explosão... Há muito não sonhava com aquele acidente esquisito. Imaginou que teria puxado isso do seu inconsciente de novo, por causa do “Caso John Smith”. Ou então, por causa dos recentes atentados terroristas em Londres...
Lembrou-se do relato dos policiais que haviam o socorrido. Trabalhavam no isolamento de segurança em volta de uma fábrica clandestina de fogos que explodira, enquanto os bombeiros combatiam as chamas, quando o encontraram. Muito ferido no peito e nas pernas e com as roupas queimadas, deu-lhes a impressão de ter sido atirado longe pela explosão. Perdera muito sangue, era evidente pela poça vermelha em que estava. Uma ambulância do Resgate foi acionada e o levaram para o Pronto Socorro. No caminho, ele balbuciara palavras como “escuridão", “senhor”, “morte” e outras coisas estranhas, tudo em inglês. Por isso, ela foi acionada assim que deram entrada na emergência. Estava de plantão naquela noite, por sorte, pois falava inglês fluentemente.
Enquanto a Atendente do plantão ouvia o relato do policial, as primeiras providências de socorro eram tomadas. Ele tinha ferimentos graves, perdera muito sangue, estava em choque. Saraha judou a funcionária, que estava inutilmente tentando achar algum tipo de identificação nas roupas chamuscadas que ele usava, que já haviam sido trocadas pelas roupas esterilizadas do hospital e nos poucos pertences encontrados em seus bolsos. Poucos e estranhos...
Quando o cirurgião a chamou de dentro do bloco, espantou-se ao ouvir o que lhe era pedido. Isso acontecia tão raramente, precisarem de seu sangue, que quase se esquecia de que possuía um tipo extremamente raro.
Então, dali a pouco, lhe pediram também para conversar com ele, em inglês, pois despertara do choque e não dava sinais de estar entendendo nada que lhe falassem. Quem sabe, ele a entenderia, já que suas únicas palavras inteligíveis haviam sido naquela língua?
Aquele fora seu primeiro contato, e logo lá estava o misterioso John Smith sob sua responsabilidade na Enfermaria “E”... Misterioso, esquisito, mal-educado...
Com um murmúrio de impaciência, pulou da cama e foi direto para o chuveiro. Não ia deixar o “terrível Sr. Smith” arruinar seu dia logo cedo.
==
Uma hora depois, estava em sua sala. Conferiu documentos, checou informações, e sorriu satisfeita. Naquele dia, após o almoço, o Sr. Justino e mais quatro companheiros partiriam para casa. Sentiria falta deles, fora uma das turmas mais tranqüilas que tivera “hospedada” ali.
Ao entrar na enfermaria, rindo e saudando a todos com um bom dia, foi avisada pela enfermeira que o Dr. Felipe estava na sala de consultas e queria vê-la.
Encaminhou-se direto pra lá e entrou sorrindo, depois de uma batidinha na porta.
- Chamou, Dr? – ela perguntou em tom profissional, mas o sorriso do médico a desarmou, quando disse:
- Bom dia pra você também, sua lesma descorada!
- Ora! Bom dia, Dr. Minhocussú... – ela riu, mas ficou séria imediatamente ao ver quem era o paciente sentado na cadeira em frente à mesa: John Smith.
Ele apenas os observava, atento e enigmático. Sarah fez força para agir naturalmente, mas instintivamente tentava controlar a própria mente, enquanto era abraçada pelo médico e beijada ruidosamente na face.
O médico virou-se para o paciente, ainda sorrindo, e comentou:
- Essa minha irmã é linda, não é? Mas continua parecendo uma lesma descorada... Por mais sol que tome.. se bem que – ele se virou para Sarah – Qual foi a última vez que a senhorita se deixou ficar pelo menos uns 15 minutinhos à beira de uma piscina?
- Felipe... Dr. Felipe. – ela deu ênfase ao título – Isso não é hora pra este assunto. Por que queria me ver, afinal? Ou era só pra questionar meu tom de pele pela milionésima vez na vida?
Mas o inglês os examinava com atenção. Como podiam ser irmãos? O médico era negro, e ela, bem, sua pele tinha um tom bronzeado, mas era uma mulher branca...
O médico pareceu perceber sua estranheza, e comentou:
- Somos irmãos, sim, você é capaz de acreditar? Mas, infelizmente, não consangüíneos. Sarah foi encontrada por meu pai... Meu Deus, se ele não a tivesse escutado chorar...
- Berrar, você quer dizer! – ela riu – ele sempre diz que pensou que fosse uma sirene...
Ele não conseguiu entender porque, mas esta informação foi importante. O médico continuou.
- Bem, Sarah, sente-se. O assunto é grave.
Quando ambos se acomodaram, ele apontou a papeleta de John Smith, sobre a mesa.
- Bom. Temos que mandá-lo pra casa. Está completamente restabelecido. A parte clínica,quero dizer. Quanto à amnésia, não há nada que a ciência possa fazer. Por isso: conseguiu alguma coisa?
- Nada – ela olhou para os dois e baixou os olhos. Sentia-se completamente atordoada, mas não conseguira nada – Nenhum sinal de alguém desaparecido que combine com a descrição dele. Ontem, até achei algo que podia ser, mas...
- Sim?
- Bom, era de alguém que desapareceu, em Londres, há oito anos atrás...sei lá. E é muito estranho, não acredito que tenha a ver com... ele.
- Como assim? – ele agora pareceu inquieto. Londres... com certeza, lembrava-se de algo a ver com Londres... mas a lembrança fugiu, desnaveceu-se da mesma forma que veio.
- Bom, era um chamado de “procura-se”... Entendem? O anúncio sobre um criminoso de guerra ou algo parecido. Parecia coisa de maluco.
Os dois homens mal respiravam. O que ela estava sugerindo? Que ele era um criminoso procurado?
Sarah se sentia confusa, as informações neste site eram muito estranhas... Mas o inglês a encarara e perguntou:
- Por que não quer falar da tatuagem?
Ela o encarou, replicando:
- Você fez de novo!
Felipe olhou de um para o outro, sem entender.
- Do que vocês estão falando? E, “o que” ele fez de novo?
Sarah piscou. Depois, respirou fundo, antes de continuar.
- Ele tem dons telepáticos... de vez em quando sabe o que estou pensando. E, quanto à tatuagem, eles descrevem algo que chamam de “marca negra”, o símbolo de um grupo de fanáticos racistas, ao que parece.
O médico instintivamente se endireitou, fixando o homem à sua frente com mais atenção, que retribuiu seu olhar com tranqüilidade e retrucou:
– Bem, isso é fácil de averiguar, não?
Num gesto tranqüilo mas determinado, puxou para cima a manga do agasalho de moleton cinza que usava, emprestado pelo hospital. Em seu antebraço, havia uma mancha muito fraca na pele, mas em nada parecida com uma tatuagem.
- Acredito que isso não seja cicatriz de tatuagem retirada – Dr. Felipe comentou, depois de examinar atentamente – embora dermatologia não seja minha área, sei que a tentativa de se retirar tatuagens deixa marcas muito fortes. Isso no máximo pode ser a lembrança de uma simples queimadura ou machucado na infância... isso é normal em indivíduos da raça branca. Isso pode ser até causado por suco de limão derramado na pele, pelo tom.
Sarah não podia entender porque se sentia tão aliviada. Mas ele fitava o próprio braço, com o cenho franzido. Quase comentou com eles que ao despertar no hospital sentira aquela pele arder, mas isso pareceu mais perigoso do que se tivesse mesmo a tal marca... O que ela havia dito mesmo?
Mas o Dr. Felipe já voltara ao assunto principal.
- A Administração não quer assumir esta responsabilidade por mais do que uma semana, infelizmente. Teremos que achar alguma solução. Pedi ao Edmundo que avaliasse o caso dele, mas isso será feito em seu consultório, em alguns horários especiais que ele ainda vai verificar para mim. Então...
- Uma semana? – Sarah indagou – é este o tempo que eu tenho?
- Minha querida! – Felipe sorriu – pra você isso é quase que todo o tempo do mundo!
Sarah balançou a cabeça, desalentada. Estava a ponto de concordar com John Smith: ela não seria capaz de ajudá-lo. Não mesmo. A menos que... Não. Não poderia fazer isso.
Enquanto Felipe finalizava seu relatório na pasta do paciente, os dois se olharam em silêncio.. Mas ela desviou o olhar e se levantou, dizendo que tinha muitas providências a tomar.
Pediu licença, beijou o médico na face, e saiu.
John Smith não conseguia acreditar que ela estivesse realmente pensando o que percebera, mas não disse nada. Esperou que o médico o liberasse, e foi juntar-se aos outros no pátio ensolarado.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!